Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A espetacularização do humano

‘E sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado’ (Feuerbach, prefácio à segunda edição de A essência do cristianismo).

A cultura fragmentada, possibilitada pela variedade de caminhos da internet, embora contenha ética e valor próprios de grupos e nichos diversos coloca em xeque um dos elementos fundamentais para a autonomia dos indivíduos: a responsabilização pelas próprias escolhas.

Se verdadeira ou não esta constatação, o certo é que ela nos inquieta e nos conduz a uma discussão mais aprofundada sobre o assunto e a alguns questionamentos: de que forma isso vem afetando o homem deste século? Como as tecnologias midiáticas estão influenciando na configuração desse novo homem? Que respostas podemos esperar desses novos tempos em que todos são produtores e consumidores ao mesmo tempo? Quais recursos serão utilizados para atrair esse novo consumidor/leitor?

Tais indagações nos surgem como norteadoras para as reflexões apresentadas neste estudo, cujo objetivo é discutir o espaço virtual como palco de audiência, do espetáculo, em que cada um tenta disputar o seu quinhão de importância e fama, utilizando-se de expedientes e recursos diversos, muitas vezes sem o menor compromisso com a preservação da ética.

Para esta discussão, tomaremos como base alguns teóricos (Adorno, 1995; Anderson, 2004; Debord, 2003; Dines,2009; Hall, 2005; Negroponte, 2003; Palácios, 2008) e analisaremos algumas passagens do filme Sem Vestígios (Untraceable – direção de Gregory Hoblit – EUA, 2008), que traz à tona uma discussão se não nova, muito interessante: a guerra pela audiência a qualquer preço.

Apesar de se tratar de um filme, portanto ficção, a análise da obra possibilita reflexões sobre as transformações tecnológicas e a construção de novas formas de relação e interação social. O filme apresenta uma trama em que uma divisão do FBI, dedicada à investigação e condenação de criminosos que atuam através da Internet, depara-se com um assassino perito em Internet que exibe seus assassinatos em seu website, bem como a agonia das suas vítimas, cujo destino fica nas mãos dos internautas: quanto mais visitas o site recebe, mais rápido as vítimas morrem. E por incrível que pareça, as vítimas morrem muito rápido.

A trama apresentada no filme, juntamente com algumas reflexões teóricas, nos traz questionamentos e nos incita a refletir sobre as relações que perpassam o ambiente virtual e sobre a interatividade que é construída entre os sujeitos leitores/navegantes, ativos e passivos de um processo ou história construída em um ambiente virtual/real a partir da globalização e do advento da Rede Mundial de Computadores, o que provocou uma revolução só comparada à Revolução Industrial, no século 18.

Mundo, mundo, vasto mundo

Mediado por interfaces várias, o homem se apropria da tecnologia e referenda o seu desejo de potência. O que antes era desconhecido, hermético, passa a ser natural, quando, conectado, brinca de deus ao ensaiar, com cores, formas e sons, o grande texto ‘mundo’. Com um simples toque, é capaz de viajar para as mais longínquas paragens e interagir – na ilusão de sua virtualidade – com outros mundos tão ‘reais’ quanto o seu.

Cada mundo comporta suas peculiaridades, é preciso desvendar-lhe os códigos, as várias linguagens com as quais opera, para sentir-se inserto e dele apropriar-se. Qualquer descuido pode ser fatal, é preciso atenção total para não se deixar contaminar pelas pestes que rondam o ciberespaço, os monstros escondidos nos becos digitais, prontos para atacar o incauto navegador aventureiro.

Assim como o espaço real, o espaço digital também tem seus limites, qualquer desatenção pode custar caro ao transgressor, fazê-lo refém da própria astúcia, mas aí a pena deixa de ser virtual e passa a ser real. Cada um deve saber aonde pisar, para não ser tragado pelos movediços links, ali postos, e embarcar num mar textual de mentiras e ciberilusão.

Para qualquer viagem é preciso precaução; as provisões devem ser suficientes para o embate da jornada; é preciso ter pleno conhecimento das vias a serem percorridas, para isso o viajante deve munir-se de bússola e mapas, é preciso não confundir as sinalizações, pois como disse o poeta Fernando Pessoa, citando Pompeu, general romano: ‘Navegar é preciso, viver não é preciso’, mas essa precisão pode ser relativa, caso o navegante desconheça os códigos.

Depois de assegurar-se das dificuldades da viagem, de conhecer o percurso a ser seguido, e dominando aquilo que é básico a qualquer internauta/cidadão, colocamo-nos nos nossos assentos, na cadeira de nossa escrivaninha, e ali viajamos por mundos, até então inimaginados, à procura de novidades, notícias, inventos e/ou por simples curiosidades.

Basta um cabo, ou um sistema que nos permita uma conexão, para mergulharmos hipertextualmente nessa vastidão digital de convivências nem sempre amistosas, mas necessárias, como podemos presenciar, cada vez mais, a proximidade entre a blogosfera e a midiasfera, uma se alimentando da outra, ou quem sabe, uma contribuindo com a outra: pautando ou repercutindo fatos de uma humanidade há muito esquecida.

O que antes era espaço privilegiado da mídia, de quem detinha o poder econômico, passa a ser de todos, ou de pelo menos de quem quer e tem o que dizer como o são as revistas eletrônicas, os blogs, que vêm crescendo no grau de importância e passam a ter status de formadores de opinião, ganhando espaço nas páginas virtuais de grandes jornais do país, atraindo cada vez mais leitores, quando não, webespectadores, que, se conscientes ou não, passam a interagir com esta nova realidade.

Esta gama de produtos e opções culturais, de informações e lazer, de produtos e oportunidades, surgidos com a Internet, de certa forma mudaria a nossa forma de olhar o mundo, quando os espaços são vários, e cada um ‘sabe’ que caminho trilhar, já que a ele todas as vias são facultadas, momento em que os receptores de uma comunicação massiva dão um salto de ‘liberdade’ e passam a caminhar com os próprios pés e a ter vez e voz, aquilo de que fala Cris Anderson no seu livro A Cauda Longa (The Long Tail):

Cauda Longa é nada mais que escolha infinita. Distribuição abundante e barata significa variedade farta, acessível e ilimitada – o que por sua vez, quer dizer que o público tende a distribuir-se de maneira tão dispersa quanto as escolhas. Sob a perspectiva da mídia e da indústria do entretenimento dominantes, essa situação se assemelha a uma batalha entre os meios de comunicação tradicionais e a internet. Mas o problema é que, quando as pessoas deslocam sua atenção para os veículos on-line, elas não só migram de um meio para outro, mas também simplesmente se dispersam entre inúmeras ofertas. Escolha infinita é o mesmo que fragmentação máxima (Anderson, 2006, p.179, grifo meu).

Como aponta Anderson (2006), o advento da internet possibilitou às pessoas que a ela recorreram que também se dispersassem nessa babel de escolhas. Segundo ele, ao mesmo tempo em que se configurou como um manancial de oportunidades, gerou uma fragmentação máxima do mercado, na medida em que cada um passou a buscar aquilo que lhe convinha. Fato que ele comparou como uma batalha entre os meios de comunicação tradicional e a internet.

A citação de Anderson (2006), ao argumentar sobre a fragmentação do mercado, acaba por abordar também a fragmentação da cultura, característica do que se denominou ‘pós-modernidade’, uma vez que a segmentação do mercado (ponto de vista dos meios de comunicação de massa e do entretenimento) arrastou consigo o homem nele inserto. Se até pouco tempo só tínhamos o rádio, a televisão e o jornal, agora temos os blogs, o YouTube, o ciberjornalismo, todos convivendo lado a lado. Se antes a comunicação se dava de ‘um para todos’, agora ela se nos apresenta como de ‘todos para todos’, um espaço ‘democrático’, que vem se consolidando a cada dia, causando uma verdadeira revolução na busca pela audiência.

2.0 Ecos digitais

Na corrida sem volta pela audiência, muitos jornais, ao longo dos vinte anos de existência da rede mundial de computadores, puderam sentir a força dessa nova plataforma e as modificações dela advindas, o que os forçou a também buscar o seu quinhão na virtualidade, sob pena de perderem audiência e espaço nesse universo de possibilidades, como testemunha Dines, (2009) no seu artigo ‘www, 20 anos – Daily Me versus Daily We’, veiculado na página on-line do Observatório da Imprensa, quando aponta as diferenças básicas entre o jornalismo impresso e o jornalismo digital:

‘Não existe conflito entre o periódico impresso e a internet, são rigorosamente complementares. Existe, sim, um conflito entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual. Este conflito não pode ser ignorado e não se resume ao meio (medium) que empregam (papel ou ciberespaço). Trata-se de um confronto conceitual: o jornalismo virtual é uma opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do que o jornalismo impresso‘ (http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001 – grifo meu).

E acrescenta:

‘Quando um jornal como o Seattle Post-Intelligence, com 146 anos de existência, anuncia a sua migração para a web não está fazendo uma simples opção de formato e tecnologia, está mudando de finalidade. Deixa de ser o protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado, o Daily Me, o `Eu Diário’ (segundo definição de Nicholas Negroponte, do MIT, mencionado por Nicholas Kristof no Estado de S. Paulo (23/3). Um Daily We esmerado e engajado tem outras exigências’ (http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001 – grifo meu).

Como vimos, ao argumentar sobre os possíveis conflitos existentes entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual, mas não entre o periódico impresso e a internet, que, segundo o autor, são rigorosamente complementares, Dines (2009) se refere ao jornalismo virtual como opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do que o jornalismo impresso, e, logo em seguida, cita o caso do jornal americano Seattle Post-Intelligence, que ao migrar para a modelo virtual (internet), sai de um ‘processo social de massas’, ou seja, deixa de ser protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado.

A colocação de Dines (2009) é muito importante, pois corrobora com a nossa discussão, uma vez que trata das mudanças empreendidas pelos jornais, rádios e TVs, que ao migrarem para a plataforma digital, não o fazem somente porque está na moda, pelo contrário, o fazem porque se não procederem desta forma, correm o risco de ficarem para trás na concorrência cada vez mais acirrada e diversa. E aí, cada um buscará a maneira mais adequada para buscar os seus ‘leitores/webespectadores’.

São inúmeras as possibilidades ao alcance do internauta, vídeos e imagens; atrativos de toda ordem, sem falar na interatividade, já que a perspectiva é de co-autoria, de ‘todos para todos’ e não mais de ‘um para todos’, como no jornal impresso. Acrescente-se a isso, ferramentas importantíssimas de que se vale o ciberjornalismo ou jornalismo virtual, como a subversão da noção espacial, a desterritorialização, não mais há necessidade de se estar no local onde o jornal é impresso para lê-lo, só basta um clique, uma conexão. O tempo e o espaço são subvertidos, além de tudo isso, há ainda a memória à disposição do leitor, ali, permanentemente, hipertextualmente, como instrumento de reforço da notícia, dando a ela maior credibilidade, como podemos ler em Palacios (2008):

‘É bastante claro que as crescentes possibilidades abertas para a recuperação de Memória, a partir da sofisticação das bases de dados na produção jornalísticas têm efeitos que podem e devem ser avaliados: a) Nas rotinas produtivas nas Redações, com a crescente facilidade de consultas e apropriação de informações em bases de dados internas e externas ao veículo; b) Nos modelos de negócios, com uma vasta gama de possíveis incorporações de elementos de Memória como parte do negócio estabelecido para os jornais online;c) Na produção de formas narrativas diferenciadas, com distintas formas de incorporação de Memória (background, contexto, contraposição, etc);d) Nas formas de interação com o Usuário, que passa a dispor de recursos para investigar, no próprio site do jornal, aspectos históricos em torno do material de Atualidade que lhe é oferecido, bem como eventualmente personalizar sua Memória em espaços do próprio site jornalístico que utiliza’ (http://cencib.org/simposioabciber/conferencias.htm)

Assim como o jornalismo, que se vale dos mais variados recursos, como a memória, para chamar a atenção dos seus leitores, como foi citado acima, os blogs, as páginas especializadas em diversos assuntos, estão ali, prontos para lançarem os seus apelos, suas armadilhas, disputando em pé de igualdade os seus ‘eleitos’, e aí, basta um clique para ser transportado para uma nova dimensão, para uma nova realidade.

