Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como manobrar uma imprensa que não pensa

O texto que se segue parece ter pouco que ver com a crítica do jornalismo. Mas é só aparência. A partir de um caso específico, que por acaso conheço, procuro mostrar como uma imprensa pouco informada pode ser útil para o fim que se queira e como esse tipo de manobra (a) não nasce nas redações mas passa por elas; (b) ganha a cor ideológica que for conveniente; e (c) freqüentemente prejudica aqueles mesmos que alega defender.

O executivo de uma empresa de ensino superior do Sul do Brasil contou-me que sua organização e outras do ramo mantêm entendimentos com griffes americanas para a criação de programas de ensino de graduação de alto nível e alto custo. Embora o país seja muito mais pobre do que os Estados Unidos, considera-se que tem concentração de renda tal que justificaria cursos excelentes, com anuidade da grandeza de 10 mil a 40 mil dólares, desde que assegurado não apenas o futuro profissional, mas também a liderança oriunda do prestígio social da marca impressa no diploma.

Não haveria, no entanto, condições ótimas para implantar novo padrão de custo, com ensino em tempo integral, hotelaria de primeira classe, laboratórios ultramodernos, viagens de estudos aos países centrais, cursos parcialmente presenciais e parcialmente ministrados à distância por ‘estrelas’ (detentores de prêmios Nobel, gestores financeiros de renome, políticos e empresários bem-sucedidos), enquanto a qualidade e, principalmente, a credibilidade do sistema público não for quebrada radicalmente.

Só então aconteceria como nos EUA, onde famílias de classe média começam a juntar dinheiro quando o filho nasce para pagar seus estudos superiores ao ingressar na idade adulta. E as empresas de ensino superior deixariam de se limitar a cursos de baixa qualificação, necessariamente a preços módicos, mas que dificilmente habilitam seus alunos, excedentes das universidades de primeira linha, em mercados de trabalho cada vez mais competitivos.

Para todos

Na situação presente, universidades públicas de excelente qualidade e prestígio somam-se a um punhado de instituições que cobram anuidades relativamente altas, mas têm objetivos mais ideológicos do que comerciais. No entanto, universidades dessa categoria – como as pontifícias, por exemplo –, não teriam motivos para resistir a um upgrade que terminaria por melhorar suas finanças e ampliar as possibilidades de ação social, se for o caso.

Contando com a depreciação do setor público de ensino superior como favas contadas, algumas empresas educacionais das regiões mais ricas do Brasil vêm assumindo compromissos financeiros e adaptando sua imagem a novos perfis de marketing, quer seja com o patrocínio de equipes desportivas de primeira linha, quer com a atribuição e novos nomes aos cursos (escolas de administração passam, por exemplo, a se chamar business centers), ou com o lançamento de projetos contínuos (não apenas na época das matrículas) e mais ambiciosos de promoção e propaganda institucional.

Várias operações foram desfechadas para desmontar o ensino público superior brasileiro. A mais afamada é a adoção das quotas que supostamente corrigiriam distorções sociais, cumprindo papel equivalente a um dos itens da ‘ação afirmativa’ adotada nos Estados Unidos.

O raciocínio, expresso por um dos vice-reitores da PUC do Rio de Janeiro – em uma reunião de reitores de universidades cariocas realizada ano passado, na reitoria da UFRJ –, é que a qualidade do ensino, quando igualados os demais fatores, depende fundamentalmente do nível do alunado. Disse o vice-reitor que a PUC-RJ tinha sido avaliada como a melhor do país em condições de ensino, mas figuraria em 9º lugar na qualidade porque ‘não tem estudantes no padrão dos das melhores universidades públicas’.

Afora a inconstitucionalidade (se é que dá para confiar na Justiça brasileira em tema tão polêmico), o sistema de quotas, que promove o ingresso nas universidades públicas de estudantes despreparados, tende a se generalizar, derrubando os critérios de seleção por mérito, que são os mais democráticos possíveis; ampliando o número de vagas de modo a desqualificar o ensino; e desobrigando o Estado de oferecer ao povo em geral cursos médios decentes.

Já há movimentos organizados para estabelecer quotas para formados no Nordeste na residência médica dos Hospital das Clínicas de São Paulo, para moradores em Manaus na universidade estadual do Amazonas, além de um folclórico ‘Movimento dos Sem Universidade’, cujos líderes foram recebidos recentemente pelo Ministro da Educação.

Se há quotas para negros (o que quer que isto seja no Brasil) e para pobres (a grande maioria do povo), por que não para deficientes físicos, anões, mães adolescentes, ex-presidiários, transexuais e outros grupos injustamente submetidos a preconceitos ainda mais destrutivos?

Falso socialismo

O movimento para o desprestígio do ensino público superior não é, como diz a esquerda ingênua, algo que ocorra apenas na cúpula do poder, por pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Ele tem muitos braços. Inclui o retorno ao antigo ‘ciclo básico’, refúgio de professores incompetentes e fator de desestímulo de qualquer aluno com mínima inteligência. Cuida de impedir, pela via legal das fundações de apoio ou qualquer outra, a prestação de serviços à indústria, à agricultura e a instituições de serviços públicos em pesquisa, desenvolvimento e inovação – chave, não apenas de recursos, mas de modernidade e autonomia tecnológica do país. Mais à esquerda, no âmbito do movimento sindical, procura desestimular a ascensão na carreira, negando a valorização salarial dos professores doutores, e premiar o ócio, rejeitando a exigência de padrão mínimo de produtividade.

