Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A tentação da superficialidade

Grande parte dos jornalistas, por imposição do mercado e por comodismo, faz questão de alimentar o efêmero – que nas redações se traduz em privilegiar textos enxutos, fragmentados, em blocos previamente estabelecidos, para facilitar a diagramação das páginas e o processo de fechamento da edição.

Os profissionais correm, diariamente, em busca de notícias. Invadem as páginas dos jornais com inúmeros fatos relevantes ocorridos na cidade, no estado, no país e também no mundo. A pesada e atribulada carga de trabalho desses profissionais, associada à tensão do horário de fechamento do periódico acarretam, na maioria dos casos, notícias apuradas superficialmente, ou seja, o repórter procura saber, no local do ocorrido, somente quatro dos seis elementos do lead (primeiro parágrafo de uma notícia) o que, quem, quando e onde.

Normalmente o como e o por quê do fato são deixados de lado, uma vez que a apuração demanda mais tempo e consulta a documentos e fontes. Devido a esses fatores, o repórter produz, diariamente, muitas matérias, mas, sem profundidade, interpretação e contextualização. ‘A atividade jornalística cotidiana em nosso tempo mostra sua trivialidade’ (LIMA, 2000, p.7).

Para o professor português e pesquisador de teorias relacionadas à análise do discurso, Jorge Pedro Sousa, o jornalismo é ‘uma forma de contar histórias’ (ARRANZ, p. 1). A definição, à primeira vista, apesar de simples, explicita uma das funções básicas do jornalista. Mas, após uma reflexão mais aprofundada, surge um questionamento: como narrar, de forma fidedigna, histórias da vida real?

Ainda na ânsia de ocupar as páginas do jornal, os repórteres, subeditores e editores selecionam alguns dos milhares releases que transbordam nas caixas de correio eletrônico e modificam seu texto, para que, no outro dia, as informações carregadas de interesses, provindos das assessorias de comunicação de grandes instituições públicas e privadas estejam estampadas nas páginas do periódico.

Neste processo de produção de notícias, a apuração é abandonada pelo repórter, uma vez que a preocupação do profissional concentra-se mais na estrutura textual da matéria. O objetivo do jornalista é adaptar as informações contidas no release em notícia.

A verdade é que muitos dos textos estampados nas principais páginas dos jornais chegam prontos às redações no formato de press releases, produzidos por assessorias de imprensa ou secretarias de comunicação social de órgãos públicos e privados. Neste caso, o jornalismo é praticado sem nenhuma investigação, pelo menos por parte da reportagem que os publicou. (SEQUEIRA, 2005, p.16).

A atitude, repetida diariamente na maioria dos veículos de comunicação, representa a mercantilização da notícia, disseminada em meados da década de 1950, a partir da extinção dos jornais político-partidários, da profissionalização dos jornalistas, da divisão do trabalho nas redações e da hierarquização de cargos e salários.

Jornalismo investigativo: conceituação

Uma das medidas para mudar a realidade é a adoção do jornalismo investigativo pelos profissionais. Primeiramente, é fundamental entender o conceito de jornalismo investigativo para depois compreender como esta prática interfere na sociedade.

Não existe um conceito definido para jornalismo investigativo. Como a maioria das investigações jornalísticas é direcionada por técnicas desenvolvidas por cada repórter, os profissionais conceituam o termo de forma subjetiva e particular.

Para Cleofe Monteiro de Sequeira, jornalismo investigativo se diferencia das outras práticas pelo ‘processo de trabalho do profissional e métodos e estratégias operacionais’ (SEQUEIRA, 2005, p.15).

Para Marcelo Beraba, ombudsman da Folha de S.Paulo e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), jornalismo investigativo resume-se a uma reportagem com mais ‘fôlego’ que as demais. ‘Qualificação específica para as reportagens de maior investimento de apuração. Aquela que exige mais tempo e paciência para pesquisas, entrevistas, observação direta, checagem e rechecagem’ (FORTES, 2005, p.15).

O jornalista Alberto Dines conceitua jornalismo investigativo como a busca de ligação entre os fatos e o encontro da explicação de sua ocorrência.

O jornalismo investigativo pressupõe que o repórter trabalhe na descoberta de atividades e fatos desconhecidos pela população, ou invés de esperar ser informado por alguém da existência daquele fato. No Brasil, o jornalismo investigativo ainda está associado ao denuncismo, que consiste no repasse de informações sobre escândalos encobertos pelos envolvidos. Segundo Percival de Souza, em entrevista a Edileuson Almeida, reproduzida em Jornalismo Investigativo, dezenas de denúncias, dossiês e gravações chegam às redações diariamente. Ele observa que alguns dossiês já chegam editados, com grifos e fotos escolhidas.

