Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Arte de se colocar no lugar do outro

A crítica, formato do gênero opinativo do jornalismo, tem se adaptado a um mundo em que as informações circulam de forma cada vez mais veloz. O jornalista João Barreto, em seu livro Ver e Contar – cinema, literatura e jornalismo (2006), registra que, como análise, ela está francamente em declínio porque os jornais não lançam mais debate.

Mas, por outro lado, segundo ele, devido à volumosa oferta de produtos culturais, os comentários breves, velozes, sobre as produções, funcionam como guias, embora se pareçam mais com panfletos de consumo, menos ligados à reflexão que, habitualmente, era uma idéia associada à crítica.

Diante da atual configuração da crítica, quais são suas funções e seus tipos principais? Neste texto, o objetivo é discutir um pouco esse formato jornalístico. Para isso, buscamos o que autores brasileiros pensam sobre o assunto.

O termo crítica provém do grego kritiké e é definido pelo Novo Aurélio Século XXI (1999) como a arte ou faculdade de examinar ou julgar as obras do espírito, em particular as de caráter literário ou artístico. Para José Marques de Melo, autor de A opinião no jornalismo brasileiro (1985), os termos resenha e crítica significam as unidades jornalísticas que cumprem a função de apreciação das obras-de-arte ou dos produtos culturais. No Brasil, é mais comum o uso do termo crítica e de crítico para quem a elabora.

Ligeiro e superficial

Melo explica que a popularização do termo crítica ocorreu no jornalismo brasileiro na transição entre a fase amadorística – quando os espaços dos jornais e revistas estavam franqueados aos intelectuais para o exercício eventualmente remunerado da análise estética no campo da literatura, música e artes plásticas – para o período profissionalizante – momento em que a valorização dos produtos culturais passou a ser feita regularmente e, portanto, remunerada, e adquiriu caráter mais popular.

‘O que ocorreu foi a dupla recusa dos grandes intelectuais e dos editores culturais em relação à crítica esteticamente embasada. Os grandes intelectuais porque não quiserem fazer concessões à simplificação e à generalização pretendidos pela indústria cultural. Os editores culturais porque entendiam indispensável ampliar o raio de influência da crítica de arte, tornando-a utilitária em relação ao grande público e evitando o seu direcionamento para as elites universitárias’, explica Melo.

Nesse processo, segundo relata o autor, os grandes intelectuais que continuaram a realizar exercícios críticos estruturados segundo os padrões de análise acadêmica refugiaram-se nos periódicos especializados ou nos veículos restritos ao segmento universitário da sociedade brasileira. ‘Eles se autodenominaram críticos em contraposição àqueles que permaneceram nos meios de comunicação coletiva, ou que se agregaram ao trabalho de apreciar os novos lançamentos artísticos, cujos textos passaram a chamar de resenhas, traduzindo a expressão review utilizada pelo jornalismo norte-americano’, acrescentou Melo.

Na imprensa diária, como não podia deixar de sofrer a influência do espírito ligeiro e superficial do jornalismo, a crítica (ou resenha) ganhou caráter mais circunstancial.

Crítica e ensaio

Um dos primeiros tipos de crítica a surgir na imprensa foi a crítica literária, dedicada a analisar livros, romances, poemas e outras obras de Literatura. No século XIX, escritores como Victor-Hugo, Émile Zola e Machado de Assis faziam crítica literária ao mesmo tempo em que publicavam seus próprios trabalhos.

Diferente do que acontece em outras áreas, vários autores consagrados exerceram (e até hoje exercem) crítica literária, ao comentarem trabalhos de colegas. Este tipo de inversão de papéis, entretanto, é menos comum nas outras críticas (como cineastas fazendo crítica de cinema, por exemplo).

Outro tipo é crítica de arte, voltada para artes plásticas e as chamadas belas artes. O exercício da crítica literária no Brasil tem sido feito, em sua maior parte, nos jornais, condicionado à produção literária que acompanha e julga. É verdade que também se realizou em livros e estudos em revistas, já com caráter mais profundo. Mas, por não ser uma forma corrente, se estabeleceu para esse tipo de abordagem mais densa a denominação de ‘ensaio’. A instituição nacional que reúne a categoria de críticos literários é a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) segmento da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA).

Os consagrados

A crítica de cinema é comum na imprensa e muitas vezes orienta o espectador a assistir ou não a determinado filme. Sobre esse formato específico de crítica, João Barreto ressalta em seu livro que ‘analisar um filme é sempre revê-lo a partir de um outro interesse’. Para ele, lembrar um filme é sempre recriá-lo em novos formatos.

João Barreto define que a crítica é uma tentativa de dizer o que um outro texto diz, procurando destacar o que é mais ou menos importante, avaliando esse dizer e também falando sobre esse mundo. ‘O recorte desse mundo é sempre particular. Há um esforço em torno de uma dupla tarefa opinativa: uma sobre o texto fílmico e outra sobre o mundo. Apesar da grandiosidade da tarefa, não há espaço para se explicarem os conceitos utilizados no texto, até porque uma crítica, além de tudo, tem que agradar ou instigar. De uma maneira ou de outra, deve prender a atenção.’