Há antecedentes desse tipo de campanha. Embora geralmente se fale de ‘relações públicas’ como ‘atividade a favor’, algumas das grandes vitórias do ramo foram obtidas com ‘atividades contra’. Lembro-me de que, na década de 1970, a responsável pelo setor de imprensa de uma empresa pioneira em seguro de saúde foi muito elogiada por ter montado um setor que, a partir de informações dos médicos filiados, denunciava aos pauteiros de jornais, rádios e televisão todo e qualquer tipo de problema em hospitais públicos – conseguindo, mediante a exposição de espetáculos de horror valorizados pelas imagens de sangue, ratos e baratas, desacreditar a assistência de saúde que, apesar das deficiências crescentes, tinha certa credibilidade nas classes médias inferiores.

O mesmo aconteceu nas décadas de 1950 e 60 com o ensino básico. Naquela época, em cada cidade brasileira mais populosa, havia uma, duas ou três escolas públicas de excelente qualidade. Os colégios de aplicação das universidades; no Rio de Janeiro, o Instituto de Educação, o Colégio Pedro II, o Colégio Ferreira Viana e o Colégio Militar, que admitia alguns filhos de civis, como este que lhes escreve.

Como foi feito o desgaste dessas instituições? Na essência, combatendo os exames de admissão, que eram a chave do sistema, com o argumento de que ‘traumatizavam’ as crianças – naturalmente, as reprovadas. Por toda parte, até hoje, se impôs na rede pública o estranho critério de misturar os mais brilhantes e motivados alunos com os de menor aplicação ou interesse, nivelando os cursos por baixo. Para os colégios de aplicação, a preferência nacional lotérica pelo sorteio. Critérios pedagógicos lamentáveis, para um país em que viveram Anísio Teixeira e Paulo Freire, entre outros educadores notáveis.

Em nome de um socialismo de fachada, excluir as melhores, os mais brilhantes, deixando-lhes apenas livre o caminho da liderança no tráfico de drogas, no estelionato ou, na melhor hipótese, a senda tortuosa do autodidatismo e sua eventual validação acadêmica tardia. Por pressão do setor produtivo, sobraram, no segundo grau, as escolas técnicas federais, afora os sistemas do Senai e Senac, vocacionados, em regra, para a empregabilidade imediata.

Tolerância e informalidade

Há antecedentes no caso da investida sobre o ensino brasileiro de empresas multinacionais de ensino que se estruturam a partir de Miami e Los Angeles, de universidades periféricas francesas, italianas e espanholas.

O primeiro movimento nesse sentido partiu de uma avaliação equivocada do ensino pós-graduado brasileiro. A partir do número de bolsistas que o país envia para mestrados, doutorados e pós-doutorados no exterior, julgou-se possível validar títulos de pós-graduação em senso estrito a partir de falsas equivalências com títulos brasileiros (por exemplo, dos ‘diplomas de estudos aprofundados’, ‘licenciaturas’, ‘doutorados de estado’ e ‘doutorados do terceiro ciclo’ franceses; das especializações italianas que nomeiam seus formandos como ‘doutores’ etc.), ou da simples venda de títulos.

A Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Nível Superior (Capes) localizou perto de 9 mil desses diplomas (os que pretenderam validação pelas leis brasileiras), emitidos entre 1998 e 2001, mas o número deve ser muito maior. A maioria dos beneficiários da falcatrua pretendia adicional de salário (no âmbito de instituições educacionais, de pesquisa, governos e empresas) que, em muitos casos, foi concedido na presunção de boa-fé.

Provou-se a tolerância nacional: dos 9 mil diplomas examinados, só um foi considerado equivalente ao título brasileiro; no entanto, a única sindicância em curso, que eu saiba, ocorre no Ministério da Ciência e Tecnologia, que teve alguns de seus institutos envolvidos, junto com a UFRJ, em suposto convênio irregular.

Ainda hoje, universidades do Paraguai, da Espanha, dos Estados Unidos e de outros países vendem pela internet diplomas de pós-graduação em qualquer área – da Medicina à Engenharia Espacial – que, por motivos óbvios, trazem impressa no verso a advertência: ‘Sem validade no país de origem’.

Tive longa experiência em comissões de inspeção oficiais em escolas superiores particulares. Nas vezes (várias) em que desconfiei de diplomas não reconhecidos no Brasil, como manda a lei, ou apresentados apenas em cópia eletrostática, fui instado a conversar pelo telefone com autoridades no Ministério da Educação (muitas, ao longo do tempo). A conversa terminava inevitavelmente mais ou menos assim: ‘É, professor, o senhor tem razão, mas precisamos acreditar nas pessoas, ser tolerantes, afinal brasileiros são acostumados à informalidade…’

Numa idade em que se devem evitar aborrecimentos inúteis, não faço mais esse tipo de serviço.

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Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina