Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A polêmica sobre o fim do diploma

A não exigência do diploma de nível superior específico para o exercício da profissão de jornalista – decidida pelo Supremo Tribunal Federal na quarta-feira (17/6) a partir de uma ação protocolada pelo Ministério Público Federal e o Sindicato das Empresas de Rádio de Televisão do Estado de São Paulo – provocou intensa polêmica. O decreto-lei que regulamenta a profissão, instituído durante o regime militar, foi considerado incompatível com a Constituição de 1988. Profissionais de imprensa, entidades de classe e a sociedade em geral debateram os prós e contras da decisão. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (23/4) pela TV Brasil analisou os diversos ângulos da questão.


O programa contou com a presença do jornalista Mario Vitor Santos, em São Paulo. Ex-ombudsman da Folha de S.Paulo, onde trabalhou por 15 anos em diversas funções, Mário Vitor é diretor Casa do Saber e foi professor de História da Comunicação da Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, em São Paulo. O professor de jornalismo Muniz Sodré participou pelo estúdio do Rio de Janeiro. Mestre em Sociologia da Informação e Comunicação e doutor em Letras, Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de mais de 30 livros na área de Comunicação, também preside da Fundação Biblioteca Nacional.


Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’ o jornalista Alberto Dines comentou os fatos de destaque dos últimos dias no Brasil e no mundo. O primeiro assunto da seção foi a manutenção do senador José Sarney como colunista da Folha de S.Paulo. ‘O seu concorrente, o Estadão, está aproveitando o embaraço da Folha para comandar as denúncias. O que lhe deu o ânimo para investigar outros assuntos, inclusive a brutal repressão no Araguaia durante a ditadura’, avaliou. Em seguida, Dines comentou a censura imposta pelo governo do Irã aos meios de comunicação após o controvertido resultado das eleições presidenciais. ‘O que apavora os aiatolás não é o banho de sangue nas ruas de Teerã, é saber que a censura que decretaram não tem efeito: a resistência ao arbítrio está sendo feita com celulares e laptops’, disse.


A qualidade do jornalismo em questão


Em editorial sobre a necessidade de diploma específico para jornalismo, Dines comentou que após mais de três décadas de ‘manobras e maquinações’ o patronato consegui derrubar o diploma. ‘Sob o pueril pretexto da defesa da liberdade de expressão, patrocinaram um retrocesso que afetará decisivamente a qualidade do nosso jornalismo. Estes novos defensores da liberdade de expressão até agora não se deram ao trabalho de explicar à sociedade quem lhes conferiu o diploma de representantes do interesse público’, criticou.


Dines destacou que o fim do diploma explicitou o comportamento da mídia ‘quando os seus interesses estão em jogo’. ‘Não é estranho que, na grande mídia, só se manifestaram os profissionais contra o diploma? A favor do diploma só apareceu um grande nome: o colunista da Folha, Janio de Freitas. Por acaso não há outros? Onde está o pluralismo de uma imprensa que se pretende livre e objetiva?’, questionou [ver abaixo a íntegra do editorial].


Dines foi ao Recife entrevistar o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, um dos mais consagrados especialistas em Direito da Comunicação do país. O jurista avalia que o STF não era a instância apropriada para a discussão desta matéria. O Supremo está progressivamente e indevidamente assumindo as funções do Congresso Nacional. ‘É como se o STF estivesse assumindo um papel que deveria ser desempenhado pela Câmara e ela se recusa’, o jurista. O Supremo ‘já tinha tido uma decisão lamentável’ sobre a Lei de Imprensa. José Paulo Cavalcanti Filho explicou que o discurso em torno do assunto é ambíguo. ‘O STF não acabou com o diploma. Revogou o decreto-lei 902. A Lei de Imprensa já havia feito isso, convertendo o Brasil no único país entre os 191 que fazem parte da ONU a não ter Lei de Imprensa, o que é grotesco’, apontou.


Dines pediu para o jurista explicar se o STF, de fato, acabou com a exigência do diploma. ‘O que o Supremo fez foi reconhecer que o decreto-lei 972 é incompatível com a Constituição democrática de 1988.’ Promulgado pela Junta Militar, com a assinatura do então ministro da Educação Jarbas Passarinho, o decreto estabelecia ‘limitações severas’ às atividades jornalísticas. No texto do decreto-lei havia algumas exigências, entre elas o registro do diploma no Ministério do Trabalho, que passava a ser o órgão que autorizava o registro de jornalistas. Para o jurista, este fato converteu o jornalismo ‘na primeira e única atividade’ cujo controle do exercício depende não dos próprios profissionais, mas do governo. ‘Ao dizer que o decreto-lei é incompatível com a Constituição Federal, por conseqüência o diploma deixou de existir. O que não quer dizer que o Congresso Nacional não legisle sobre o assunto’, disse.


