Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

A cobertura das eleições de 2002 e da posse de Lula

O artigo propõe uma análise de conteúdo das matérias sobre política elaboradas pela revista Veja entre julho de 2002 e janeiro de 2003. O período acompanhado abrange os quatro últimos meses de campanha eleitoral, a transição e o primeiro mês de governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Num primeiro momento foram observadas as principais representações dos quatro principais candidatos, na seqüência, abordamos o material publicado sobre Lula e o PT após a vitória. Cabe dizer que chama a atenção a utilização do imaginário popular e/ou infanto-juvenil na revista e particularmente no tratamento do candidato petista e de suas ações.

Eleições se tornam espetáculos

Os veículos de comunicação fizeram uma ampla cobertura eleitoral. Páginas e mais páginas e muitas horas foram dedicadas aos candidatos que pleiteavam os cargos do executivo, no plano federal e estadual. No plano federal, a conjuntura política dessas eleições, mais competitiva do que as de 1994 e 1998, pode explicar este destaque.

Neste estudo, analisamos a revista Veja, a publicação semanal mais lida no País. Um veículo que se professa voltado para os interesses da sociedade, mas com profunda penetração entre as camadas médias.

O trabalho acompanhou o período eleitoral e a posse do novo presidente. Observamos o material publicado entre julho de 2002 e janeiro de 2003. Este período corresponde aos três meses que antecederam o primeiro turno (de julho a setembro), o mês das eleições, outubro, e o período pós-eleitoral, preparatório para a posse de Lula. Analisamos todas as capas da revista e todas as matérias da editoria ‘Brasil’ de duas edições por mês.

Neste artigo propomos visualizar as representações dos principais concorrentes à presidência da República presentes na Veja durante o pleito eleitoral e o conteúdo dos três meses que se seguiram à vitória do PT.

Acreditamos que nas sociedades contemporâneas é essencial analisar o desenho de sua mídia e mais ainda em momentos eleitorais. Giovani Sartori aponta que a teoria eleitoral da democracia argumenta que a democracia postula uma opinião pública autônoma, que dá sustentação, através das eleições, a governos consentidos. (1994, 155) A seu ver, as eleições não decidem sobre políticas concretas; estabelecem, ao invés, quem vai decidir sobre elas. As eleições não resolvem problemas; decidem, antes, quem vai resolver os problemas. Hoje são (quase) um rito naturalizado da política. Mediante o processo de eleições um grupo dispõe de modo privilegiado de parcelas de poder e de recursos (diferenciados) para governar. O governo e os governantes tornam-se legítimos porque são escolhidos através deste rito público e coletivo.

De acordo com Antônio Rubim, ‘não parece estranho nem casual que o momento eleitoral seja muitas vezes traduzido como festa e/ou solenidade, como cerimônia que, tendo um grau de excepcionalidade, requer ser vivida de maneira diferente da vida ordinária.’ Na sociedade contemporânea, as eleições, seja pela sua natureza ritual e excepcional, seja pela vinculação da mídia à política, tornam-se espetáculos.

O discurso da incerteza

Ao pensar o jornalismo os teóricos se dividem, há aqueles que defendem uma teoria da manipulação da notícia e outros que preferem pensar a parcialidade da mídia como inerente a seu processo de produção. Mark Fishman, em seu livro Manufactoring the news, distingue duas diferentes abordagens acerca da produção de notícias, um ‘jornalismo de rotina’ e um ‘jornalismo manipulado’. No primeiro, os métodos quotidianos e as práticas e normas dos jornalistas dão origem às notícias de rotina. No segundo, haveria uma orientação prévia dos conteúdos, determinada por certos interesses.