Normalmente, esta doação de dados, documentos ou mesmo de uma confissão está atrelada a diversos interesses particulares da fonte. Ou seja: ‘muito mais um mérito das fontes do que, propriamente, do repórter’. (FORTES, 2005, p.17).

História

O jornalismo investigativo, termo literalmente traduzido do inglês para o português, torna-se mais conhecidos após a Segunda Guerra Mundial e quase todos se originam dos Estados Unidos, especialmente a partir de 1955.

Durante a Guerra do Vietnã, parte dos jornalistas norte-americanos, posicionados contra o governo, começaram a analisar criticamente a atuação dos políticos. Apesar de os trabalhos serem publicados em revistas como Life e Look, o público americano deu pouca atenção.

Só em 18 de junho de 1972 é que o jornalismo investigativo ganhou destaque mundial com a publicação, pelo The Washington Post, do caso Watergate, reportagem política de autoria de dois jornalistas desconhecidos, Carl Bernstein e Bob Woodward, que culminou, com a queda do presidente dos Estados Unidos na época, Richard Nixon.

O caso consistia na investigação de cinco homens que haviam sido presos na noite de 16 de junho de 1972 tentando instalar aparelhos eletrônicos de espionagem no comitê do Partido Democrata, no edifício Watergate, em Washington. Ao investigar o caso, Woodward e Bernstein acabam chegando à Casa Branca.

Em 21 de março de 1973, James McCord, um dos cinco detidos no edifício Watergate, rompeu o silêncio e enviou ao juiz John Sirica, encarregado de instruir o processo, uma carta repleta de acusações. Os jornalistas do Washington Post sabiam, desde o começo, a verdade sobre James McCord. Tratava-se de um consultor de segurança da CIA (Agência Central de Inteligência), oficial de reserva e coordenador de segurança do comitê para a reeleição do presidente Nixon.

A partir dessa carta, lida publicamente no Tribunal, em 23 de março de 1973, a insistente investigação jornalística de Bernstein e Woodward sobre Watergate começou a ganhar força e credibilidade. Com a imagem abalada diante da opinião pública, o presidente Nixon pediu demissão do cargo, sob ameaça de acusação política.

Brasil

Os jornais brasileiros só adotaram a reportagem investigativa após a ditadura militar. O Estado de S.Paulo, em 1976, é o primeiro a incorporar a prática. O Estadão publicou três matérias, intituladas ‘Assim vivem os nossos superfuncionários’, que abalaram o país ao revelar a boa vida dos ministros e altos funcionários da corte instalada em Brasília e capitais federais.

Infelizmente, a prática da investigação jornalística no país ainda é tímida. Cleofe Monteiro de Sequeira publicou em seu livro Jornalismo Investigativo: o fato por trás da notícia (pág. 26) um estudo feito pelo jornalista Carlos Chaparro sobre a evolução dos gêneros jornalísticos como forma discursiva nos os últimos cinqüenta anos da imprensa brasileira (1945-1994) enfocando o jornalismo diário praticado nos jornais Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo‘, por cinco décadas; Última Hora e Diário Carioca de 1945 a 1954; Correio da Manhã e Diário de S.Paulo, de 1955 a 1964; O Globo e Jornal da Tarde de 1965 a 1974; e Folha de S.Paulo e O Globo, de 1975 a 1995.

Na amostra de 1995, a reportagem investigativa ocupava apenas 2,32% do espaço total da Folha de S.Paulo e 1,73% em O Globo; na amostra de 1945-1994, 0,20% no Estado de S.Paulo, e 0,50% no Jornal do Brasil.

Segundo Carlos Chaparro (2003, pág. 3), o mercado jornalístico, em especial as redações dos meios impressos, caracterizam-se por…

…pressões do negócio e às tensões impostas pelo ritmo da produção industrial, criando detalhadas rotinas administrativas, para controlar e otimizar, sob o ponto de vista gerencial, a seleção e a produção do noticiário. No exercício dessa competência, boa parte do tempo é ocupada em atividades de depuração, no mar de informações que jorram das fontes cada vez mais organizadas. E não há tempo, nem estrutura, nem cultura, para pensar o aprofundamento dos fatos. (CHAPARRO, 2003, p.3)

Diante dessa realidade, as redações preferem jornalistas que sejam eficientes organizadores de dados provenientes de releases ou fatos mal-apurados in loco ‘que posteriormente transformam em notícias insípidas, sem contextualização, que servem para desinformar o leitor ao invés de informá-lo’ (SEQUEIRA, 2005, p.45), uma vez que a fragmentação e a superficialidade das informações impedem a plena compreensão do fato que está sendo reportado ao leitor.

