Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ascensão e queda de O Cruzeiro e Manchete

Texto apresentado no I Encontro da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPjor), reunido em Brasília, nos dias 28 e 29 de novembro de 2003, com o título original ‘O fotojornalismo e o poder na ascensão e queda de O Cruzeiro e Manchete‘; intertítulos da Redação do OI.

A fotografia é publicada pela primeira vez na imprensa no Brasil em 1900, quando o Jornal do Brasil lança o suplemento Revista da Semana. Já os jornais diários, a exemplo do que acontecera no exterior, levam mais tempo para se adaptar. A revista ilustrada é, portanto, o principal meio para a publicação de fotografias na imprensa, contribuindo assim para difusão de um novo código visual.

No período que vai dos anos 1930 até meados de 1950 têm início as transformações que farão surgir a nova face da sociedade brasileira. As fotografias e os textos publicados pelas revistas ilustradas levam à crescente população urbana os novos produtos, assim como os padrões de comportamento das classes dominantes. As normas burguesas são veiculadas, como denuncia Barthes, como sendo ‘leis evidentes de uma ordem natural’ e a propagação das suas representações, através destas revistas, concorre para promover a naturalização da sua representação. Os empresários de comunicação buscam manter e ampliar ‘o controle de um grande capital simbólico, que os habilitam a participar intensamente da vida política do país’. Para isso vão investir nos seus veículos, modernizando-os e adequando-os ao gosto das classes mais abastadas, muito sensíveis à influência de novidades e modismos do exterior, logo imitados pela nascente classe média urbana. Desta forma, o mito da verdade fotográfica, propagado pelas revistas ilustradas, está, desde a sua gênese, a serviço das classes detentoras do poder.

Anos pródigos

Em setembro de 1924, Assis Chateaubriand, então com 32 anos de idade, compra o matutino O Jornal, primeiro de um império que chega a ter 40 jornais e revistas, 36 estações de rádio, 16 emissoras de TV, uma agência de notícias e uma empresa de propaganda, formando o império jornalístico conhecido como os Diários Associados.

Em novembro de 1928, Chateaubriand adquire o título da revista Cruzeiro (ainda sem o ‘O‘) custeado por financiamento intermediado pelo então ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, a quem Chatô apresenta o projeto de uma revista com papel de qualidade superior, muitas fotos, intelectuais do melhor nível, assinatura de todos os serviços estrangeiros de fotografias e notícias, a ser rodada a quatro cores em rotogravura. Com tiragem semanal inicial de 50 mil exemplares (nos anos vinte o máximo era de 27 mil), circularia em todas as capitais e grandes cidades do país. O projeto cai como uma luva para os planos políticos futuros de Vargas.

No dia 10 de dezembro a revista é lançada simultaneamente em todas as cidades importantes do Brasil e também em Buenos Aires e Montevidéu. A mega-operação de distribuição para o lançamento é precedida por uma inédita jogada de marketing: dias antes, 4 milhões de filipetas são jogadas do alto da Avenida Rio Branco, anunciando a chegada da ‘revista contemporânea dos arranha-céus’.

No ano seguinte, O Cruzeiro já tem tiragens de quase 80 mil exemplares, multiplicam-se os anunciantes e passa a ser impressa no Rio de Janeiro. Inicialmente a impressão era em Buenos Aires, o que aumentava os custos e engessava os prazos. Os três primeiros anos vão ser pródigos em investimentos na modernização gráfica e conseqüente melhora da qualidade da imagem fotográfica. A cor é introduzida a princípio nas ilustrações e mais tarde nas fotografias.

Padrão de qualidade

Ao investimento na modernização tecnológica não corresponde a um avanço formal. Até o final da década de 1930 O Cruzeiro mantém a mesma fórmula de suas concorrentes, com fotos de pequeno formato agrupadas sem nenhum critério evidente. Após o sucesso inicial, tem início um processo de declínio motivado principalmente pelo desinteresse dos leitores, já que no campo político Chateaubriand está cada vez mais poderoso. É ele um dos principais articuladores da negociação política que leva Getúlio Vargas à presidência, tendo colocado O Cruzeiro a serviço da sua candidatura e todo o seu já considerável império jornalístico no apoio à Revolução de 1930.

Quando Antônio Accioly Neto assume a secretaria de redação em 1931, a tiragem é de míseros 10 mil exemplares e ainda amarga um grande número de encalhes. A revista está à beira da insolvência, Accioly percebe que tem em mãos uma revista ultrapassada e vê como única saída uma mudança radical:

Analisando rapidamente a situação, compreendi que a linha editorial anterior, do ponto de vista literário e artístico, estava francamente superada. Em verdade, os velhos colaboradores, desenhistas, pintores e autores dos antigos textos, com seus pagamentos atrasados, pouco apareciam na redação. E o público não se mostrava tão deslumbrado com a reprodução de belas pinturas passadistas e textos descritivos ou simplesmente poéticos. O mundo do pós-Primeira Guerra queria reportagens e fatos atualizados.

