Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A notícia é quem escreve o jornalista

Recentemente, escondido numa página do caderno de Economia da Folha de S. Paulo, um escritor europeu pouco conhecido fez uma declaração que muito me chamou a atenção e que simplifica muito o que representa a sociedade do espetáculo em que vivemos. Dizia ele, em palavras simples: ‘O supermercado é quem decide o que o consumidor vai comprar.’

A idéia do autor era de que a lógica da sociedade de consumo atua sobre o comportamento do indivíduo invasivamente, sem que ele perceba. O poder sedutor e instrumental das palavras, dos códigos sociais, das convenções mecanicistas e da racionalidade institucionalizada faz com que a ação dos sujeitos sociais se torne, cada vez mais, um procedimento meramente processual, automatizado e operacional.

Os sujeitos obedecem a comandos de input e output dentro dos esquemas hexógenos ditados pela racionalidade instrumental de que falava Max Horkheimer, ou pela sociedade de controle, de que tratava Gilles Deleuze. Apesar do reduto imaginário ser uma arena sagrada, construtora subjetiva da realidade, a esfera da objetividade, onde as ‘imagens medeiam as relações sociais’ (Guy Debord), faz com que cada vez mais o mundo simbólico real ou virtual comande o universo imaginário e as ações dos homens.

A opinião é perigosa demais

O mesmo princípio vale apropriadamente para o universo da comunicação e da informação neste início de século 21, sobretudo no mundo do newsmaking. O processo taylorista e fordista de produção das notícias criou regras e convenções próprias que fazem com que o jornalista seja mero agente do processo de captação, processamento e produção das notícias. O lead tem suas regras cabalísticas; os jornais têm sua linha editorial pré-planejada; o gatekeeper obedece às regras dos valores-notícias; a imprensa obedece à lógica mercantilizada do consumo e do jornalismo cor-de-rosa, light, neutro, indiferente; e, os jornalistas apenas trabalham dentro de uma linha de produção comandada por um sistema industrial de produção de notícias.

Como dizia um escritor português, ‘a notícia é uma coisa importante demais para ser deixada nas mãos dos jornalistas’. Dentro da esfera do newsmaking e da ordem do capitalismo tardio, não há mais espaço para a ação criativa e interventora dos repórteres da realidade. A realidade é uma coisa importante demais para ser manipulada a bel prazer por qualquer um.

Com isso, segundo esta lógica, a notícia deve nascer pronta; o fato deve falar mais alto do que a apuração ou a investigação; a opinião é perigosa demais para uma atividade empresarial que vive do espetáculo; a cultura deve ser embalada como qualquer outra mercadoria; e a economia precisa agir com o disfarce da cultura.

Verdade e realidade

O que sobra para os jornalistas? Aos atores centrais do processo jornalístico cabe o papel de obedecer às ordens da notícia. Quem decide o que é o fato é a lógica da notícia, do jornal, da imprensa e do jornalismo da sociedade do espetáculo, e não mais o jornalista. Em outras palavras: não é mais o jornalista quem escreve a notícia, é a notícia que escreve o jornalista. É a notícia, e sua lógica interna sobre a realidade, que determina o que deve ser representado para a sociedade.

A notícia e seu lead – que mais esconde do que revela – escrevem o jornalista antes dele mesmo ser jornalista. Escreve os seres humanos ainda crianças ou jovens; ainda ingênuos e esperançosos; ainda idealistas e revolucionários. A notícia forma os jornalistas antes e depois, por dentro e por fora, dizendo que a verdade e a realidade são aquelas que elas reportaram. A notícia forma, portanto, a realidade e a sociedade antes que a realidade e a sociedade possam querer revelar-se como elas próprias e mesmo que a realidade e a sociedade não concordem com ela.

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Jornalista, doutor em Comunicação pela PUC-RS, autor do livro O Jornalismo na Era da Publicidade, Brasília, DF