O jornalismo é fato da realidade. A literatura, da realidade somada à ficção. O jornalismo literário, logo, é uma miscelânea de ambos. Cumpre a missão de informar, preservando a essência jornalística, porém com ganho em vocabulário, estrutura narrativa e aprofundamento de conteúdo. Esse trinômio alicerça e ornamenta o texto que é levado ao leitor. E o jornalismo, enquanto retrato fiel da realidade inspira a literatura, esta, em escala menor, também acresce ao mesmo.
Mas para que o jornalismo literário seja compreendido de fato, é preciso realizar uma dissecação pormenorizada do que é jornalismo de fato e do que é jornalismo com influência da literatura. No primeiro caso, a prioridade é informação básica, essencial, fundamental à compreensão do que se quer noticiar. Variáveis como prazo e espaço disponível pressionam o profissional e o próprio veículo de mídia impressa a enxugar texto e tempo para que a informação se adeque à necessidade do leitor e cumpra sua missão primordial de informar. Já o jornalismo literário traz consigo não só uma notícia, mas também uma história. A informação ganha companhia de adjetivos, personagens, enredos, histórico do assunto e contextualização que não teriam oportunidade de ganhar vida no cotidiano jornalístico. Este estilo de informar tem aspectos que o tornam, sem exageros, nobre perante outras formas de veiculação de notícia impressa. Por suas particularidades, exige talento, dedicação e grande capacidade de empatia por parte de quem o pratica, afinal a humanização, que é arte de tornar mais real o fato, geralmente está no DNA deste modo de fazer jornalismo.
Características fundamentais do jornalismo literário são encontradas em parte da obra daquele que é considerado um dos principais expoentes brasileiros, senão o principal na arte de unir jornalismo e literatura: José Hamilton Ribeiro. Essas características estão presentes em reportagens analisadas e executadas por este e publicadas na revista Realidade (1966-1976).
A sedução da palavra
O mercado editorial tem aumentado o interesse pelo jornalismo literário que vem crescendo no Brasil. Conforme Monica Martinez (2009), uma das iniciativas é a Coleção Jornalismo Literário, da Editora Companhia das Letras, que oferta clássicos do gênero livro-reportagem. Martinez explica que há especialização oferecida pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e este tem sido pauta para Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).
Esta demanda deve-se à vontade de muitos jornalistas abusarem desse campo e ir além da objetividade, ou falta dela na imprensa, e fugir do lead, composto por“O que? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê?” e dar lugar à subjetividade. O jornalismo literário está na construção de grandes reportagens, bem escritas e com cunho social, na maioria das vezes. Esse gênero une o texto jornalístico com a literatura e tem como objetivo produzir reportagens profundas, completas e que o leitor, ao lê-las, veja-se diante delas.
O jornalismo literário, além de trazer as informações completas, somadas a uma boa narrativa escrita, proporciona ao leitor uma visão mais ampla do acontecimento. Nesse contexto, o jornalismo literário vai além da abrangência dos fatos e, sim, ultrapassa os limites das informações.
Para identificar o jornalismo literário, as características apontadas por alguns pesquisadores se tornam relevantes. Felipe Pena (2008, p. 13) aponta algumas características que ele convencionou chamar “estrela de sete pontas”. Segundo Pena, qualquer uma dessas características utilizadas no texto já faz parte do jornalismo literário.
“Potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos” (PENA, 2008, p.13).
Para Pena (2008), a primeira característica, “potencializar os recursos do jornalismo”, podem-se constituir novas estratégias profissionais. Na segunda defendida por ele, “ultrapassar os limites do acontecimento cotidiano”, ressalta ultrapassar os limites do tempo. A terceira ponta da estrela, “proporcionar uma visão ampla da realidade”, é contextualizar a informação da forma mais abrangente possível. A quarta característica, “exercer a cidadania”, afirma que é dever do jornalista o compromisso com a sociedade. A quinta característica, “romper com as correntes do lead”, a sexta “evitar os definidores primários”. E a última, “perenidade”.
O berço do jornalismo literário no Brasil
A revista Realidade foi à gênese do texto de revista no Brasil e as pessoas passaram de coadjuvantes a protagonistas nesta maneira de informar, mais aprofundada, mais técnica e lógico, mais literária.
A revista foi criada em 1966 pela Editora Abril, de São Paulo, e circulou até 1976. Mesmo apenas com dez anos de publicações, vendeu milhões de exemplares. A revista mensal era voltada para os mais diversos assuntos e até hoje é um marco na história do jornalismo brasileiro, com sua escrita leve e clara.
“As reportagens longas e o texto cuidadosamente escrito fizeram de Realidade um marco na história da imprensa brasileira e revelam o interesse da revista em dialogar com um público capaz de compreender e repercutir tal expressão de um jornalismo inovador” (MORAES, 2007, p.17).