Com Accioly, O Cruzeiro passa a utilizar material gráfico, fotografias e colaboradores de O Jornal, publicando mais reportagens. A agilidade das matérias jornalísticas do diário, apesar de requentadas, infunde em O Cruzeiro um certo dinamismo que se traduz em aumento da vendagem. Em 1942 a tiragem já alcança 58 mil exemplares, superior à concorrente Revista da Semana e com bom faturamento com publicidade.

Mas a mudança não é apenas resultado do perfil mais jornalístico. A recuperação de O Cruzeiro pode ser atribuída, em grande parte, ao desempenho de Frederico Chateaubriand na direção da revista.. Freddy, filho de Oswaldo e sobrinho de Assis, assume O Cruzeiro no início da década de 1940 e imprime na revista o padrão de qualidade de publicações internacionais como a Life, a Look e a Paris Match. É Freddy que traz para O Cruzeiro o fotógrafo francês Jean Manzon.

Moda e anúncios

Manzon era repórter fotográfico do Paris Match e Paris Soir. Na II Guerra serve no Serviço Fotográfico e Cinematográfico da Marinha francesa, documentando diversas batalhas. Quando os nazistas invadem a França cobre a retirada da esquadra do Atlântico. Sai no último navio que deixa o porto francês, fugindo para Londres, onde trabalha no Serviço Cinematográfico de Guerra inglês, cujo diretor, o brasileiro Alberto Cavalcanti, lhe sugere que tente retornar à França via Brasil, então um país neutro na guerra.

Manzon vem para o Brasil e resolve ficar. A convite de Lourival Fontes, homem forte de Vargas e diretor do temido Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), monta o Departamento de Fotografia e Cinema do DIP.

Em 1943 Manzon chega em O Cruzeiro com a tarefa de introduzir o novo modelo que tanto sucesso faz nas revistas americanas e francesas, onde a fotografia, publicada em grandes formatos, muitas vezes ocupando página inteira, conta por ela mesma, a notícia. Mas o experiente fotógrafo de guerra treme diante da missão:

Isto não é uma revista, é um catálogo, uma galeria de retratos de família, fixos, posados, idênticos. Ademais, sem dúvida para parecer rica, há um máximo de pequenos clichês, agrupados sobre uma só página como uma coleção de pequenos selos. A tinta, o papel, a impressão são de tão má qualidade que poderíamos dizer que se trata de manchas.

Não é esnobismo do francês. O Cruzeiro do começo da década de 1940 é uma revista em que matérias femininas de comportamento, moda e culinária se misturam a anúncios em pequeno formato, matérias pagas dissimuladas e alguma notícia já publicada em O Jornal e concorrentes. O diferencial em relação às outras revistas é a ampla utilização de agências de notícias e fotografias estrangeiras, que imprime uma roupagem mais cosmopolita. O papel utilizado é ruim e o potencial das máquinas é parcialmente aproveitado. Quanto à utilização de fotografias, a imagem de coleção de selos utilizada por Manzon não é nenhum exagero.

Em cuecas

Manzon, a princípio sozinho, logo depois com David Nasser, formando a mítica dupla que duraria quinze anos, inaugura as grandes reportagens que fazem escola e tratam de assuntos que atingem em cheio o gosto do leitor, apostando no exótico e na aventura para atrair e cativar um público que experimenta estas emoções, pela primeira vez, com sotaque e produção nacionais.

Mas estas grandes reportagens são, muitas vezes, puro produto de ficção, como na matéria sobre a Amazônia, publicada em janeiro de 1944, em que os autores afirmam ter passado 43 dias em plena selva, o que mais tarde o próprio diretor da revista, Accioly Neto, desmente:

Ao que consta, a série ‘amazônica’ foi feita no Rio mesmo, com jacarés do Jardim Zoológico, na Quinta da Boa Vista, e ‘garimpeiros’ de um acampamento da construção civil, na Barra da Tijuca, tudo bem planejado e produzido por Jean Manzon, que era um esteta e, como tal, achava que a realidade devia ser transformada em obra de arte, para agradar o público.