3.0 Ficção e realidade – a noção de co-autoria

Imerso nessa nova realidade, o indivíduo está livre para ir e vir, subir e descer, transgredir, quebrar os interditos da vida real, trair ou ser traído, morrer ou matar. Como no filme Sem Vestígios (Untraceable), direção de Gregory Hoblit – EUA, 2008, que traz uma trama que ressalta a guerra pela audiência a qualquer preço. A banalização do humano, que transforma o sofrimento alheio em números de audiência, de ibope. Um mundo que, à medida que se virtualiza, mais real e próximo se torna. Um mundo de imagens cada vez mais apelativas, muitas vezes, a depender do gosto do navegante, beirando a escatologia, o absurdo. A vida que imita a própria vida na sua barbárie imaginativa, daquilo que nos fala Debord (2003):

‘Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente’ (Debord, 2003, p.10).

Esta afirmação do autor ilustra bem a sociedade do espetáculo na qual estamos insertos num mundo sem fronteiras, sem escrúpulos, sem nenhum dono, onde a ética passa distante, em que os métodos para se alcançar a audiência chegam aos mais bizarros, como o foram o caso do jornalista americano Daniel Pearl, correspondente do Wall Street Journal, sequestrado e morto (decapitado) no Paquistão, em 2002. O assassinato foi filmado e divulgado no mundo todo pela mídia tradicional e pela internet. Pearl tinha 38 anos e sua mulher, Mariane, estava grávida de sete meses. Outros exemplos foram os ataques suicidas às torres gêmeas; a guerra entre Iraque e Kuait, transmitidas em tempo real, posteriormente a guerra tecnológica dos Estados Unidos e Iraque, culminando com o enforcamento de Saddam Hussein, que também foi mostrada nas duas mídias: tradicional e Internet, e tantas outras barbáries, que se nos revelam em tempo real, e que, de certa maneira, nos fazem partícipes desse perigoso jogo interativo para lá de real, como no filme Sem Vestígios.

Evocar o filme Sem Vestígios é um caminho para discutirmos e buscarmos uma compreensão desses novos tempos, dessa tecnologia – internet – que a muitos conecta e que a muitos insere. Pois ele nos mostra, a despeito de qualquer falha de roteiro ou julgamento estético, a capacidade humana de não mais se indignar com a violência crescente e globalizada, quando, por meio da rede de computadores, da blogosfera, produzem, em tempo real, o sofrimento dos seus pares, a espetacularização de crimes.

Para implementarmos esta discussão, atentemos mais uma vez ao que diz Debord (2003):

‘A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhes apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo está em toda a parte’ (Debord, 2003, p.19).

A trama do filme nos mostra uma divisão do FBI dedicada à investigação e condenação de criminosos que atuam através da internet, tendo à frente da divisão do cibercrime, a Agente Especial Jennifer Marsh (Diane Lane) e Griffin Dowd (Colin Hanks). Após investigarem e prenderem inúmeros criminosos virtuais (reais), os agentes se deparam com algo até então inédito: assassinatos transmitidos ao vivo, da forma mais bizarra possível, com a participação massiva dos webtelespectadores, que, pelo número de acessos, determinam a velocidade com que a vítima deve morrer.

O site denominado MATECOMIGO.COM, no primeiro momento lança convites on-line para que os internautas participem do jogo macabro, ou que se tornaria macabro, com a seguinte frase ‘Uma gata numa ratoeira, não é irônico?’, e, posteriormente a gata é morta. Os agentes fazem de tudo para rastrear o IP do computador do criminoso, mas não conseguem, o site está hospedado num domínio russo.

Depois de ter matado a gata, um homem é capturado e morto ao vivo, com requintes de crueldades. A vítima foi amordaçada, amarrada pelos punhos e pelas canelas, em pé, com os braços voltados para o alto. No seu peito fora gravado, com alguma coisa cortante, o nome do site MATECOMIGO.COM, à esquerda do vídeo aparecia um contador de acessos e um calibrador químico. Uma caixa que regulava a injeção de fluidos da vítima, os cabos ligados ao computador, e umas bolsas contendo anticoagulante. A droga chama-se Heparina, a dose certa, salva; a errada deixa a vítima hemofílica. Quanto mais acessos, mais dose é injetada e mais rápido ele sangra. Os acessos são muitos e a dose injetada foi de 3.80 cc, o homem morre. A vítima chama-se Hebert Miller, 54, de Sellwood, piloto de avião, trabalhava para Burnside Charter.