Moraes (2007) afirma que a revista foi conhecida por ter um estilo próprio por abordar diversos assuntos que, na época, eram considerados tabus. O Brasil estava sob regime militar, e a imprensa não tinha total liberdade, mas Realidade atravessou barreiras e ofereceu um padrão de reportagem até então desconhecido no país.
Realidade estabeleceu um profundo vínculo social, configurando-se como um divisor de águas na imprensa brasileira e trouxe novo estilo de revista usando elementos do jornalismo literário. Além disso, questionou o que era tradicional e fez o público raciocinar por si próprio. A publicação se tornou conhecida por trabalhar com o que se convencionou chamar de “a grande reportagem na imprensa brasileira”.
A importância de Realidade para o país está no livro de José Carlos Marão que, juntamente com José Hamilton Ribeiro, escreveuRealidade Re-vista, no seu início destaca a importância da publicação para o Brasil:
Realidade como fonte para trabalhos acadêmicos não se dão conta de que muito do comportamento atual como liberdade para namorar ou “ficar”, o desprezo pelo tabu da virgindade, a igualdade de direitos da mulher, a possibilidade de casar, descasar, casar de novo – começou a despontar como mudança de comportamento no período 1966-1968… A criatividade na pauta e na finalização mostrava uma revista contestadora e irreverente, mas que nunca foi irreverente, mas que nunca foi confronto (MARÃO, 2010, p. 17).
Marão (2010) destaca que é necessário entender o quadro político brasileiro da época. O ano de 1966 pode ser considerado o momento em que divide a história militar que rompeu a ordem constitucional brasileira com o golpe de 1964, e a revista, conseguiu quebrar tabus, dialogar com uma sociedade que tinha medo e está em confronto com a política do país. Além de quebrar diversos tabus, Realidade questionava os padrões impostos pela sociedade.
A revista usufruía dos elementos do jornalismo literário e, assim, oferecia ao público reportagens com narrativas longas e completas para época. No ano de 1967, um número dedicado à mulher foi feita mais de 1.200 entrevistas e consumiu mais de três meses de investigação (Editora Abril). Por isso, as reportagens eram muito completas, com dados e estatísticas.
A pergunta que muitos questionam é como uma revista que depois de dez anos de circulação, com 120 edições, e com sete reportagens premiadas com o prêmio Esso de Jornalismo, fechou as portas. A revista teve uma equipe de jornalistas como José Hamilton Ribeiro, Sérgio de Souza, Narciso Kalili, Paulo Henrique Amorim, Paulo Patarra, José Carlos Marão, que, depois do seu fechamento partiram para outras experiências na área.
Para Thomaz Souto Corrêa (2008), o sucesso de qualquer revista está em o leitor gostar. Corrêa (2008) diz que as revistas fecham quando o leitor deixa de gostar. E que o desafio maior é “manter nossas revistas interessantes e relevantes, antenadas e atualizadas, bonitas e bem cuidadas, e sempre, sempre, indispensáveis para quem as lê”. E ainda afirma que a revista “desapareceu quando os temas deixaram de ser tabus e passaram a ser tratados normalmente pela imprensa brasileira”. Se for ou não a explicação, não se tem absoluta certeza, mas que Realidade foi um marco no jornalismo literário no Brasil foi. Isto se verifica nas diversas bibliografias encontradas até o momento e todos os estudos referentes à revista.
José Hamilton na Realidade
Se Realidade foi o “berço do jornalismo literário” no Brasil, o jornalista que integrou esta equipe, José Hamilton Ribeiro pode ser considerado “o bebê do jornalismo literário” no Brasil. Ele é reconhecido como um dos maiores jornalistas do Brasil por conquistar muitos prêmios. Além disso, têm experiências na área do jornalismo e histórias para contar.
A importância de José Hamilton Ribeiro é grande para o jornalismo Brasileiro, que foi até criado o prêmio “José Hamilton Ribeiro”, que visa homenagear as melhores reportagens escritas da língua portuguesa. O prêmio é internacional, por justamente ser uma homenagem a esse grande jornalista brasileiro, mas também conhecido fora do país, de acordo com o Museu da TV.
José Hamilton Ribeiro é o profissional que mais ganhou o prêmio Esso, a premiação mais importante de jornalismo no Brasil. Não foi apenas no Brasil que ganhou prêmio. Em 2006, nos Estados Unidos, a universidade de Columbia conferiu-lhe o “Prêmio Maria Moors Cabot” por considerar seu compromisso com o jornalismo sério. Ao ser agraciado com tantos prêmios, Ribeiro é conhecido também como o “repórter do século”, por justamente escrever reportagens que podem até hoje serem lidas e compreendidas, independentes da época de sua escrita.