Muitos são os exemplos da manipulação de fatos para obter fotografias de impacto, ou da própria imagem fotográfica diretamente, com intuito de suprir o leitor ávido de novidades e aventuras, ou para manipular o jogo político. Dentre elas a antológica matéria ‘Enfrentando os Chavantes’ publicada em 24 de junho de 1944. É a primeira vez que a imprensa publica fotos desta tribo arredia, e a matéria é vendida para a diversas revistas estrangeiras, inclusive a Life. Segundo relato de David Nasser, a dupla teria sobrevoado duas aldeias xavante na Serra do Roncador, a bordo de um avião da FAB. As várias versões apresentadas pela dupla para a aventura não resistem a um exame mais minucioso, como analisa detalhadamente Luiz Maklouf Carvalho em seu livro sobre David Nasser.

Abordando o lado técnico, o fotógrafo Flavio Damm duvida da veracidade da aventura:

A descrição sobre a realização das fotos conflita de forma abissal com qualquer possibilidade técnica de realizá-las. A câmera que o Manzon teria usado, uma Rolleiflex, operava com velocidade máxima de 1/500, absolutamente reduzida para permitir, com qualidade e aproveitamento, qualquer foto de um motivo tão próximo. Fotografar àquela altura – ‘mais baixo do que algumas árvores’ –, e a uma velocidade de no mínimo 130 quilômetros por hora, é o mais puro delírio e não suporta qualquer análise técnica. Lembro das fotos, todas feitas na diagonal, e de sua má qualidade. Tenho a viva impressão de que não houve fotos, e sim filmagem…

Também da dupla, é emblemática a matéria onde o deputado Barreto Pinto se deixa fotografar de cuecas e fraque, possivelmente convencido pelo fotógrafo de que as tomadas seriam apenas da cintura para cima. A publicação da matéria Barreto Pinto sem máscara’, em 29 de junho de 1946, custa ao deputado o seu mandato e pode ter sido fruto de um acordo entre repórteres e o fotografado, como mais uma vez comenta Flávio Damm:

O Barreto Pinto era casado com uma mulher rica, e queria popularidade. Chamou o David e o Manzon e disse: ‘Eu quero uma reportagem que me faça ficar conhecido no Brasil inteiro’. Não sei quanto ele pagou, mas foi paga. Com uma condição – a de processar os dois. Aí criou-se a popularidade do Barreto Pinto, de O Cruzeiro, do David e do Manzon.

Engano improvável

Ambas as versões, de acordo remunerado entre as partes ou de exploração da boa fé do parlamentar, remetem a procedimentos jornalísticos espúrios, que eram bem absorvidos e mesmo incentivados pela direção da revista.

Mas o exemplo mais expressivo da manipulação da reportagem fotográfica não é obra da famosa dupla. Em 17 de maio de 1952 O Cruzeiro publica um encarte ‘Extra‘ com o título ‘Disco Voador na Barra da Tijuca’. A reportagem de Ed Keffel e João Martins, segundo os próprios autores, teria sido fruto do acaso, quando os repórteres estavam na então remota praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, para fotografar casais de namorados. Posteriormente são apresentadas outras duas versões: a de que os repórteres estariam apurando a presença de um homem parecido com Hitler que vagava na praia e a de que estavam à procura do comunista foragido Luís Carlos Prestes. A apresentação da reportagem é claramente sensacionalista:

O Cruzeiro apresenta, num furo jornalístico espetacular, a mais sensacional documentação jamais conseguida sobre o mistério dos discos voadores. O estranho objeto veio do mar, com enorme velocidade, e foi visto durante um minuto, de cor cinza-azulado, absolutamente silencioso, sem deixar rastros de fumaça ou de chamas. Relato completo da fascinante aparição na Barra da Tijuca.

A repercussão é extraordinária. A revista esgota rapidamente nas bancas e várias publicações estrangeiras, inclusive a Life, publicam a matéria. A Embaixada Americana solicita os negativos para serem examinados por laboratórios militares dos EUA. Duas semanas depois o governo americano devolve o material para a revista, sem nenhum comentário.

O fotógrafo Eugênio Silva arrola alguns argumentos levantados pelos colegas da redação de O Cruzeiro na época que desmontam a tese dos autores, entre as quais o mais consistente é, novamente, de ordem técnica:

Foram operadas pelo Keffel 8 fotos, com uma Rolleiflex, padrão da época. As primeiras três fotos focalizavam casais de namorados em cenas amorosas, operadas na sombra com velocidade baixa, na faixa de 1/100 de segundos, segundo declaração de Keffel, na época. A quarta foto do filme e as que se seguiram eram do disco voador e foram operadas com velocidade de 1/500 de segundo, ainda de acordo com Keffel. Nesse ponto, existe uma grande dúvida, porque as Rolleiflex dessa época não permitiam que se mudasse a velocidade, depois de ter sido rodado o filme, sem a inutilização de uma foto intermediária. Na seqüência de fotos do filme operado pelo Keffel, não se perdeu nenhuma. Daí, a dúvida da turma do contra – ‘O velho Keffel se enganou ou mentiu’.