Democracia vs. informação


Existe um mito central, na opinião de José Paulo Cavalcanti Filho, que é a identificação equivocada entre democracia e informação. ‘Democracia não é só liberdade de informar. É também a mais absoluta responsabilidade no uso da liberdade de informar. Há limites democráticos que devem ser consensualmente observados’, explicou. O jurista comentou que não se imagina que profissionais de outras áreas traiam o sigilo que envolve a atividade e a imprensa deveria ter consciência disso. O estudo auxilia o jovem jornalista a compreender este tipo de dilema ético. É preciso haver regras mínimas para a prática jornalística.


A reportagem exibida ao longo do programa ouviu a opinião de especialistas no assunto. O ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, disse que o entendimento do STF, similar ao da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é o de que a profissão de jornalista pode ser exercida independentemente da realização de um curso específico. Pode-se ‘exercer bem’ esta atividade através de várias modalidades de formação. ‘Isto não dispensa critérios éticos, aprendizados básicos’, ressaltou.


A decisão desregulatória do Supremo por si só não significa uma melhora na qualidade do jornalismo. ‘Ela vai dar maior mobilidade de exercício profissional, vai tranqüilizar os profissionais que já exercem a atividade e muitas vezes se sentiam perseguidos pela atuação dos órgãos de corporação até com a instalação de um inquérito criminal por um eventual exercício indevido da profissão’, disse.


Jornalismo nivelado por baixo


Para o ministro Marco Aurélio Mello, o único a votar contra a não obrigatoriedade do diploma, a decisão do STF acabou nivelando por baixo a profissão de jornalista. ‘Eu creio que hoje o jornalismo, pelo menos sob o ângulo formal, está um pouco menor do que já esteve anteriormente considerado o decreto-lei que já estava em vigor há 40 anos’, disse. O argumento de que o diploma vem de uma época de exceção é ‘meta-jurídico e não jurídico’ e não pode ser potencializado a ponto de se colocar no decreto-lei a pecha de inconstitucional. Se não houver uma auto-regulamentação pelos órgãos de imprensa, haverá prejuízo para a sociedade com a admissão, em funções relevantes, de pessoas que não possuam uma ‘escolaridade maior’. Só os leigos saíram ganhando neste mercado altamente competitivo, na visão do ministro Marco Aurélio Mello.


A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) recebeu com perplexidade e indignação a decisão do Supremo. ‘Ela representa um atraso de muitas décadas em relação ao esforço que a comunidade jornalística tem feito desde os anos 1950 para assegurar direitos que nunca lhes foram concedidos’, criticou o presidente da ABI, Maurício Azêdo. A decisão deixa o jornalismo em uma ‘zona de limbo’. Como a profissão é regulamentada, depende do registro em uma das Delegacias Regionais do Trabalho ‘que não vão saber o que fazer diante das pessoas que lhes baterem à porta pedindo para fazer o registro profissional’. Por outro lado, as empresas ficaram ‘de mãos livres’ para contratar pessoas que queiram exercer a atividade jornalística. ‘Isso empurra os salários para baixo, elimina garantias que os jornalistas conseguiram após décadas de lutas e transforma a atividade de comunicação em uma selva’, avaliou.


O deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ) apresentará ao Congresso Nacional dentro de alguns dias um projeto que regulamenta a profissão. Na avaliação do deputado, é possível construir um projeto que preserve a profissão, garanta a jornada de trabalho e assegure as datas de reposição salarial. ‘Você não pode simplesmente dizer `olha, acabou esta profissão aí´. Eu considero um retrocesso. O direito à informação de boa qualidade é direito do cidadão’, disse. Este novo projeto deve levar em conta o avanço tecnológico que vem transformando o panorama das comunicações.


Para o jornalista e professor Caio Túlio Costa, a decisão o Supremo traz vantagens ‘muito grandes’ não só para o jornalista, como também para os leitores e empresas de comunicação. Nos mais de 30 anos de exercício do jornalismo, Caio Túlio sempre defendeu a não obrigatoriedade do diploma específico. Mesmo observando que muitas escolas de jornalismo formam ‘bons profissionais’, Caio Túlio considera que o ensino tornou-se uma indústria de formação de jornalistas que coloca no mercado pessoas pouco qualificadas para o exercício da profissão.