Pensamos que hoje, temos um jornalismo industrializado, ‘just-in-time’, desta forma julgamos ser mais adequado concentrar as análises no conceito de ‘jornalismo de rotina’. Nesta linha encontra-se adicionalmente outra questão fundamental, o enquadramento. Gitlin define os enquadramentos como ‘princípios de seleção, ênfase, e apresentação, compostos de pequenas teorias tácitas acerca do que existe, do que acontece e do que é importante’. Os enquadramentos da mídia, por sua vez são definidos pelo autor como referenciais implícitos que ‘organizam o mundo tanto para os jornalistas que o descrevem como, num grau muito importante, para nós que confiamos em suas descrições’. (1980, 16) Os enquadramentos, mais do que manipulação, refletem o processo e o ritmo da produção, o profissional da mídia reproduz esquemas, pois é mais prático e cômodo, é o que existe.

Utilizando o pensamento de Goffman, trata-se de ‘padrões persistentes de cognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de exclusão, através dos quais os manipuladores-de-símbolos organizam habitualmente o discurso, seja ele visual ou verbal’ (Goffman, 1986, 7).

Aí reside o poder da comunicação, o poder de construir a realidade por meio da representação que faz dos diferentes aspectos da vida humana. Neste processo de representação, construção e significação da realidade, a mídia contribui para a elaboração de certos climas ou atmosferas social. Basta lembrarmos o discurso da incerteza durante a campanha ou o discurso da proximidade do caos social com as manifestações dos movimentos sociais nos últimos meses.

Compromisso com o FMI

Em 2002, havia seis candidaturas à presidência da República, das quais quatro eram fortes concorrentes. O candidato da oficialidade foi o ministro da Saúde durante o governo do PSDB, José Serra. Concorrendo pela oposição estavam Luis Inácio Lula da Silva, na sua quarta disputa, pelo Partido dos Trabalhadores; Ciro Gomes, filiado ao Partido Popular Socialista, mas um antigo quadro do PSDB; e Anthony Garotinho, o ex-governador do Rio de Janeiro. Lula esteve consideravelmente à frente em todas as pesquisas de intenção de voto. Zé Maria concorria pelo PSTU e Rui Pimenta, pelo PCO, mas suas candidaturas foram excluídas da grande imprensa.

Num cenário internacional com os investidores pouco propensos a incertezas, sem oferecer linhas de crédito a países com altas taxas de risco e com o vizinho, a Argentina, em default, a eleição cristalizou a vulnerabilidade do Brasil. Os especuladores capitalizaram o medo da vitória de uma candidatura que se apresentava como um projeto alternativo, ou seja, o receio de que uma presidência do PT conduzisse o País ao colapso. Cabe lembrar que foi uma estratégia do marketing de Serra semear o medo ao insinuar que uma presidência do PT poderia levar a uma ‘argentinização’ do Brasil. A frase de efeito foi espetacularizada nos jornais e os indicadores econômicos iniciaram um percurso de deterioração. Esta linha de ‘argumentação’ da campanha tucana esteve vigente até o segundo turno quando se adicionou a crise na Venezuela.

Em julho, começa a disparada do dólar e, por sua vez, a inflação, ‘monstro’ esquecido ameaça voltar. Em agosto, o governo FHC recorre ao FMI para acalmar os ‘mercados’ e fechar as contas. A questão é controversa. Em final de mandato o presidente convoca os quatro candidatos mais bem situados nas pesquisas para conversar sobre o acordo com o Fundo, ou seja, para comprometê-los com os seus termos, diminuindo o risco das mudanças e aliviar as ‘tensões’.

O anti-Lula na pauta

Das quinze edições de Veja publicadas nos três meses que antecederam o primeiro turno (6 de outubro), houve apenas cinco capas que se referiram ao pleito eleitoral. Número similar ao das que abordaram questões comportamentais: sexo, religiosidade, mentiras, entre outros. Ao longo dessas semanas, a revista discute as inovações tecnológicas, a urna eletrônica que se estabelece no País e tece um panorama do eleitorado, ‘Perfil exclusivo dos votantes mostra que a eleição de outubro será decidida por quem ganha pouco, não paga imposto e vê muita tv’ (31/07), ou seja, pela grande massa da população, com menos instrução e mais vulnerável a coronelismos e farsas eleitorais. No que tange à cobertura da campanha presidencial, a revista procura traçar um perfil dos candidatos, recuperando suas trajetórias e as alianças. Mostra as estratégias e o desenvolvimento das campanhas, expondo as polêmicas semana a semana e as propostas. O estilo é totalmente opinativo.