É muito improvável que Ed Keffel tenha se enganado. O fotógrafo alemão, responsável pela montagem do laboratório de O Cruzeiro, tinha grande conhecimento técnico, e não poderia se equivocar numa operação tão básica.

Sem retratação

Mas a direção da revista não questiona a forma pela qual as fotografias foram obtidas. Accioly Neto diz que, após constatarem que o andarilho da Barra da Tijuca não era Hitler, João Martins e Keffel resolvem almoçar e depois descansar nas areias da praia.

Foi quando João Martins percebeu no céu azul um objeto de formato estranho que se deslocava velozmente, parando de vez em quando no ar para depois recomeçar a mover-se, sempre em alta velocidade. […] João Martins levantou-se de um salto, já esquecido da caldeirada que lhe pesava no estômago e gritou para Ed Keffel, apontando o objeto no céu: – Ed! Depressa!! Fotografe aquela coisa! Tudo aconteceu muito rápido. Ed Keffel, fotógrafo esperto que era, focalizou o objeto que se aproximava cada vez mais e apertou o botão da máquina, diversas vezes seguidas, sem tremer…

Ainda segundo Accioly, a dupla chega alvoroçada à redação, mas só esclarece o motivo depois de revelado o filme:

Só então Ed Keffel e João Martins nos explicaram, ofegantes, que se tratava de um disco voador. Ao ouvir isto, Leão Gondim disparou rumo à oficina de impressão, que se preparava para rodar a revista e mandou parar as máquinas. […] Em poucos minutos, foi feito um caderno complemento de 16 páginas, sob a supervisão de Ed Keffel, enquanto João Martins batia à máquina o texto da reportagem. Todo o trabalho foi feito em algumas horas e, de madrugada, O Cruzeiro era distribuído trazendo a matéria sobre o disco voador. Em menos de duas horas, a edição estava esgotada.

Accioly, mais de cinqüenta anos depois, ainda afirma acreditar na autenticidade das fotografias:

De minha parte, posso afirmar que um profissional da fotografia com o nível de Ed Keffel seria capaz de fazer um truque daqueles, mas, pelo que conheci de seu caráter e seriedade, além de tudo o que presenciei naquele dia, acredito sinceramente que ele não se prestaria a semelhante farsa.

É no mínimo curioso que jornalistas tão experientes não tenham, em momento algum, questionado a história. A imagem do todo-poderoso diretor-superintendente da empresa, Leão Gondim, correndo para parar as máquinas é quase tão esdrúxula quanto a de dois repórteres importantes, um deles responsável pela chefia do laboratório fotográfico, descansando nas areias da praia, após um farto almoço, em pleno horário de trabalho e em dia de fechamento da revista.

Apesar do rebuliço provocado, a veracidade da notícia é logo contestada, mas a revista jamais se retrata e inclusive retoma a matéria diversas vezes, como em 2 de novembro 1954, 16 de novembro de 1957, 31 de outubro de 1959 e, mais tardiamente, em 12 de dezembro de 1973.

Surge a Manchete

Apesar destas controversas fotorreportagens terem marcado profundamente a trajetória de O Cruzeiro, a revista é pródiga de outro tipo de abordagem fotográfica da realidade, na escola do fotojornalismo informativo.

São fotorreportagens como a de Ubiratan Lemos e Mário de Moraes, ‘Uma Tragédia Brasileira: Os paus-de-arara‘, vencedora do primeiro Prêmio Esso, em 1956, em que os dois repórteres acompanham, incógnitos, durante onze dias, 102 retirantes num caminhão que vai da Pernambuco a Duque de Caxias, no Rio de Janeiro; a do fotógrafo José Medeiros, em 28 de setembro de 1957 ‘As Metralhas Votam Em Alagoas‘ onde o tiroteio entre deputados armados até de metralhadoras é registrado pelo fotógrafo, com uma câmera Leica e luz ambiente, com precisão, rapidez e frieza, num magistral exemplo da mítica combinação de sorte e senso de oportunidade que todos os fotógrafos de imprensa perseguem; de Flávio Damm em abril de 1952: ‘Sangue Para As Almas’ realizada durante a Semana Santa, mostrando penitentes que se autoflagelam no interior do nordeste, numa localidade onde os transportes eram absolutamente precários. A empresa freta um avião que fica três dias parado, esperando os repórteres, numa demonstração que não há obstáculos intransponíveis se a matéria é do interesse editorial de O Cruzeiro. Também é exemplar a participação de Luciano Carneiro na guerra da Coréia em 1951, saltando de pára-quedas na retaguarda inimiga.