O diploma em outros países


O Observatório exibiu participações gravadas via internet dos correspondentes Sílio Boccanera, baseado em Londres, e Ariel Palácios, que reside em Buenos Aires. Boccanera explicou que não existe a exigência do diploma para a prática jornalística na Inglaterra, na Escócia, no País de Gales, nas duas Irlandas e na maior parte dos países da Europa continental. ‘Na verdade, eu ousaria dizer que os editores aqui ficariam espantados se soubessem que poderiam contratar apenas quem fosse formado em jornalismo. Eles consideram que o essencial é a formação da pessoa. Talvez até uma qualificação universitária que pode ser, inclusive, em Jornalismo, mas que na maioria das vezes não é’.


Sílio Boccanera disse que as universidades oferecem um curso chamado Estudos de Mídia, mas que esta formação não é ‘muito bem-vista’ porque enfatiza mais a teoria do que a prática. Na Inglaterra, o recrutamento de jornalistas é feito ‘com base no potencial que o editor acredita que ele vá oferecer’. A maioria das empresas oferece treinamento através de um curso específico de jornalismo. De uma maneira geral, os editores que contratam não levam em conta a formação acadêmica em jornalismo. ‘Como experiência pessoal de alguém conhece jornalismo aqui na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil – e eu sou formado em jornalismo – eu diria que a exigência do diploma não faz muito sentido. Não é um diploma inútil, mas não deve ser uma exigência, um requerimento oficial para que alguém possa exercer uma profissão’, avaliou.


Na Argentina, nunca existiu a obrigatoriedade de diploma para exercício da profissão de jornalista. Ariel Palacios explicou que os profissionais argentinos têm uma ampla variedade de formação. A geração de veteranos é composta quase que integralmente por pessoas que cursaram um amplo leque de cadeiras de ciências humanas, sociais e econômicas ou não têm grau superior. Poucos desta geração são formados em comunicação social. A geração intermediária, formada nos anos de 1980, é mista. Já os profissionais que entraram no mercado a partir de meados da década de 1990 são, em sua maioria, formados em comunicação social.


A tendência da contratação de pessoal formado em jornalismo na Argentina ocorreu de forma natural nos últimos anos apesar da ausência da obrigatoriedade do diploma. Ao longo dos anos 1970 existiam poucas faculdades de jornalismo, mas a volta da democracia em 1983 e o fim da censura começaram a expandir o mercado. O boom ocorreu no início dos anos 1990, com o crescimento dos canais a cabo, além do crescimento do prestígio do jornalismo por conta de reportagens investigativas sobre corrupção. ‘Isso aumentou a demanda e gerou um boom de faculdades pequenas’, explicou Palacios. Além disso, surgiram diversos cursos técnicos, principalmente na área de jornalismo esportivo.


Liberdade de expressão na berlinda


No debate ao vivo, Dines levantou a seguinte questão para o jornalista Mário Vitor Santos: se ele fosse diretor de um jornal e precisasse contratar um diretor de Redação, convidaria para o cargo o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF? O jornalista afirmou que convidaria e que não teria motivos contra o ministro assumir a função porque ele parece qualificado. Para o jornalista, a Constituição libera ao cidadão a faculdade de informar e de se expressar. O direito dos jornalistas não pode estar acima dos direitos do cidadão comum. Os ministros que votaram a favor da não obrigatoriedade do diploma ‘votaram do lado mais democrático’.


Dines comentou que a cobertura da imprensa sobre a decisão do Supremo foi manipulada e parcial. Mario Vitor Santos concordou que a cobertura, em geral, foi distorcida. Mas este dado não anula o fato de que a discussão central é uma questão democrática que não diz respeito somente à mídia, mas aos cidadãos de forma geral. Envolve a discussão de direitos democráticos e republicanos conquistados ao longo da história – e esses direitos facultam a qualquer um informar e se comunicar. O direito de uma categoria profissional não deve se sobrepor às demais garantias. Na avaliação do jornalista, era insustentável manter a legislação em vigor desde o regime militar, que visava restringir a liberdade de informar.


‘É bom que acabe o controle governamental sobre a profissão de jornalista. Que venham os cientistas, os artistas, os diretores de teatro, os técnicos, os escritores trabalhar na imprensa e competir com os jornalistas formados nas universidades. Isso não será negativo’, disse Mário Vitor Santos. A competição é salutar e levará a um melhora das escolas de jornalismo.