Na edição do dia 10 de julho, a revista anunciava que ‘É hora de torcer pelo Brasil’. Neste momento, a Veja oficializa sua cobertura das eleições, conclamando seus leitores a encerrarem as comemorações pela conquista do pentacampeonato do Mundial de futebol e a se preocuparem com o futuro do País. A matéria de capa recebeu o título ‘O tamanho do nó brasileiro’. A linha fina elencava os problemas: ‘a economia emite sinais negativos, as empresas fecham com mais cortes e há ainda a eleição que assusta os investidores’.

Na Veja, a disputa por uma vaga para o segundo turno foi o tema principal. Na edição do dia 17 de julho, indaga ‘Quem vai ser o anti-Lula?’, Ciro Gomes e José Serra rivalizam pelo eleitorado, o primeiro sobe nas pesquisas em julho, quase alcançando Lula em agosto. Nesse mês, a publicação aponta que ambos ‘já estiveram lado a lado no PSDB. Agora são inimigos e travam uma guerra aberta por uma vaga no 2o turno’ (28/08). Até setembro vemos vários capítulos deste duelo entre os dois candidatos.

Às vésperas do primeiro turno, a revista elabora uma edição especial 2002, nela apresenta os principais presidenciáveis e diz para o eleitor ‘Você decide’. Cada candidato recebeu diferentes representações, Garotinho foi o religioso populista; Ciro, o destemperado; Serra, uma mente indecisa e Lula, de cara nova, abandonou a face radical, agora é ‘paz e amor’.

Garotinho, ‘com fé em Deus’

Ao candidato foi dedicada a menor cobertura durante o pleito, no entanto, ele quase chegou ao segundo turno. Se tal houvesse ocorrido, o leitor da revista teria pouca informação a seu respeito. A representação do candidato apresenta que ‘Com fé em Deus e em si mesmo’, ele ‘foi ficando’. Às vésperas do primeiro turno são apresentadas ‘Cenas de um governo’, no qual se retrata sua passagem pelo governo do Rio de Janeiro, marcada por problemas na segurança, como a ‘tragédia do ônibus 174’ e ‘obras de apelo popular’. As fotos trazem a imagem da refém do ônibus na mira do seqüestrador e o piscinão de Ramos.

Ciro Gomes, o ‘destemperado’

Ciro Gomes é apresentado como uma pessoa séria, mas de caráter ‘destemperado’. No momento em que começa a subir nas pesquisas de intenção de voto expõem-se certas ‘pedreiras’ desta candidatura, um coordenador de campanha que teve ligações com PC Farias, Tesoureiro de Collor, e supostas irregularidades cometidas pelo seu vice, Paulo Pereira da Silva, na Força Sindical. Além disso exibem-se ambigüidades, como um discurso moderno, o apelo social, ao lado de ligações próximas às oligarquias no nordeste. Uma das capas se intitula ‘Amizade colorida’ (07/08), nela, o candidato é associado a Collor, um grande estigma da política brasileira, o presidente que foi impedido pelo Congresso de continuar no cargo após a constatação da corrupção de seu governo.

‘Eterno fascínio pelo risco’, diz a manchete da avaliação do candidato às vésperas do 1o turno. Na legenda da primeira foto lemos ‘Ciro e a ideologia. Ele já pertenceu ao PPS, ao PMDB ao PSDB e ao PPS’. A trajetória mutante evidenciaria sua falta de ideologia. Desta candidatura destacam-se a mulher – a atriz Patrícia Pillar – e as alianças duvidosas. Em suma, o candidato é um risco.

Serra, ‘estudado e preparado’

A Veja aponta a ambigüidade do candidato com relação a sua participação no governo FHC, expondo sua indecisão sobre ‘colar ou não sua imagem à do presidente’ (07/08). É um candidato que, apesar de ter apoio governamental, não se torna notícia: ‘Só um factóide pode produzir manchetes’.