Estas reportagens são exemplares de uma escola de fotojornalismo que busca a isenção na apuração dos fatos e a não manipulação da realidade, para levar ao leitor a ‘realidade’ tal qual ele veria se lá estivesse. Esta prática irá contribuir, muito mais que os exemplos anteriores, para a aura mítica que O Cruzeiro e seus fotógrafos irão construir no imaginário da época, atuando positivamente na consolidação do mito da verdade fotográfica.

O primeiro número de Manchete, chega às bancas no dia 26 de abril de 1952, editada pela família Bloch. Gráficos judeus de origem russa que chegam ao Brasil em 1917, fugidos da revolução comunista, logo adquirem uma pequena máquina de cortar papel e com ela fabricam blocos e sacos que os irmãos Boris, Arnaldo e Adolpho vendem nas ruas do Rio de Janeiro.

‘O instantâneo, o irrepetível’

Em seguida adquirem uma impressora usada, nascendo assim a empresa ‘Gráficos Bloch‘ que imprime cartazes, folhetos, embalagens e revistas. Em 1951 o parque gráfico de sete andares na Rua Frei Caneca, inaugurado em 1939, imprime mais de 30 revistas infantis, principalmente para a Rio Gráfica de Roberto Marinho e a Brasil-América de Adolpho Aizen. Neste ano adquirem a primeira rotativa offset do Brasil, uma Webendorfer, que lhes possibilitará ter sua própria revista, Manchete, que seria rodada nos três dias de folga nas máquinas: sábado, domingo e segunda-feira, e teria como característica o zelo extremado com a qualidade da impressão, como relembra o primeiro diretor-responsável, Henrique Pongetti:

(Os Bloch) eram todos maníacos de perfeição. Amavam apaixonadamente seu ofício. Muitas vezes flagrei o Boris, o Arnaldo, o Adolpho e o Oscar bolinando o papel extra destinado a um trabalho de luxo, acariciando-o com a mão espalmada como se fosse a pele da mulher eleita. Atingiam o orgasmo profissional diante de uma prova perfeita de impressão. Inutilizavam pilhas de papel impresso se um pequeno defeito invisível aos olhos do cliente ferisse sua retina, onde se tornava um ácido corrosivo, um vitríolo.

Manchete surge no mercado editorial brasileiro com a intenção explícita de fazer frente à líder O Cruzeiro, como fica claro no editorial de seu primeiro número, escrito por Pongetti:

Depois de trinta anos de trabalho como gráficos, resolvemos condensar numa revista semanal os resultados da nossa experiência técnica, convocando, para aproveitá-la, uma equipe de escritores, jornalistas, fotógrafos e ilustradores de primeira ordem. Manchete nasce no momento exato em que nos consideramos aparelhados para entregar ao Brasil uma revista de atualidades, correta e modernamente impressa. Em todos os números, daremos páginas a cores – e faremos o possível para que essas cores se ponham sistematicamente a serviço da beleza do Brasil e das manifestações do seu progresso.

Após apresentar as credenciais dos proprietários e suas intenções progressistas, o editorial prossegue, sugerindo que a revista líder não é mais capaz de cumprir sozinha a tarefa de informar o público e também não tem capacidade técnica para fazer frente aos novos tempos:

O Brasil cresceu muito, suas mil faces reclamam muitas revistas, como a nossa, para espelhá-las. Manchete será o espelho escrupuloso das suas faces positivas, assim como do mundo trepidante em que vivemos e da hora assombrosa que atravessamos. Neste momento os fatos nacionais e internacionais se sucedem com uma rapidez nunca registrada. Os jornais nunca tiveram uma vida tão curta dentro das vinte e quatro horas de um dia. Este é o grande, o sonhado momento dos fotógrafos e dos repórteres excitados para colher o instantâneo, o irrepetível. Depois virão os historiadores. E agora prossiga, leitor…

Limitações e qualidade

Mas Manchete está longe de ser o eldorado de fotógrafos e repórteres. Pongetti, que acumula os cargos de diretor-responsável, redator e repórter e o fotógrafo Orlando Machado são os primeiros contratados. O Departamento Artístico e o Departamento Gráfico ficam por conta de funcionários de Gráficos Bloch, respectivamente Hélio Tibiriçá e José Luiz dos Santos Werneck.

A reduzida equipe corresponde à escassez de páginas. Manchete é lançada com um caderno de 32 páginas em preto e branco, quatro páginas de encarte central a quatro cores, e quatro páginas a duas cores, muito menos volumosa que O Cruzeiro. A revista líder nunca vai às bancas com menos de 118 páginas, podendo chegar a 162, engordando ainda mais quando há um caderno Extra, que pode ter, sozinho, o mesmo número de páginas de Manchete.