O telespectador, webespectador, da sua condição supostamente passiva, passa a interagir com o assassino, por meio dos seus acessos, e passa a ser ativo, tornando-se co-autor dessa narrativa bárbara. Quando falamos em ser passivo, apesar da participação como agente de uma escolha desse mundo fragmentado: Internet, já que os programas e sites são eletivos, é interessante atentar para o conceito de autonomia em Adorno(1995):

‘O que a psicologia profunda denomina superego, a consciência moral, é substituída no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém, justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, para usar expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação’ (Adorno, 1995, p.124-125).

O pensamento de Adorno (1995) nos remete a vários questionamentos e apresenta-se fundamental neste estudo, pois o conceito de autonomia nos leva a refletir sobre qual é o papel do indivíduo que atua livremente na internet e que percorre várias possibilidades de caminhos, valendo-se de interesses e busca por oportunidades diversas. Uma vez que a nossa discussão busca uma reflexão sobre a cultura fragmentada em oposição à massificação, à cultura de massa, à indústria cultural, estamos diante de uma realidade interessante, principalmente quando discutimos o papel do indivíduo a percorrer livremente as infovias, esse oceano de possibilidades de des/aprendizado, quando o universal se nos apresenta, e a noção de espaço e tempo são subvertidos. Quem acessa um site, o acessa por livre e espontânea vontade, a despeito de qualque link ou hipertexto que o atraia.

No caso do filme, em particular, quando os webespectador se conecta ao cibercriminoso (que também é um criminoso real, já que os crimes são reais e são praticados num espaço físico, que, apesar de ‘distante’, tornam-se próximos do webespectador), em vez de refletir sobre as consequências do seu clique, apenas tem a ilusão da interatividade ‘ativa’, porquanto a sua participação é conduzida pelo algoz, sem que tenha capacidade de refletir sobre sua (ir)responsabilidade perante o fato. Desconhece qualquer autonomia, no conceito adorniano, de auto-reflexão, de auto-determinação ou mesmo de não-participação.

Como estamos falando agora de ficção, numa perspectiva de que o sujeito é ‘destituído’ de autonomia nas suas escolhas, revelando-se, apesar da identidade que jura trazer consigo, um sujeito inconsequente ao interagir com seus pares num espaço de dimensões imensuráveis como o é a Internet, conforme mostra o filme Sem Vestígios, principalmente por esse espaço não se configurar mais como pertencente a uma nação específica, cidade ou lugar, cabe evocar aqui o pensamento de Hall (2005), numa compreensão de que a Internet acelerou e nos trouxe o verdadeiro sentido da globalização:

‘(…)Que impacto tem a última fase da globalização sobre as identidades nacionais? Uma de suas características principais é a ‘compressão espaço-tempo’, a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância’ Stuart (2005, p.69-70).

Como nos fala Stuart (2005), o espetáculo se caracteriza pela instantaneidade do acontecimento, quando os espaços são suprimidos e não mais são empecilhos para que um extremo se aproxime do outro, para que as partes se encontrem, para que os fragmentos se unam, na ilusão de uma identificação coletiva, quando na verdade o ponto de aproximação é apenas o espetáculo, como podemos constatar no filme Sem Vestígios, quando o assassino, usando de recursos extremamente sofisticados, um site com streaming de origem fantasma e irrastreável, convida o mundo para ajudá-lo a matar quem ele quiser e ninguém pode fazer nada para impedi-lo. O que se tem são pessoas que, atendendo ao apelo do criminoso, por curiosidade ou por deleite, atendem ao chamado e tornam-se co-partícipes daquele espetáculo macabro, ou seja, submetem-se ao jogo sem se dar conta da gravidade do ato praticado, como podemos ler em Debord (2003):

‘O espetáculo submete para si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores’ (Debord, 2003, p. 12-13).