Os jornais oferecem aos leitores inúmeras informações no formato de notícias e reportagens curtas. Mas será que estes fatos mal-apurados e maquiados em textos superficiais atendem ao direito básico do cidadão de informação? Uma vez que esses dados, números, estatísticas, pesquisas de opinião que chegam prontos aos e-mails dos repórteres, sem nenhuma descrição de quais métodos utilizaram para obter aquele resultado.

Questionamentos sobre os métodos utilizados no jornalismo investigativo

Uma das falhas do jornalismo atual é a ausência de investigação. A maioria dos repórteres acredita em todos os relatos e documentos que chegam às suas mãos. ‘Documentos que deveriam ser ponto de partida viraram pontos de chegada’ (FORTES, 2005, p. 82).

A reportagem investigativa passou a ser encarada, por grande parte dos veículos de comunicação, como ‘jornalismo fiteiro’. ‘Na maior parte dos casos, o jornalismo se resume à coleta e a reprodução de fitas’. (FORTES, 2005, p.91).

O repórter precisa, primeiramente, para inverter tal situação, de faro para detectar que determinada declaração, número, documento, estatística, pesquisa de opinião ou situação tem algo de ‘estranho’. Desconfiado, o profissional deve munir-se de ferramentas para investigar porque determinadas informações foram ou são omitidas.

Essas ferramentas investigativas geram polêmica no meio acadêmico, no mercado de trabalho e na opinião pública, já que muitos profissionais utilizam de métodos escusos para conseguir informações exclusivas.

Para muitos, o trabalho do repórter investigativo confunde-se com o da polícia e do Ministério Público, porque jornalistas vão a campo apurar fatos e utilizam-se de câmeras e gravadores escondidos, grampos telefônicos e vigília constante dos envolvidos, métodos utilizados pelas autoridades policiais e públicas.

Alguns profissionais fazem uso de métodos pouco ortodoxos na investigação jornalística, como Percival de Souza, quando ainda era repórter do Jornal da Tarde. Ele arrombou um barraco para pegar uma foto de ‘João Boiadeiro’, o doador do primeiro transplante de coração feito no Brasil. De acordo com o relato do colega de trabalho de trabalho de Percival, Antônio Carlos Fon, o repórter ‘arrombou a porta do falecido, mexeu nas coisas dele, pegou o ‘boneco [retrato] do defunto e mais: tirou todos os bonecos que ele encontrou na casa. Assim, se outro repórter chegasse depois, não encontraria nada’. (PROENÇA, LOPES , 2003, pág. 86).

Além de utilizar meios ilícitos para comprovar determinado fato, muitos jornalistas condenam, nas entrelinhas da reportagem, como se detivessem o poder de um juiz de direito, os envolvidos no caso narrado. O jornalismo presta um serviço através de uma investigação, quanto a isso não há a menor dúvida, pois denuncia o que não funciona, mas não pode substituir o Estado.

Para informar a sociedade de um erro, não justifica que o repórter cometa outro. Ele deve investigar o fato, mas com uma conduta profissional que celebre prudência. Um dos métodos para seguir esta conduta seria a mescla de algumas ferramentas do próprio jornalismo investigativo associadas às ferramentas de pesquisa das ciências sociais. Essa junção de métodos dá-se o nome de jornalismo de precisão.

Jornalismo de precisão: uma saída

Jornalismo de precisão é a aplicação de métodos de pesquisa das ciências sociais ao jornalismo. ‘O domínio da metodologia científica das ciências sociais e sua possível aplicação ao jornalismo constitui a coluna vertebral dessa modalidade jornalística’ [Trecho original do artigo de Fermín Galindo Arranz , ‘Propuesta de periodización histórica y evolución conceptual del periodismo de precisón’. El dominio de la metodologia científica propia de las ciencias sociales y su posible aplicación informativa constituye la columma vertebral de esta modalidad periodística]. (ARRANZ, 2004, p.1).

O criador do método é o americano Philip Meyer. Ainda estudante da Universidade de Havard, ele já era um estudioso dos métodos empíricos de investigação social. Como repórter do The Detroit Free Press, ele utilizou as técnicas das ciências sociais para estudar os subúrbios de Detroit.

A pesquisa feita para essa reportagem derrubou as duas teorias até então aceitas sobre os atos de vandalismo na cidade. Ao contrário do que se pensava, as depredações não partiam predominantemente de pessoas com baixo nível de instrução e de negros oriundos do Sul. Com o cruzamento de dados apurados com embasamento em métodos das ciências sociais, Meyer descobriu que pessoas com curso superior haviam participado dos estragos em porcentagens próximas às que não tinham completado o segundo grau.