Mas a revista dos Bloch nasce disposta a competir com a poderosa concorrente, e para enfrentá-la vai se valer, além da impressão primorosa, da criatividade e da boa vontade dos colaboradores, como relata Pongetti:

Não podendo competir com o volume de matéria da revista dominante eu só poderia tomar um caminho jornalístico: as reportagens originais, as fotos de impacto, a grande colaboração literária, a alta caricatura, os serviços fotográficos exclusivos das agências estrangeiras. Muito menos, mas muito bom. Bossa, bossa e mais bossa. Bossa, modéstia à parte nunca me faltou, mas bossa sem dinheiro bota a gente na situação de comprar o refugo fotográfico nas agências secundárias e de solancar dia e noite para escrever – como escrevi – quarenta por cento dos primeiros números. Meu recurso era entregar as fotos mais sugestivas a amigos de boa-vontade e talento, confiando no seu tirocínio profissional. […]

Talento, experiência e boa vontade possibilitam ao magnífico time de escritores exercitar o seu lado ficcionista bem mais que o jornalístico, já que vão produzir textos baseados em fotos frias, muitas de países remotos, sem identificação precisa. Entre os colaboradores figuram nomes como Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Fernando Sabino, Guilherme Figueiredo, Joel Silveira, Lígia Fagundes Teles, Orígenes Lessa, Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, para citar apenas alguns. O ‘caminho jornalístico‘, calcado no ‘refugo fotográfico de agências secundárias‘ se traduz no mais puro exercício da fotorrecortagem, que no jargão jornalístico significa a prática de publicar matérias frias apoiadas em fotografias de arquivo ou de agências, geralmente didáticas ou sobre temas exóticos, quando não ambos. Entretanto, quanto à qualidade técnica das fotografias, Adolpho Bloch é categórico como ele mesmo deixa claro, ao ser advertido pelo primeiro Diretor-Secretário, Dirceu Torres Nascimento, que a revista daria prejuízo nos primeiros anos:

Vamos fazer a melhor revista do Brasil, mesmo que dê prejuízo por dois anos, ou mais, qual é a dúvida? […] Só peço uma coisa, escolha bem as fotografias, se não vão dizer que nós é que imprimimos mal. Nada de telefotos ou fotografias mal iluminadas, escuras ou tremidas. Radiofoto, só quando o homem for à Lua.

O pioneiro Pongetti enfrenta toda sorte de limitações mas aposta na qualidade para fazer frente a O Cruzeiro. A partir do número 24, passa a cronista principal sendo substituído na direção por Hélio Fernandes, responsável pela transformação definitiva de Manchete em revista de atualidades. Fernandes permanece na direção até outubro de 1953 (número 84), quando é substituído por Nélson Apel de Quadros.

Mistura moderna

Em julho de 1954 Otto Lara Resende assume o cargo de diretor de redação, ficando até 1957. Em seu lugar entra Nahum Sirotsky, diretor da revista Visão, de capital e orientação norte-americanos, e que já tinha trabalhado na imprensa dos Estados Unidos. Sirotsky percebe a impossibilidade de duelar com a gigante O Cruzeiro, que era, segundo ele, o bicho-papão da casa:

[…] a nossa redação media, no total, menos do que uma sala de diretor da revista do Chatô. Só contando os fotógrafos, dispunham eles de três vezes mais gente do que eu de fotógrafos, redatores, paginadores e revisores. As suas equipes se deslocavam por todo o país e pelo mundo. Pareciam inesgotáveis os seus recursos. Além do mais, a revista era apoiada numa cadeia de jornais, rádios e emissoras de televisão. Nas condições era imbatível.

Sirotsky decide não mais tentar imitar O Cruzeiro e parte em busca da identidade de Manchete. Na verdade a proposta é fazer uma revista de orientação diametralmente oposta à líder:

O Cruzeiro era uma revista de repórteres famosos. Suas reportagens consistiam, na verdade, em narrativa das aventuras dos repórteres. Não eram os eventos ou personalidades que contavam e, sim, a presença neles do repórter. Ninguém concedia entrevistas a David e, sim, David é quem entrevistava. […] Sentia, porém, que o que iríamos buscar já estava exigindo bem mais do que isto. A minha experiência em Visão indicava que as classes médias mais prósperas, e os seus setores mais responsáveis, queriam informação.

Baseado em sua experiência e afinidade com o moderno jornalismo americano, Sirotsky vai elaborar para Manchete uma fórmula que seria, segundo ele, uma mistura das revistas Time e Life, buscando a informação completa e objetiva ‘devidamente interpretada de forma a que seu significado para o leitor ficasse evidente’. Esta proposta jornalística parte da premissa de que é dever da imprensa prestar um serviço de informação e de educação do leitor, propagando o comportamento que considera adequado.