É possível verificar que o jornalista teve experiência em todas as áreas do jornalismo. As reportagens produzidas na TV, à maioria para o programa Globo Rural, são reportagens bem trabalhadas e com cunho social. Já para o impresso, desde sua entrada na equipe da revista Realidade escreveu com estilo e destas reportagens surgiram publicações de outros livros.
Sua linguagem própria faz do jornalista, uma forte presença no campo do jornalismo. Já disse o jornalista Hugo Almeida, “Uma reportagem de José Hamilton tem suspense, ritmo e humor, sem prejuízo de informação, sua reportagem é um texto literário”. Além de unir o máximo de informação e clareza em suas reportagens, José Hamilton Ribeiro trabalha em seus textos o jornalismo literário e o mergulho na realidade para a produção de reportagem profunda.
Em entrevista concedida o jornalista José Hamilton Ribeiro disse que o texto “é um símbolo da Realidade da maneira do ponto de vista de orientação de texto, do ponto de vista de edição” (RIBEIRO, 2011). Na reportagem referente ao tema do transplante, o jornalista levou alguns meses para escrevê-la. De acordo com a análise realizada é o texto com maior número de características do gênero, cerca de dez características.
E, além desse tempo, para evitar erros técnicos na escrita, José Hamilton Ribeiro disse que quando escrevia o texto, o entregava às fontes (médicos, pessoas da família) para uma leitura, apontando erros. “Então se procurava cobrir desses pequenos recursos pra garantir que a reportagem não tivesse assim nenhum equivoco técnico que desqualificasse a leitura” (RIBEIRO, 2011).
Conforme José Hamilton Ribeiro, o jornalismo que se praticava na revista Realidade era um jornalismo diferenciado e que trazia em seu interior assuntos aprofundados e bem trabalhados, além de uma leitura satisfatória.
“Passava por esse exercício de edição de texto que era muito interessante porque a edição de texto que se fazia era transformar o texto numa leitura agradável, numa leitura de qualidade literária. Então o que é qualidade literária? Aquela coisa que você lê com prazer de ler. Então um dos objetivos da edição de texto era fazer reportagens que provocassem prazer na sua leitura. Ora, provocar prazer. A primeira coisa que tem que ter é a reportagem não ter erros técnicos. Ela não pode estar falando de medicina e de repente confundir anastomose com uma anamnésia” (RIBEIRO, 2011).
Em reportagens vistas e executadas por José Hamilton Ribeiro na Revista Realidade a presença de características do jornalismo literário é constante e nítida. Características como descrição, o uso de diálogos, criatividade, construção cena a cena, profunda observação, imersão do repórter na realidade, romper as características burocráticas do lead, precisão de dados e informações, reconstruir pensamentos, sentimentos e emoções e uso da metáfora são recursos que foram usados com muita propriedade por José Hamilton Ribeiro. Percebeu-se que as reportagens escritas pelo jornalista apresentam relatos humanizados, que deram uma narrativa viva aos textos, e Ribeiro mescla a humanização com elementos literários, características encontradas nas reportagens.
José Hamilton Ribeiro cumpriu com o que o jornalismo literário se propõe: informar, acima de tudo, mas com riqueza de detalhes e de forma criativa. Por ser o precursor deste gênero no Brasil, o mérito do repórter é digno de ser citado, pois com certeza o conjunto de suas reportagens inspirou não só colegas de profissão, como os próprios leitores, que passaram a desejar este tipo de jornalismo, criando um ambiente de mercado para que as empresas de comunicação impressa pudessem investir capital neste tipo de publicação. Prova disto é o grande número de publicações com base no jornalismo literário surgidas após a revista Realidade, da qual José Hamilton Ribeiro foi a maior expressão.
E fica evidente que o jornalismo literário é fonte inesgotável de informação, trazendo consigo, na maioria dos casos, a versão mais completa do que se considera notícia. O ganho ao leitor não fica reduzido apenas ao conteúdo básico de matérias. Recebe ele também uma carga generosa de elementos para uso intelectual, emocional ou mesmo cognitiva, já que a humanização presente neste gênero pode ser um poderoso instrumento de incremento da capacidade de empatia, sabidamente a característica fundamental da inteligência emocional.
Referências bibliográficas
MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade: 1966-1968.São Paulo:Alameda, 2007.
MARÃO, José Carlos; RIBEIRO, José Hamilton. Realidade revista.Santos: Realejo, 2010.
PENA, Felipe. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2008.
RIBEIRO, JoséHamilton. Elaboração de reportagens para a revista Realidade. Entrevistadora: A. Weise, 2011. 1 cassete sonoro (30 min). Entrevista concedida para a jornalista.
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[Angélica Fabiane Weise é jornalista]