No final da campanha observa que para chegar ao segundo turno o candidato elaborou a ‘desconstrução de seus adversários’ Roseana Sarney e Ciro Gomes. Mas o título ‘A mente de Serra’, sugere aquilo que destaca no candidato. Na primeira imagem desta reportagem vemos o candidato em sua casa em São Paulo, com a legenda ‘Entendo melhor as coisas quando leio’. Entre as cenas do álbum de família – como o mercado municipal da capital paulistana, onde o pai vendia frutas – e de momentos da campanha lemos que ‘decisões são precedidas de exauridas análises sobre as chances de sucesso e riscos de fracasso’. Em suma, Serra é um homem de origem simples, mas ‘estudado’, ponderado e ‘preparado’ para encarar grandes responsabilidades.

Lula, o PT e os fantasmas

O candidato do PT, bem como o partido, recebem inúmeras comparações e metáforas. Mas ao longo do período se destacam as ilustrações e estórias do universo infanto-juvenil ou do imaginário popular: Alice no país das maravilhas, a bela e a fera, os três mosqueteiros, entre outros. Imagens inexistentes nos demais candidatos, nem com no tratamento de Fernando Henrique Cardoso. Estas representações se prolongam nos demais meses analisados.

Em julho, vemos ‘Lulalice no país das maravilhas’, a linha fina indicava o teor: ‘As metas do PT são generosas. Mas algumas são realizáveis só no campo da fantasia. Assim como algumas do Garotinho, Ciro Gomes e também do tucano José Serra’ (31/07). Nesta matéria se expunham as promessas irrealizáveis dos quatro principais candidatos, no entanto, a chamada colocava a ênfase em Lula.

Nos meses que antecederam o 1o turno, Lula e o PT ganharam duas capas. Às vésperas do primeiro turno a revista coloca uma pergunta: ‘O PT está preparado para a presidência?’. A reportagem foi intitulada ‘Cristãos-novos do capitalismo’. A matéria lembrava que o PT era ‘recém-convertido à disciplina fiscal e à economia de mercado’. Num Box, seis economistas avaliavam as ‘chances de Lula fazer um bom governo’, as opiniões variaram da confiança ao ceticismo.

‘De cara nova’, Lula light, paz e amor, foram as representações de Lula em sua quarta campanha. No entanto, o veículo apresenta certas desconfianças a respeito de sua transformação, bem como a do PT que são descritas como uma nova roupagem para vencer as eleições. A essência continuaria a mesma: radical. O questionamento sobre a capacidade, ou o preparo, de Lula e do PT para governar o País foi outra linha da cobertura. Cabe notar que, ao se indagar sobre a capacidade do canditato-operário, fala-se sub-repticiamente que o outro – no caso, José Serra – seria mais preparado, pois é um ‘doutor’. Além disso, em diversos momentos a revista publicou quadros apresentando o Lula de outros tempo e o atual, ‘Lula-lá’ e ‘Lula-cá’, neles se recortaram suas idéias sobre temas espinhosos: Alca, dívida externa, entre outros.

A edição lançada no fim de semana do primeiro turno ‘Eleições 2002’, traz na manchete ‘A rota de Lula para o poder’ mostra o candidato saindo elegantemente trajado de um avião, avaliando que o ‘Lula moderado da campanha foi uma negação do ativista irado e radical do passado’. Encerra-se com a foto que reitera o passado: Lula à frente de uma assembléia de metalúrgicos na década de 1970.

