Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A censura imposta ao Estadão

Não vivemos em um país democrático, muito menos republicano. Nunca vivenciamos na essência tais modelos políticos ou de governo porque nunca lutamos, por conta própria, a não ser para fazermos oposição a outro regime, pela implementação de uma República democrática brasileira. Dirão os reducionistas que o brasileiro é um povo trabalhador, sofrido, miserável e por isso precisa antes comer do que pensar em ser servido por um país republicano e um governo democrático. E, claro, por uma sociedade onde as mais diferentes liberdades tenham o mesmo destaque.

Mas, se temos o que comer e como sustentar as nossas famílias e não temos liberdade, então nada temos. Porque a liberdade de agir do ser humano – o tão propalado livre arbítrio – pode ser exercida em inúmeras situações do cotidiano, inclusive na hora de escolher, dentro do mercado, o que levará para comer em casa na companhia da família. Se, desse modo, o indivíduo comum não tem condições de se satisfazer por meio das suas liberdades, entre as quais está a de imprensa, é de se pensar por qual motivo as mesmas causas e efeitos não se aplicam aos poderosos.

Para Cláudio Abramo, ‘este é um país de vermes’ (ABRAMO, C., 1988, 116). Vermes, poderosos, oligarcas, não importa a alcunha, todos eles pisam fundo no acelerador na direção de defender os próprios interesses, em detrimento de se submeter ao Estado Democrático de Direito e seguir à risca o que vale para todos, do jornalista ao marceneiro, passando pelos políticos.

O substrato desta introdução, de maneira resumida, é a censura imposta ao jornal O Estado de S. Paulo, impedido, há mais de um ano, de publicar reportagens sobre a Operação Boi Barrica, movida pela Polícia Federal contra, entre outros, Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney.

A defesa do indefensável

Naturalmente, não sem a conivência do Supremo Tribunal Federal (STF), que deu ganho de causa à ação impetrada pelos advogados de Fernando Sarney, bem como o fato de o recurso ter sido deferido pelo desembargador Dácio Vieira, íntimo dos Sarney, no mesmo dia em que recebeu a ação. Em dezembro de 2009, Fernando Sarney desistiu da ação, mas o Estadão optou por não voltar atrás na liberdade de garantir o que é de direito. De todos os brasileiros, que fique bem claro.

Já diria Gilmar Mendes que qualquer um pode trabalhar como jornalista, até mesmo um cozinheiro. Dada a grosseria da declaração, sem desmerecer a nobre profissão, o Supremo – aí incluído o Poder Executivo, por ser o presidente da República quem indica os ministros do STF – tem legislado além da conta sobre a imprensa e o seu papel na sociedade brasileira. Em exatos 91 dias, entre 30 de abril de 2009 e 31 de julho de 2009, o STF foi explicitamente manipulado a intervir no mercado de mídia com frequência nunca vista antes. O caminho tortuoso do Supremo começou pelo fim da exigência de diploma para a formação de jornalista, em ação movida pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo, que teve na comparação grotesca do então presidente da Casa o seu ato derradeiro; um mês e meio depois, decidiu-se pelo fim da Lei de Imprensa, aberração dos tempos de regime militar e que já deveria ter caído por terra desde que as mesmas oligarquias que nos jogaram no breu dos anos de chumbo, nos conduziram à redemocratização, não fôssemos ‘um país de vermes’.

Como o nosso caso é outro, e aqui não existe Primeira Emenda para assegurar que o Estado não deve legislar sobre a atuação da imprensa, a censura voltou a toda a carga com a subserviência dos seis ministros do STF que defenderam o indefensável: que o Estado não publicasse reportagens sobre investigações conduzidas pela Polícia Federal, cujo estopim foi a contratação de um neto de José Sarney para o gabinete de Epitácio Cafeteira – o que configura nepotismo –, aliado da família Sarney e que teve o jovem como funcionário durante um ano e nove meses, mas foi o primeiro passo para permitir que viessem à tona os chamados atos secretos.

‘É indispensável certo grau de contradição’

Ou seja, a recusa do STF em deferir a favor do jornal paulista significa nada mais, nada menos do que o que as elites sempre quiseram da Imprensa nacional: ‘tirar a consciência do jornalista.’ (ABRAMO, 1988, p. 109), da mesma forma que ‘a ausência de vozes críticas é um sinal dramático de crise da inteligência’ (LAGE, N., 1998, p. 379).