No filme, muitas outras pessoas são assassinadas, seguindo a mesma dinâmica do jogo, ninguém resiste aos apelos do algoz e assiste impavidamente o dilaceramento de uma sociedade extremamente fragmentada a ruir mais ainda, sem ter como recompor-se dessas tragédias diárias, mostradas ao vivo e em cores para todo mundo.

Uma passagem do filme muito interessante, para não dizer macabra, é quando ao investigar o passado do assassino, a agente do FBI descobre que o pai dele se suicidara com um tiro, em cima da ponte principal da cidade, despencando lá de cima, batendo a cabeça na marquise do restaurante que ficava logo abaixo, despedaçando o cérebro, o qual foi encaminhado para o legista, enquanto que os óculos do suicida ficaram intactos e foram achados por um funcionário do restaurante, que os colocara à venda on-line, que, para a surpresa de todos, fora vendido em tempo recorde. Acrescente-se a isso o fato de que a televisão, cujo repórter cobriu essa tragédia (o suicídio), e que também fora vítima dele (o terceiro a ser assassinado com transmissão ao vivo pela Internet) – na época transmitiu a cena do suicídio em tempo real e, depois, reprisou-a várias vezes para compensar a perda de audiência que vinha sofrendo.

‘A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado‘ (Debord, 2003, p.18. grifo meu)

O pensamento de Debord (2003) mais uma vez nos ajuda a pensar estes novos tempos, tempos de fragmentação, tanto da cultura como do ser humano, quando as pessoas imersas nos seus desejos, nos seus dramas, segmentadas nos seus gostos, caminham em várias direções, às vezes conduzidas por forças que desconhecem, são colocadas nos mesmos espaços, sejam eles reais ou virtuais, não porque têm os mesmos gostos, mas pelo fato de alimentarem no espetáculo que presenciam a ilusão da potência que lhes falta, configuram-se como parte de um todo que não existe, são apenas seres fragmentados que marcham em busca de uma identidade.

Considerações finais

Os tempos são outros, todos nós o sabemos, mas com eles caminhamos, somos conduzidos, esperneamos, resistimos, nos indignamos, mas não tem jeito, o futuro está aqui, diante dos nos olhos, na ponta dos nossos dedos, nas nossas digitais, na nossa Iris, sentimos os seus efeitos, também somos futuro.

Vivemos a era digital, as tecnologias pululam, dão as cartas, os homens a elas se unem, fazem delas a extensão dos seus corpos, como disse Marshall McLuhan, ficam fascinados com tamanha transformação e facilidades, mas também se inquietam com os abusos, pirataria, roubos e crimes de toda ordem, como já previra em 1995 Nicholas Negroponte:

‘Na próximas década, veremos casos de abuso de propriedade intelectual e de invasão de nossa privacidade. Enfrentaremos o vandalismo digital, a pirataria de software e o roubo de dados. E, pior do que isso: testemunharemos a perda de muitos empregos para sistemas totalmente automatizados, que em breve vão mudar o local de trabalho dos colarinhos-brancos na mesma medida em que transformaram a paisagem nas fábricas. A noção do emprego vitalício numa única empresa já começou a desaparecer’ (Negroponte, 2003, p.215).

Negromonte estava certo, assim como no filme Sem Vestígios em que bandidos invadem páginas e computadores alheios e conseguem acionar dispositivos que matam. Na vida real, é cada vez mais ousada a atitude dos hackers, como os que agora invadiram site do Pentágono e roubaram projeto do avião F-35 Lightning II, avaliado em US$ 300 bi, segundo o Wall Street Journal, Ex-oficiais do governo americano disseram que os ataques partiram da China, mas que não poderiam precisar a identidade dos hackers. Com tudo isso, estamos vivendo uma época em que a ficção se repete no nosso cotidiano, em que virtual e real se fundem, se completam, como acreditou e acredita Nicholas Negroponte: ‘A vida digital é outra coisa. Não estamos esperando por uma qualquer invenção. Ela está aí. Agora. E quase genética em sua natureza, pois cada geração vai se tornar mais digital do que a anterior.’ E assim como ele, também acredito nestes novos tempos, comungo desta nova era, mas sempre atento para não sucumbir nas armadilhas dessas largas bandas da digitalidade.

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Professor universitário e poeta, Palmas, TO