Às vésperas (23/10) do segundo turno, Veja traz uma capa com o desenho de um monstro ameaçador com três cabeças, nas quais vemos as imagens de Lênin, Trotsky e Stalin; a manchete diz: ‘O que querem os radicais do PT. Entre os petistas, 30% são de alas revolucionárias. Ficaram silenciosos durante a campanha. Se Lula ganhar, vão cobrar a fatura.’ No interior, a matéria recebe o título ‘Vai ser preciso segurar’, apontando os grupos ‘Marxistas, leninistas e trotskistas que compõem o coração radical do PT’. As fotos trazem o Movimento dos Sem Terra, as Farc da Colômbia e a senadora Heloisa Helena com uma imagem de Che Guevara na parede. Pode-se perceber que as grandes ameaças à estabilidade do País encontram-se no próprio partido. É o lobo com pele de cordeiro. O jornalista e pesquisador Bernardo Kucinski comenta que, naquele momento, a ‘Veja, ainda inconformada com a perspectiva cada vez mais forte de vitória de Lula, inaugura um novo gênero jornalístico, inspirado nos filmes de terror americanos’. (www.teste.observatoriodaimprensa.com.br), 21/10/2002 A segunda manchete de capa aborda outro receio do momento: ‘Brasil. O risco de um calote na dívida’. Pode-se dizer que a revista trouxe à cena dois ‘fantasmas’: o risco colapso do Brasil e o as esquerdas do passado que estariam vivas no PT.

A transição, ou ‘a ironia da história’

Após a eleição, a Veja publicou um farto material buscando traçar um perfil de um fato político inédito no país: o PT e um ex-operário na presidência da República. Metade das capas das edições de novembro 2002 a janeiro de 2003 foram destinadas ao tema e em todos os números houve matérias sobre a transição. Nesses meses, Lula é apresentado como uma incógnita, o PT na presidência também. Prosseguem as metáforas infantis e o tom das reportagens, no início enfatiza o lado épico do momento, mas regra geral, é irônico ou sarcástico.

‘Triunfo histórico’ diz a capa do dia 30 de outubro, edição após o 2o turno. Esse número traz uma reportagem especial sobre ‘O primeiro presidente de origem popular’. ‘Seu desafio: retomar o crescimento e corrigir as injustiças sociais sem colocar em risco as conquistas da era FHC’. ‘Lula muda a história’ é o título do artigo que comenta a vitória, a foto traz o menino aos três anos, ‘com sandálias emprestadas pelo fotógrafo’. A matéria principal se intitula ‘Vinte anos na oposição’, nas fotos vemos a transformação do ex-torneiro mecânico na caminhada ao Palácio do Planalto. Um Box apresenta ‘Os 12 trabalhos de Lula’, nele vemos um desenho com Lula em roupas gregas, lutando contra grilhões que o prendem.

Na primeira semana de novembro, a revista anuncia ‘A cúpula da nova corte. Os três mosqueteiros com quem é preciso falar para ser ouvido no governo de Lula.’ Na foto eram vistos Antônio Palocci, Luiz Gushiken e José Dirceu, os quadros mais próximos ao presidente. A reportagem ‘Especial’ apresentava ‘a tróica que teve alta influência em sua campanha, tem profundo domínio sobre o Partido dos Trabalhadores e, possivelmente terá papel relevante na formação de seu governo .’

No final de novembro, o veículo numa matéria interna ironiza ‘O PT que aprendeu a dizer Sim… Lula estende a rampa de sua arca às espécies políticas mais variadas e mostra habilidade para o jogo das coalizões no Congresso Nacional.’ (27.11) A legenda da foto-montagem apresenta ‘A arca de Lula: sempre cabe mais um, mas o PT acha que pode evitar fisiologismo’. Na montagem vemos fotos de Aécio Neves, José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, Brizola, Garotinho, entre outros. Ao reunir velhos nomes da cena política brasileira, a revista parece duvidar da eficiência do PT conseguir o objetivo.

Em dezembro, destaca-se a presença de Lula nos Estados Unidos. A manchete de capa anuncia ‘Lula vai a César. O encontro de Lula com George Bush em Washington marca o início de uma longa negociação que vai definir o tipo de nação que o Brasil será.’ (11.12) A foto da capa traz Bush com roupas de imperador romano. Esse não foi o único destino, nem sequer o primeiro, mas talvez fosse o mais temerário. No interior lemos que ‘O Brasil decide seu futuro no império. O encontro entre Lula e Bush é o começo de uma árdua negociação sobre a Alca. Ela será mais decisiva para moldar a economia Brasileira do que qualquer medida interna do novo governo’.