A partir dessa reportagem, o jornalista iniciou uma série de reflexões sobre a aplicabilidade destas ferramentas ao jornalismo, que culminou, em 1973, com a publicação do livro A Reporter´s Introduction Social Science Methods.

Em 1991, Meyer publicou seu segundo livro sobre jornalismo de precisão: The New Precision Journalism, livro que explica a aplicação direta de ferramentas como amostragem e inferência estatística nas reportagens para ‘aumentar o poder tradicional do repórter sem mudar a natureza de sua missão – encontrar os fatos, entendê-los e explicá-los’ (MEYER, 1991, p.4).

Ainda nesta obra, Meyer discute a Reportagem Assistida por Computador (Computer Assisted Reporting), sub-tema do jornalismo de precisão no qual o repórter usa e analisa informações provenientes de banco de dados da internet.

Para Meyer, a falha no jornalismo é que ao mostrar os dois lados conflitantes, o jornalista não tem embasamento suficiente para tirar nenhuma conclusão. Já no jornalismo de precisão, o repórter, armado com os métodos de investigação científica, pode fazer avaliações úteis sobre o tema analisando, uma vez que está munido de metodologia e da objetividade da ciência.

O repórter que pretende incorporar a prática do jornalismo de precisão deve conhecer e compreender conceitos de diversas áreas das ciências humanas, como sociologia, antropologia, psicologia e filosofia e ainda deve estar ciente de que, mesmo sendo dono de vasto conhecimento, nenhuma verdade, mesmo que pesquisada, medida e avaliada por métodos científicos, é absoluta. ‘O sentimento de certeza não é o teste da certeza. Já tivemos certeza absoluta de muitas coisas erradas’ (MEYER, 1991, p.7).

A premissa básica do jornalismo de precisão é saber o que fazer com os dados. Para isso, o repórter precisa conhecer e compreender as cinco etapas para o desenvolvimento do trabalho no jornalismo de precisão. A coleta de dados é a primeira delas. Ela consiste em ir a campo para realizar pesquisas definidas previamente após estudo que engloba qual método adequado para coletá-los.

O passo seguinte fundamenta-se no armazenamento dos dados, através da criação de banco de dados, o que facilita a execução da próxima fase, o manejo correto dos dados apurados.

Na penúltima fase, a de análise dos dados, observa-se que o jornalista pode encontrar desvios e fenômenos que variam por motivos ainda desconhecidos. Neste caso, ele precisa utilizar outras linhas de raciocínio para chegar à conclusão.

Para comunicar essa análise à sociedade, o repórter deve ficar atento para traduzir, em linguagem simples e objetiva, informações e dados complexos, porque uma reportagem não entendida torna-se uma reportagem perdida.

Ainda não existe tradução para o português dos livros de Meyer. Há versões em inglês, língua original da publicação. O fato prejudica o aprendizado do jornalismo de precisão no Brasil. O único jornal do país que não ignora o gênero é a Folha de S.Paulo‘.

Segundo Marcelo Soares [então repórter da Folha], dois jornalistas da organização mexicana Periodistas de Investigación, filiada à Investigative Reporters and Editors, visitam o jornal três vezes por ano para difundir a Reportagem Assistida por Computador (CAR). Porém, até hoje apenas um repórter deles, chamado José Roberto de Toledo, demonstra intimidade com o uso do computador como ferramenta de reportagem (LIMA, 2004, p.4).

Para Julia Wallace, editora administrativa do USA Today, no futuro, vai ser necessário muito mais do que habilidade para escrever, boas fontes e muita energia para ser jornalista. ‘Repórteres e editores vão precisar saber algo sobre estatística e software. E não é fácil, mas é necessário’. (MEYER, 1991, p.12). Afirmação da profissional após os primeiros meses de contato com o jornalismo de precisão.

Bibliografia

ARRANZ, Fermín Galindo. ‘Propuesta de periodización histórica y evolución conceptual del periodismo de precisión’. [internet]. 1 jul.2004. Disponível em http://revistas.sim.ucm.es:2004/inf/11341629/articulos/ESMP0404110097A.PDF [[12 fev. 2006]

SEQUEIRA, Cleofe Monteiro de. Jornalismo Investigativo: o fato atrás da notícia. São Paulo: Summus, 2005.

FORTES, Leandro. Jornalismo Investigativo. São Paulo: Contexto, 2005.

CHAPARRO, Carlos. ‘Falta cérebro nas redações’. [internet]. 16 out. 2003. Disponível em http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/asp2110200392.htm [14 mai.2006]

LOPES, Dirceu Fernandes, PROENÇA, José Luiz. Jornalismo Investigativo. São Paulo: Publisher Brasil, 2003.

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Jornalista, repórter do jornal Observador (Pedro Leopoldo, MG)