Uma questão complexa


A classe dirigente decidiu a questão do diploma específico para jornalistas de acordo com seus próprios interesses, na opinião do professor Muniz Sodré. ‘Não foi pela democracia nem por amor à liberdade que se decidiu. Foi por amor próprio’, criticou. Há um erro de avaliação, na opinião do professor. Os ministros do Supremo, assoberbados pela quantidade e profundidade de assuntos aos quais se dedicam, não têm tempo suficiente para estudar a complexidade do tema da formação e da comunicação na sociedade contemporânea. Para ele, é preciso que se observe a questão ética do jornalismo. A imprensa tem responsabilidade na formação das gerações futuras e não pode se balizar por interesses imediatos comandados pela mídia. A decisão do Supremo é ‘mais um capítulo da judicialização da vida social. É uma legislação indevida da Justiça em cima de assuntos que deveriam ser discutidos na Câmara’, afirmou.


Para Muniz Sodré, não é válido o argumento de que o jornalismo não é uma verdade científica e por isso não precisa de um diploma específico para o exercício da profissão. Outras ciências interpretativas, como direito, economia e administração, não têm a necessidade do diploma contestada. ‘Se a desregulação fosse para valer, deveriam cair os diplomas de outras áreas’, disse. O professor avalia que o jornalismo é uma atividade ‘extremamente delicada e que lida com uma coisa extremamente importante que é a ética pública, formadora de cabeça de gente’.


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Festival de hipocrisia


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 508, exibido em 23/6/2009


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Está extinta a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício profissional. Depois de 34 anos de manobras e maquinações, as corporações de empresários de comunicação conseguiram esta vitória de Pirro: sob o pueril pretexto da defesa da liberdade de expressão, patrocinaram um retrocesso que afetará decisivamente a qualidade do nosso jornalismo.


Estes novos defensores da liberdade de expressão até agora não se deram ao trabalho de explicar à sociedade quem lhes conferiu o diploma de representantes do interesse público. Qual a credibilidade do Sindicato das empresas de rádio e TV do estado de São Paulo para falar em nome da sociedade civil? As emissoras reunidas neste sindicato, todas concessionárias da União, por acaso têm reputação ilibada? Respeitam o telespectador, obedecem à classificação indicativa, oferecem um entretenimento edificante?


O fim do diploma teve o mérito de mostrar mais uma vez como se comporta a mídia quando os seus interesses estão em jogo.


O episódio foi acompanhado por uma cobertura parcial, claramente manipulada. Ninguém explicou o que é que o Ministério Público Federal estava fazendo numa ação difusa, doutrinal, suscitada aleatoriamente, sem fato novo ou ameaça imediata. Isto não foi explicado. Nada foi explicado, importava martelar um único factóide. Os males da nossa imprensa decorrem da obrigatoriedade do diploma.


Não é estranho que, na grande mídia, só se manifestaram os profissionais contra o diploma? A favor do diploma só apareceu um grande nome: o colunista da Folha, Janio de Freitas. Por acaso não há outros? Onde está o pluralismo de uma imprensa que se pretende livre e objetiva? É certo que a centenária ABI e a Federação dos Sindicatos apareceram num cantinho do noticiário repudiando a decisão do STF. Mas por que não se publicou o voto do ministro Marco Aurélio de Mello, o único ministro que ousou contestar os argumentos do relator Gilmar Mendes?


O diploma de jornalista para o exercício do jornalismo foi considerado desnecessário pela Suprema Corte. Mas graças a este mesmo diploma tivemos o privilégio de assistir ao festival de hipocrisias daqueles que usam o pretexto da liberdade de expressão para acabar com ela.


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Mídia na semana


** A imagem de um grande jornal demora anos para ser construída, mas pode ser aniquilada num único episódio. A Folha de S.Paulo está desperdiçando uma história de sucesso iniciada há 34 anos com a sua teimosia em manter como colunista o senador José Sarney, envolvido há cinco meses numa sucessão de escândalos diários. O seu concorrente, o Estado de S.Paulo, está aproveitando o embaraço da Folha para comandar as denúncias. O que lhe deu o ânimo para investigar outros assuntos, inclusive a brutal repressão no Araguaia durante a ditadura.


** Todas as ditaduras se parecem. O Irã tem um calendário eleitoral mas não respeita a vontade popular e admite fraudes nas urnas. O que apavora os aiatolás não é o banho de sangue nas ruas de Teerã – é saber que a censura que decretaram não tem efeito: a resistência ao arbítrio está sendo feita com celulares e laptops.

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Jornalista