Em dezembro, após a divulgação dos quadros do novo ministério, a manchete de capa mais uma vez ironiza:

‘Quem diria…Um ex-banqueiro internacional vai dirigir o Banco Central petista. Um ex-troskista será um ministro da Fazenda. O governo do PT vai manter os juros altos o quanto for necessário. Lula voltou dos EUA chamando Bush de aliado.’

Na manchete da reportagem interna se lia ‘O médico e a fera do mercado’. O subtítulo apresentava ‘A cúpula da economia do governo do PT será formada por um ex-trotskista e um financista internacional. É incrível, mas o pensamento deles é muito parecido.’ Ironia da história, a outrora esquerda radical, hoje segue a cartilha do mercado.

‘Trapalhadas na decolagem’

A primeira edição de janeiro registra a posse do novo presidente. A manchete da capa anuncia ‘Lula-de-mel. A partir de agora começa a cobrança’. A reportagem ‘Especial’ traz uma tarja verde-amarela. Na primeira página da matéria vemos um tom épico ‘Um dia para a história’ e o destaque de um fragmento do discurso de posse de Lula no Congresso:

‘Quando olho para minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical. Que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de supremo mandatário da nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.’

A revista pinça das palavras do próprio presidente, uma síntese de sua trajetória. Um homem com uma história similar à maioria dos brasileiros, marcada pela exclusão, que chega ao topo. A foto da capa traz Lula e sua esposa sorrindo durante um passeio de Rolls-Royce pelas ruas de Brasília. Uma matéria analisa seu discurso, ‘Ele falou em mudar 14 vezes. Mas, no conteúdo do discurso de Lula, vê-se que o novo presidente promete continuar e aprofundar as reformas econômicas e sociais iniciadas por Fernando Henrique’. O veículo destaca o binômio mudança e continuidade presente no discurso do novo presidente, parece satisfeito com a prudência exibida pelo novo governante.

Vemos também um exercício de imaginação, no qual procura-se imaginar a trajetória do país se Lula tivesse sido eleito em 1989: ‘E se ele ainda fosse assim? Uma reflexão sobre as chances de Lula caso tivesse sido eleito com o discurso radical do passado.’ A legenda da foto traz ‘Lula, nos tempos da barba e do verbo agressivo: ele próprio, hoje, agradece não ter sido vitorioso na disputa de 1989.’ A matéria começa lembrando o presidente socialista Salvador Allende, eleito em 1973, no Chile, um governo que ‘durou pouco’ e apresenta imagens do radicalismo de Lula e do PT. Em outro momento, Lula teria conduzido o país a um desastre, como nossos vizinhos. Hoje pode dar certo. Só a esquerda renovada pode ter chances. Esta parece ser a moral da história.

Na segunda semana de janeiro, o veículo traz na capa uma caricatura de um avião pilotado por Lula no qual viajam seus principais assessores, nela apresenta o que julga serem ‘Trapalhadas na decolagem’. Deslizes ou incongruências no começo do governo Lula. A reportagem ‘Especial’ com tarja verde-amarela pergunta ironicamente ‘O que é isso, companheiros?’, avaliando que ‘Com anúncios mirabolantes, críticas aéreas e trombadas entre ministros, o governo Lula começa em clima de factóides’. Um quadro com 10 itens aponta as ‘Confusões na largada.’

Cabe dizer que no final do primeiro mês de governo, uma reportagem ganha outro tom. ‘O elo entre dois mundos. Ao unir as mensagens de Porto Alegre e Davos, Lula desponta como o construtor da 3a via.’ Nela, diferentemente das anteriores, o veículo traça uma projeção altamente positiva de um evento único, possível porque o PT participou da criação de um espaço de encontro e discussão entre os movimentos sociais de todo o mundo, como um dos idealizadores do Fórum Social de Porto Alegre e porque o seu antigo presidente, hoje assumiu a condução da República. Por isso Lula esteve presente no Fórum de Porto Alegre e no Fórum Econômico Mundial, seu oposto.

Em geral nas reportagens há um toque (ou uma porção) de ironia, quando não de sarcasmo. O discurso de posse traz um alívio, o novo PT não pensa mais em fazer revolução, nem em se indispor com o capital, mas na semana seguinte se anunciam as ‘trapalhadas na decolagem’.