Café de garrafa

Justino Martins, sucessor de Sirotsky, assume em abril de 1959 e ‘já encontra uma revista plenamente vitoriosa, quer como órgão jornalístico, quer como veículo publicitário.’ Depois de muitos anos morando na França, onde acompanhara a ascensão da revista Paris Match, assume Manchete procurando dar a ela um caráter mais moderno: ‘Essa modernização se caracterizava por uma questão de boa seleção de fotos, de preparo do layout e de agressividade jornalística. Era beleza estética na informação.’

A ênfase é ainda na qualidade das fotos, mas já com investimento na sua produção. A equipe inicial de fotógrafos é composta, além de Orlando Machado, por Raul Perdigão, Aymoré Marela e Gervásio Batista. Jean Manzon, que deixara O Cruzeiro em 1951, integra o time como colaborador e carrega consigo seu assistente, Nicolau Drei. O quadro que consolida a formação inicial do departamento fotográfico é: Nicolau Drei na chefia, Gervásio Batista, Felisberto Rogério, Jankiel Gonczarowska, José Avelino, Carlos Kerr, Gil Pinheiro, Jader Neves, Victor Gomes e os irmãos Juvenil de Souza, Tolentino e Moacyr Gomes. Em seguida passam a integrar o departamento Orlando Abrunhosa, Alberto Jacob e Hélio Santos.

Manzon passa por Manchete rapidamente, dedicando-se em seguida ao cinema, se especializando em documentários comerciais e filmes institucionais. Seu nome empresta prestígio à revista, mas sua produção não é nem a sombra do que fora em O Cruzeiro, como observa Pongetti:

Jean Manzon desfizera sua dupla famosa com o extraordinário David Nasser e, de raro em raro, nos dava uma reportagem comodista feita não muito longe de sua casa. Nos vendera seu arquivo. Segundo as más-línguas da época, o arquivo do pioneiro e mestre da grande reportagem fotográfica no Brasil […] vendido aqui, reaparecia ali. Mas foto de arquivo é como café em garrafa térmica: sente-se um gosto de calor de conserva.

No vácuo de Chatô

Manchete segue firme em seu caminho, sempre de olho na poderosa concorrente. Consegue o primeiro furo jornalístico ao ser a primeira revista do mundo a dar na capa o resultado das eleições presidenciais americanas. ‘Eisenhower eleito’ é fruto de um artifício ainda pouco utilizado naquele período, que consiste em preparar com antecedência uma edição para cada concorrente, saindo o resultado é só rodar. O segundo furo é obtido da mesma forma. O novo papa, João XXIII, é eleito em Roma às 16, e às 21h Manchete já está nas bancas de jornal de Copacabana. Com quatro edições diferentes preparadas, uma para cada indicado, e o fuso horário favorável, Manchete é a primeira revista do mundo a publicar a foto do novo papa, e a cores.

Mas é apenas com a chegada de Juscelino Kubitschek à presidência e a aventura de Brasília que se consolida o sucesso de Manchete, como explica Justino Martins:

O sucesso de Manchete está muito ligado ao sucesso de Brasília, da administração JK. Logo que cheguei ao Rio, de Paris, a Rodhia me convidou para acompanhar a feitura de umas fotografias de modas para um encarte que sairia em Manchete. […] Quando voltei, disse para Adolpho: ‘Estou de boca aberta com Brasília’. Acontece que a imprensa falava pouco da nova capital, porque achavam que era uma fonte de inflação. Publiquei uma pequena reportagem. Adolpho ficou empolgado e, no dia seguinte, mandou o Raymundo Magalhães Jr. fazer uma reportagem completa sobre o que estava acontecendo no Planalto. A partir daí, houve um boom de tiragem, de venda e, também, de publicidade.

A curiosidade do público reflete simpatia ao estilo de Juscelino e não encontra eco em O Cruzeiro. Já os anunciantes, muitas vezes amargando meses na fila para publicar na grande revista, vêem aí uma possibilidade única de apoiar JK e alavancar suas vendas. Mas não é só o aumento da tiragem e dos anunciantes que faz de Manchete a revista chapa branca do governo JK. O ufanismo dos Bloch, expresso já no editorial do primeiro número de Manchete, encontra em Brasília terreno fértil, e na figura do presidente Juscelino, um ícone do espírito de progresso e otimismo que Adolpho cultiva. Na verdade Bloch está há tempos atento à trajetória de Juscelino, em quem reconhece um potencial aliado: JK seria para Manchete o que Vargas fora para O Cruzeiro. E procurava dar sinais de sua disponibilidade: já no número 23, em setembro do ano de lançamento, a revista publica matéria com o Governador de Minas Gerais em que aponta JK como ‘provável futuro Presidente da República‘.

