Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A carpintaria, a disciplina e o método

A cultural estudantil brasileira, no campo de graduação em jornalismo, caracteriza-se por uma certa ojeriza de muitos alunos em estudar e aprender técnicas, procedimentos e métodos de trabalho de reportagem. Paira no ar uma crença arraigada de que o bom texto é fruto do ‘talento natural’, da ‘inspiração’, do ‘dom divino’ do repórter. E de que conhecer procedimentos de pauta, apuração e produção de texto é contraproducente, pois representa uma ‘ameaça’ à espontaneidade criativa do candidato a jornalista.

Ambas crenças são falaciosas. Trabalham contra o desenvolvimento do talento real dos futuros repórteres. O conhecimento de métodos desenvolvidos na área é fundamental, desde que, claro, conduza-se o estudante pela tarefa de descoberta com bom senso e suficiente maleabilidade para não inibir as qualidades potenciais que ainda se encontram frágeis, como a planta nova que precisa ser regada e protegida para crescer.

Talvez a conotação inconsciente que ronda essas crenças seja a associação – novamente falaciosa – entre as palavra ‘técnicas’ e ‘disciplina’, ligando essa última à idéia de algo rígido, castrador. A figura arquetípica do jornalista remete ainda em nosso tempo à idéia do artista da palavra. E artista, pensa-se, abomina disciplina, sempre.

Outra falácia perigosa. A arte, se bem possui um lado misterioso e mágico de criação, não se produz apenas pela ‘inspiração’ do artista. A inspiração pode disparar um processo criador, sugerindo a essência de uma obra a ser criada. Mas o artista precisa estar habilitado para converter o impulso criativo em obra concreta e plena. E isso exige, sim, disciplina. Método. Capacidade do artista em auto-educar seu processo criativo, para que não fique navegando em possibilidades estratosféricas, sem conseguir materializar de modo efetivo, no mundo real externo, as idéias maravilhosas que podem ter batido às portas mais imaginativas do seu universo mental interno.

Lapidação do talento

Quando estava trabalhando no meu livro-reportagem Colômbia Espelho América (editoras Perspectiva e Edusp), um dos objetivos era buscar compreender o contexto criativo que dá força à produção de Gabriel García Márquez. Visitei sua cidade natal e a região do Caribe colombiano que dão substância a muitos de seus livros, entrevistei seu amigo do peito de desde a juventude Germán Vargas Cantillo – um dos únicos a quem Gabo mostrava os originais de suas obras, aceitando críticas e recomendações –, descobri muita coisa. Uma delas é que, quando jovem, Gabo fazia parte de uma sonhadora turma de escritores, o Grupo de Barranquilla. Ele, Germán, Alfonso Fuenmayor e Alvaro Cepeda. E então soube de algo surpreendente, que coloquei no livro, assim:

‘O que mais impressionava Germán no jovem escritor era a disciplina para dedicar-se várias horas, diariamente, à obra literária. Tinha seus dezoito ou vinte anos, participava das farras do grupo, mas estava decidido a ser escritor importante. Alvaro Cepeda tinha mais facilidade para escrever do que o próprio Márquez, mas lhe faltava a disciplina do amigo.’

Sem disciplina – entendida não como aquela idéia estereotipada de algo mecânico, estúpido e pesado, que imediatamente associamos à vida militar –, há pouca chance para o sucesso duradouro, e quase nenhuma possibilidade para que a arte brilhe. Pois a arte que perdura exige determinação, persistência, fibra do criador. E fibra só se consegue com empenho prolongado. Na arte ou em qualquer outra esfera da atividade humana, incluindo o território do nosso interesse aqui, o Jornalismo Literário.

É a disciplina que traz autoconfiança aos autores de narrativas da vida real. É a determinação em observar e escrever, auto-analisar sua própria produção e escrever de novo, quantas vezes necessárias, que forma uma base de auto-estima sem a qual o escritor desmorona-se nos testes efetivos de paciência e força que a vida exige.

Mas, novamente, disciplina sozinha, sem propósito, não conduz a muita coisa. A disciplina deve ser empregada para o escritor lapidar o talento, ganhar maestria sobre os fundamentos de seu ofício. E aí entra a necessidade de conquista de domínio sobre as técnicas e procedimentos reconhecidos.