Os bichos na Veja

Ao analisar o corpus nos deparamos com o imaginário do universo infanto-juvenil presente na política. Surgiram então uma série de questões. O que significa o recurso ao imaginário infantil nas páginas da Veja? Em que momento ele é usado? Por que apenas Lula e o PT recebem estas associações?

No período surgem ilustrações infantis em dois outros momentos. Na edição de 16 de outubro vemos ‘O parque dos dinossauros’, com as fotos de Quércia, Collor, Brizola e Maluf em corpos de dinossauros e a linha fina apresenta ‘estas espécies foram tiradas de circulação’.

Na primeira semana de dezembro um monstro que representa o fantasma da inflação. ‘Ele voltou. Inflação. A subida de preços deve ultrapassar os 10% neste ano, despertando o dragão inflacionário que atemorizou os brasileiros no passado.’ (04.12) No interior uma matéria de 9 páginas com gráficos que mostravam ‘Preços de arrepiar’ e quadros que lembravam a ‘Alemanha na década de 20: hiperinflação e desespero.’ Soa como uma advertência para a administração prestes a se inaugurar: a realidade não está para festas, nem para improvisos. Vale lembrar que ter ‘domado’ a inflação era o grande ‘triunfo’ do presidente Fernando Henrique Cardoso, um governo bem avaliado pela revista.

Acreditamos que este recurso se insere na estratégia de chamar a atenção de seu público leitor. Política não é um assunto que vende, dizem os editores, por isso, metade das capas aborda temas comportamentais de maior saída na atualidade. Mas a revista não tem seu faturamento preso à venda em bancas, ele está garantido com as assinaturas. Assim a revista insere a política em suas capas associando-a a imagens conhecidas pelo público. No entanto, a nosso ver, ao incorporar apelos ao imaginário a revista trabalha com simplificações. Por outro lado, nos oito meses analisados no registro da política, apenas o PT recebeu associações infantis, fato no mínimo preocupante, pois revela um enquadramento inusitado de uma candidatura e do agora presidente da República. A recorrência ao universo infantil tem sérias repercussões, se na campanha colocava Lula numa posição de inferioridade, na presidência subtrai seriedade e credibilidade a seu governo.

Lula indigesto

Ao longo dos meses de corrida eleitoral, a Veja elaborou um conjunto de representações dos candidatos e cada uma tornou-se um enquadramento, de acordo com o qual, o presidenciável devia ser lido. Ciro, o candidato destemperado e com alianças suspeitas, Garotinho, um populista religioso, Serra, um tanto ambíguo, mas uma cabeça na política, Lula, agora paz e amor, mas já foi radical.

As representações não permitem dizer que a revista apóia enfaticamente um candidato, mas sem dúvida apóia a continuidade do governo FHC, o que a leva a ver com bons olhos a candidatura de Serra. Sem dúvida, não apóia o candidato do PT. As associações recebidas por Lula e por membros do partido evidenciam a suspeita ou o temor que inspira. Primeiro, a transformação é questionada, deve ser uma fachada eleitoreira, depois da eleição ao ver as primeiras medidas do novo presidente, ironiza ‘quem diria…’

Se a Veja representa os setores hegemônicos do Brasil, pode-se dizer que eles ainda não digeriram Lula na presidência. A vitória de Lula, bem como sua posse ganharam um tom épico, espetacular. Mas, por outro lado, as representações de Lula e do PT estão recheadas de associações a mitos do imaginário popular ou do universo infanto-juvenil, a arca de Noé, os três mosqueteiros entre outros, ou então contém toques de ironias ou de sarcasmo como vimos, na fórmula, ‘espetáculo das trapalhadas’, ‘jogo dos sete erros’.

O veículo parece ficar satisfeito com o discurso moderado do presidente, que na posse pregou ‘mudança sem atropelos’, mas não ficará contente com a dinâmica da mobilização social que virá nos meses posteriores.

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Doutora em Sociologia pela USP, professora da Universidade Metodista de São Paulo