Nesse sentido, ‘[o repórter] admitirá que algumas partes sejam suprimidas para livrar-se de uma ação judicial ou simplesmente para que o resto seja publicado’ (LAGE, 1998, p. 311). Isto significa que se o jornalista deixa de ter consciência e não está imune de ser censurado, dentro ou fora do veículo onde trabalha, ocorre que ‘a liberdade de opinião do jornalista tem como limite a orientação do jornal.’ (ABRAMO, p. 116). Como se tem privatizado de tudo no Brasil, processo iniciado pela mercantilização das relações iniciada com as trocas efetuadas entre portugueses e indígenas quando o Brasil ainda não era colônia de Portugal, a profissão de jornalista tem sido, incessantemente e insensatamente, atrofiada pelo véu da liberdade de imprensa, que oculta a censura e seus inconfundíveis trejeitos, porque ‘só é usada pelos donos das empresas’ (idem).

Quando se tem um esquema maquinado para o Estado tomar medidas ao avesso, fica consolidada a primeira de onze hipóteses elaboradas por Nilson Lage: ‘O objetivo do controle de opinião pública é preservar ou instaurar estado de coisas em benefício de um sistema de poder’ (LAGE, 1998, p. 307). Ao mesmo tempo, já que o Brasil é qualificado como um país onde o jogo democrático transcorre sem maiores problemas, onde a urna eletrônica foi usada pela primeira vez em todo o mundo, adjetivações que neste momento de censura afagariam o ego até mesmo do chefe de redação do Estado, é notório que ‘é indispensável certo grau de contradição na informação para que o sistema funcione’ (idem, p. 308).

Um instrumento em benefício das ideias

Em artigo publicado no suplemento que circulou quando a censura ao jornal completou um ano, no dia 31 de julho de 2010, a pesquisadora e historiadora Isabel Lustosa rememora como d. Pedro I lidava com as críticas feitas ao seu mandato. Como o que ela afirma nesta passagem: ‘Se não hesitava em ofender, d. Pedro era muito pouco tolerante com qualquer crítica impressa.’ Até porque, prossegue ela, ‘apanhou muito o Malagueta [José May Malagueta, crítico do regime], herdando dessa surra defeito permanente em uma das mãos’ (LUSTOSA, I., 2010, p. H6).

Assim foi quando da impossibilidade de se instalar uma universidade em qualquer uma das colônias que a Monarquia Portuguesa mantinha na América do Sul, África e Ásia. E se acirrou, desde o momento em que alguém ousou desafiar a Imprensa Régia, caso de Hypólito da Costa, dissidente do império brasileiro que tentou fundar o primeiro jornal não-oficial na colônia, mas foi exilado na Inglaterra e de lá enviava o Correio Braziliense para ser distribuído na terra natal.

Há duas questões em evidência, quando se trata da imprensa no Brasil. Em primeiro lugar, a chamada grande imprensa, ‘ligada aos interesses daquela classe que pode manter a grande imprensa’ (ABRAMO, p. 116), sempre se prestou a servir à elite político-sócio-econômico-cultural brasileira, que logo se tornou seu ‘mecenas’: os industriais, que são os anunciantes majoritários nos programas de rádio e tevê e nas páginas de jornal, revista e nos sítios mantidos pelos veículos na internet. Em segundo lugar, o poder alimenta difícil relação com os meios de comunicação de massa, acreditando piamente que basta silenciá-lo para fazê-lo obedecer ao que é de seu interesse que seja publicado. Mas, como frisa Cláudio Abramo, ‘eu também jogava bruto com a ditadura; fazia um jornal propositalmente tendencioso, para lutar contra os militares. Antes de ser jornalista sou um ser político; o que me interessa de fato é fazer política, é mudar a sociedade brasileira. Para mim, o jornalismo foi frequentemente um instrumento que usei em benefício de minhas ideias’ (idem, p. 120).

Conclusão

O povo brasileiro não está na parte de cima da lista da Unesco que avalia os países cuja população possui os melhores índices de leitura em todo mundo. Muito pelo contrário, consta de uma das últimas dessas aferições realizadas pelo segmento das Nações Unidas para a Educação e a Cultura, que, no Brasil, se lê, em média, 1,6 livro por ano. Por isso, é de se imaginar próximo a nulo o impacto causado na grande massa brasileira quando um jornal, ainda que de circulação nacional e com vendagem diária na casa dos 400 mil exemplares, fica impossibilitado de publicar matérias de interesse público, em julgamento que a instância máxima da jurisprudência legislou em causa própria, afinal se tratava do herdeiro da oligarquia proprietária do Maranhão, um dos estados mais pobres da União. Mas o que abunda, mesmo, é que apesar de tantas evidências, ‘ignoramos o jogo de interesses por detrás das notícias’ (LAGE, p. 376).

Dessa maneira, é simples de se compreender a ideia de que a imprensa, não apenas na forma de papel, a exemplo de O Estado de S. Paulo, representa o ‘quarto poder’, título de uma obra – Jornalismo: o quarto poder, escrita pelo francês Marc Paillet em 1986, e que também foi usado em um filme – O quarto poder, do diretor grego Costa Gravas, exibido pela primeira vez onze anos depois.

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Estudantes de Jornalismo da PUC-Rio