No Brasil, entre os nomes de críticos de cinema que se consagraram na atividade estão Moniz Vianna, Sergio Augusto, Rubens Ewald Filho, José Carlos Avellar e Renato Lemos. Outro tipo é a crítica de música e teatro. No Brasil, alguns críticos de música são Tárik de Souza, Sílvio Essinger, João Máximo, Artur Dapieve, Lúcio Ribeiro (Brasil). A crítica de teatro mais conhecida e respeitada no Brasil é Barbara Heliodora. Outro profissional da área é Sábato Magaldi.

O autor e seus modos

O tipo mais rotineiro desse formato é a que fornece uma ‘impressão’ acerca da obra do momento. As críticas ‘impressionistas’, conforme Daniel Piza, autor do livro Jornalismo Cultural (2003), são aquelas em que o autor descreve suas reações mais imediatas diante da obra e lança adjetivos para qualificá-las.

Outro modo de elaboração é o que pretende olhar os aspectos estruturais da obra, suas características de linguagem, e avaliá-la de acordo com as transformações sofridas por aquela arte ao longo do tempo. A crítica (ou resenha) ‘estruturalista’ em geral comete, segundo Piza, o equívoco de vender uma objetividade inatingível ao leitor e/ou abster-se de dizer-lhe qual a importância relativa de ler/ver/ouvir aquela obra, mas tem a qualidade de buscar pontos de referência concretos, a partir dos quais a discussão pode ser estabelecida.

Há também uma terceira modalidade, muito comum no jornalismo brasileiro: a centrada em falar sobre o autor, sobre sua importância, seus modos, seus temas, sua recepção, do que em analisar aquela obra específica ou sua contribuição intelectual ou artística no conjunto. A crítica (ou resenha) tem uma função de comentário sobre determinado tema, geralmente da esfera artística ou cultural, com o propósito de informar o leitor sob uma perspectiva não só descritiva, mas também de avaliação.

‘Balanço contábil’

É feita pelo crítico, jornalista ou profissional especializado da área, que entra em contato com o produto a ser criticado e redige matérias ou artigos apresentando uma valoração do objeto analisado. O bom crítico deve ter boa formação cultural, conhecer bem não só o setor que cobre, mas também outros setores – quantos mais, melhor. É recomendado saber mais de um idioma, de preferência o inglês.

Em geral, o crítico não pode apresentar uma avaliação puramente subjetiva, mas também deve descrever aspectos objetivos que dêem sustentação a seus argumentos. Alguns críticos, como os de cinema, por exemplo, costumam encerrar suas matérias atribuindo notas ou conceitos (como estrelas, pontos ou bonequinhos) à obra criticada. Críticos de qualidade não estão preocupados em encontrar falhas onde não existem. Esta é a primeira dica que o jornalista Daniel Piza dá a quem quer elaborar um texto crítico sobre uma obra.

O bom texto crítico, em sua avaliação, deve ter, em primeiro lugar, todas as características de um bom texto jornalístico: clareza, coerência, agilidade. O segundo ponto é que deve informar ao leitor o que é a obra ou o tema em debate, resumindo sua história, suas linhas gerais, quem é o autor. E terceiro: deve analisar a obra de modo sintético, mas sutil, esclarecendo o peso relativo de qualidades e defeitos, evitando o tom de ‘balanço contábil’ ou a mera atribuição de adjetivos.

‘Ataques pessoais e vedetismo’

‘Mas há um quarto requisito, mais comum aos grandes críticos, que é a capacidade de ir além do objeto analisado, de usá-lo para uma leitura de algum aspecto da realidade, de ser ele mesmo, o crítico, um autor, um intérprete do mundo’, afirma Piza. Ainda que em pouco espaço, a boa resenha ou crítica deve buscar uma combinação desses atributos: sinceridade, objetividade, preocupação com o autor e o tema. ‘E deve ser em si uma ‘peça cultural’, um texto que traga novidade e reflexão para o leitor, que seja prazeroso ler por sua argúcia, humor e ou beleza’, recomenda o jornalista e escritor.

É comum a tentativa por parte das empresas que produzem ou comercializam as obras tentar cooptar o crítico para obter avaliações positivas, às vezes com a oferta de presentes e outras barganhas ao jornalista, o que envolve uma questão ética por parte dos profissionais envolvidos. De acordo com a sua credibilidade, críticos podem alavancar ou destruir carreiras de muitos profissionais. Daí a importância da responsabilidade com que devem encarar seu poder.

‘O crítico não deve fazer ataques pessoais e sucumbir ao vedetismo’, frisa Piza. Ele deve julgar, no sentido de fazer uma opção pessoal de qualificar uma obra em escala (de péssima a excelente) e o leitor que concorde ou discorde. Cabe ao crítico tentar compreender a obra, colocar-se no lugar do outro, seus preceitos, para então sedimentar as idéias e, mesmo que exprimindo dúvidas, chegar a uma avaliação.

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Doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ, mestre em Comunicação pela UFF, especialista em Estratégias de Comunicação Organizacional pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória, graduada em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo pela Ufes, professora da Faesa (ES)