Tecnologia narrativa

Todo autor jovem encontra, na sociedade, caminhos trilhados pelos que o antecederam. Vários outros escritores desenvolveram com sucesso respostas a problemas operacionais que não precisam ser reinventadas a cada geração. Não há tempo para isso. Toda nova geração tem de partir do patamar onde as anteriores terminaram. Para isso, precisa ganhar maestria sobre as ferramentas de trabalho legadas pelas anteriores.

Não é a prática das técnicas que vai inibir o talento de ninguém, se isso for feito com critério. As técnicas estão ali para que o jovem profissional as experimente; elas são caminhos já trilhados e incorporados pela comunidade – a dos narradores da vida real – à qual está se integrando. Não para que reproduza mecanicamente procedimentos antigos, mas para que permita ao seu talento potencial mesclar criativamente suas próprias tendências e o estado da arte resultante do conhecimento coletivo gerado por inúmeros outros profissionais ao longo dos tempos.

Dominar técnicas, incorporando ao talento próprio arsenais de expressão, é enriquecer habilidades potenciais. Ouça sua voz criativa interna, mas também apreenda as soluções que outros criadores encontraram para seus desafios de escrever o mundo real.

Aprender técnicas passa por dois caminhos essenciais, exigindo o emprego dos dois hemisférios cerebrais, com suas habilidades prioritárias específicas. Ler obras didáticas, com foco analítico, ajuda a compreender procedimentos. Ler bons exemplos narrativos inspira. A mente racional e a intuição, assim como a razão e o coração, também devem andar juntos, neste departamento.

É fácil entender, assim, o depoimento de Caco Barcellos a um jornal brasileiro, quando do lançamento do seu mais recente e bem-sucedido livro-reportagem, Abusado. Caco comentava que lera umas 20 vezes À Sangue Frio, do Truman Capote. Leu para se inspirar, descobrindo a tecnologia narrativa escondida por trás da arte expressiva do jornalista norte-americano.

Sem o domínio da técnica, o que pode acontecer é você ter uma inspiração maravilhosa mas não conseguir traduzir aquilo convenientemente para o papel. Por falta de recurso técnico, por não ter feito antes o ‘dever de casa’.

Olhos de ver

Leia os mestres. Deleite-se nas boas narrativas. Tente descobrir a fina carpintaria narrativa de um Joseph Mitchell, de um Gay Talese, de uma Lilian Ross.

Se quiser uma analogia, faça como acontece hoje no futebol brasileiro. De uns tempos para cá, vários goleiros de ponta, de gerações diferentes – Taffarel, Dida, Marcos, Rogério Ceni e agora Júlio César – notabilizam-se por pegar pênaltis em partidas decisivas. Sorte, você pode responder apressadamente. Calma lá, diria eu. O goleiro brasileiro de seleção, em média, não tinha essa habilidade. De uns anos para cá, adquiriu. Graças à iniciativa de alguns clubes que empregaram ex-goleiros exclusivamente para preparar os seus, transmitindo às novas gerações as técnicas, as manhas e as experiências das anteriores.

De volta à arte narrativa, outra lição de Gabo, aprendida na entrevista com Germán, quando preparava o meu livro da Colômbia. Referindo-se ao Grupo de Barranquilla, contou-me Germán:

‘Líamos muito John dos Passos, Faulkner, Hemingway, Virginia Woolf, John Steinbeck. Essa leitura foi muito decisiva para o trabalho literário do grupo, porque víamos que havia outras possibilidades por onde entrar, para fazer literatura’.

Você quer utilizar sua inspiração e seu gênio criador ainda não descobertos pelo mundo? Ok, vá em frente. Mas não os use para se impedir equivocadamente de conhecer técnicas e métodos. Empregue-os de modo mais inteligente para imaginar como pode absorver o fabuloso arsenal legado por todos os grandes nomes do Jornalismo Literário, poupando seu tempo, para enriquecer sua própria voz narrativa, em lugar de procurar inventar a roda outra vez. Use-os para encontrar um meio genuíno de praticar a narrativa do real com os temas que tem ao seu alcance, à sua volta. E pelos meios talvez pouco convencionais, mas disponíveis, se você ousar enxergar o mundo com olhos diferentes, porém munido das ferramentas de expressão que graciosamente o mundo que aí está lhe oferece.

[Dedico este artigo a meu amigo Raul Osório Vargas e a seu filho Gabriel, nascido no Brasil, filho de colombianos, portador de um nome legendário do universo das narrativas, cuja fama transcende fronteiras, ecoa por todo o planeta inspirando talentos futuros.]

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Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação, professor da ECA-USP