Mas entre Adolpho Bloch e Juscelino Kubitschek há, ainda, Assis Chateaubriand.

No fim dos anos 1950 Adolpho Bloch é um homem rico e com poder crescente, mas sua influência no cenário nacional nem de longe se compara ao poderoso Chateaubriand, que maneja o jogo político, destrói reputações e manipula os poderes da República de acordo com seus interesses. Brasília é uma aventura em que não acredita, um sonho que despreza. É no vácuo do desinteresse de Chatô que Bloch cresce.

Parceria útil

A partir da primeira matéria de Justino Martins, Manchete acompanha cada passo da construção de Brasília, deslocando para uma improvisada sucursal no Planalto Central a dupla de peso composta por Murilo Melo Filho e Jader Neves, que produz material atualizado todas as semanas. O público adora, as edições se esgotam, Bloch investe:

Quando o lago artificial atingiu sua cota, enviei uma lancha para o Murilo com o seguinte bilhete: ‘Murilo: aí vai esta lancha. Não faça economia em Relações Públicas. Por falta de Relações Públicas os judeus perderam Jesus Cristo e fizeram mau negócio, pois um homem desses não se perde.

Juscelino não fica indiferente ao apoio e corresponde com a cortesia típica do seu temperamento, o que agrada Bloch em cheio:

Na festa de inauguração de Brasília, em 1960, cheguei ao Palácio da Alvorada vestindo pela primeira vez uma casaca. Apesar de feita sob medida, não me sentia confortável dentro dela. Um ajudante-de-ordens foi avisar a JK e ele dirigiu-se a mim: ‘Bloch, você não podia faltar a esta festa!’ Realmente, Brasília e Manchete cresceram juntas.

Bloch conseguira enfim selar uma parceria que se mostra útil para ambos os lados e vai perdurar mesmo quando JK cai no ostracismo.

A Manchete agoniza

Chateaubriand não compareceria à inauguração de Brasília. Dois meses antes, no mesmo Palácio da Alvorada, Chatô é barrado na recepção oferecida por JK ao presidente americano Dwight Eisenhower. Mesmo desfeito o engano, Chateaubriand enfurecido, apenas cumprimenta os presidentes e retorna para o Rio. Este contratempo, a recente morte do irmão Oswaldo e a crise financeira dos Diários Associados podem ter sido responsáveis pelo derrame cerebral que o acomete na noite de 26 para 27 de fevereiro e que o deixa tetraplégico. Na inauguração da Capital, Chateaubriand está internado na Clínica Doutor Eiras, em Botafogo, no Rio de Janeiro, de onde sai apenas em setembro de 1960, na cadeira de rodas que o acompanha até a morte, em 4 de abril de 1968.

A decadência dos Diários Associados, iniciada no final dos anos 1950, se intensifica com o fim do governo Juscelino. Desde então não entra mais dinheiro público nem nos Associados, nem no Condomínio Associado, conglomerado que engloba todas as empresas de Chateaubriand. Com o golpe militar a situação não melhora e O Cruzeiro vai definhando até a extinção no começo da década de 1970.

Já a revista de Bloch não pára de crescer. Os Gráficos Bloch constroem o maior parque gráfico da América Latina no bairro da Penha, Zona Norte do Rio, aonde chegam a produzir mais de dez revistas e a fabricar, inclusive, o papel de ótima qualidade que utilizam.

Em 1983, Adolpho Bloch, já com 74 anos, inaugura sua televisão, com investimento inicial de 40 milhões de dólares. A Rede Manchete chega a fazer frente à poderosa TV Globo, mas, pressionado por dívidas, Bloch a vende em 1992, e a retoma no ano seguinte, já que o novo dono não quita os pagamentos previstos.

No dia 19 de novembro de 1995, aos 87 anos, Adolpho Bloch morre em São Paulo.

A Rede Manchete é novamente vendida em 1999 e a Bloch Editores, já afundada em dívidas, atrasa o salário de seus funcionários. Em setembro a empresa entra em concordata, com uma dívida de cerca de 16,7 milhões de reais. A Revista Manchete agoniza e várias revistas de Bloch Editores deixam de circular. O preço de capa das revistas Manchete e Amiga é reduzido, mas já é tarde: Bloch Editores, com uma dívida de 40 milhões de reais, pede autofalência no dia 1º de agosto de 2000. O patrimônio lacrado pela justiça é avaliado em 300 milhões de reais. Morre assim a última grande revista ilustrada do Brasil.

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(*) Mestranda em Comunicação na Universidade Federal Fluminense