Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Comunicólogo, com muito orgulho

Já faz uns seis anos que escolhi a vida de pesquisador. Se eu fosse uma pessoa sensata, teria escolhido ser antropólogo, sociólogo ou cientista político. Mas, como eu tenho um instinto de autoflagelação, resolvi estudar o jornalismo. Infelizmente, a comunicação e o jornalismo em particular constituem campos do conhecimento relativamente negligenciados no quadro da pesquisa científica no Brasil. Como fenômenos sociais, possuem uma importância vital nas sociedades contemporâneas. Como objeto de pesquisa sofrem o menosprezo do governo, das agências financiadores, dos demais pesquisadores em ciências sociais… E dos próprios jornalistas!

É triste ver quando um jornalista trata com desdém as pessoas que buscam lançar um olhar crítico e analítico sobre as suas práticas. É doloroso ver o tom de desprezo quando ele se refere a nós, da academia, como ‘comunicólogos’. Nesse caso, a palavra traz uma carga simbólica forte. ‘Comunicólogos’ são os indivíduos que nunca foram jornalistas e que ficam emitindo opiniões descabidas sobre algo que não conhecem, do alto de suas torres de marfim.

Seria melhor atribuir ao ‘comunicólogo’ o mesmo estatuto de outras carreiras mais ‘nobres’ das ciências sociais como o sociólogo, o antropólogo, o psicólogo, o politólogo etc. O reconhecimento de um campo do conhecimento reflete a legitimidade que o seu objeto e os seus praticantes têm na sociedade. Só existem politólogos porque, em algum momento, os fenômenos políticos e os atores envolvidos neles adquiriram relevância social suficiente para que houvesse a necessidade de uma disciplina exclusiva dedicada a seu estudo.

A emergência de uma disciplina reflete ainda as disputas na comunidade científica visando reconhecer e legitimar esse novo campo. A criação da comunicação é a ‘vitória’ de um grupo de indivíduos que conseguiu provar que as especificidades e a relevância do campo coloca o estudo das mídias como algo maior do que uma simples subárea da sociologia. Por isso, eu tenho orgulho de ser chamado de comunicólogo. Na verdade, eu gostaria que me chamassem de ‘jornalistólogo’, mas ainda é cedo para esse tipo de neologismo. Espero que a Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo lute para que isso um dia aconteça.

Competência e interesse

Um segundo ponto a ser questionado é a crítica que desqualifica a priori o comunicólogo sem experiência em redação. De forma análoga, significaria dizer que, para ser considerado bom pesquisador sobre o consumo de cocaína, seria preciso ter sido usuário dessa droga. Ou que, para se especializar no estudo dos efeitos do HIV seria preciso ser soropositivo. Ora, pesquisa e prática são atividades distintas. Podem ser conciliadas, é claro. Podem e devem dialogar entre si. Mas uma coisa não é pré-requisito da outra

O mais irônico é que os jornalistas são, por princípio, especialistas na arte de falar das atividades alheias. Um jornalista cobre o Congresso sem nunca ter sido eleito deputado federal ou ter trabalhado na Câmara. Inclusive, esse distanciamento com relação ao ‘objeto’ é um dos princípios que legitimam a profissão. Por isso, é difícil entender por que certos jornalistas se recusam a ser observados ‘de fora’.

Para ser cientista é preciso competência e interesse no tema, mas sobretudo, conhecimento de campo. Aqueles que vêem os comunicólogos como indivíduos alheios à realidade da mídia demonstram total desconhecimento do trabalho de pesquisa em ciências sociais. Todo cientista deve se amparar em teorias. Mas é essencial reunir e analisar dados, estatísticos ou qualitativos – o bom pesquisador deve buscar in loco elementos que lhe permitam compreender um fenômeno. Para isso, ele se utiliza de técnicas, algumas delas, por sinal, bem ‘jornalísticas’, como entrevistas, pesquisa documental, observação etnográfica etc.

Duas realidades

Jornalistas e pesquisadores enxergam a sociedade de forma diferente [Sobre o assunto, ver O segredo da pirâmide, de Adelmo Genro Filho, disponível em www.adelmo.com.br]. E isso explica, em parte, as reações de certos jornalistas quando sua atividade aparece retratada por algum acadêmico. Os jornalistas enfatizam os eventos extraordinários ou de relevância política e social. Um fato jornalístico precisa ter impacto, os jornalistas quase nunca se interessam pela banalidade do quotidiano.

Um pesquisador busca entender e explicar a sociedade. Para isso, ele se prende justamente ao que é comum ao dia-a-dia das pessoas. O extraordinário deve ser descartado ou analisado numa perspectiva que lhe permita enxergar os processos que resultaram na ocorrência desse fenômeno.

Numa rua os jornalistas prestam atenção aos acidentes. Os pesquisadores, no fluxo dos carros. Numa ação policial, os jornalistas se interessam pelo número de mortes e prisões. Os pesquisadores, nos fatores sociais, históricos ou psicológicos que explicam a violência urbana. É como se os dois personagens vissem uma mesma cena de ângulos diferentes. Duas realidades distintas são construídas a partir de um mesmo evento.

Dois olhares

Quando um pesquisador escreve algo sobre o jornalismo é comum observar duas reações. Para alguns jornalistas, a pesquisa acadêmica serve para reafirmar o óbvio. Para outros, demonstra a ignorância do acadêmico com relação ao assunto analisado.

Eu, pessoalmente, já sofri as duas críticas. A primeira, como disse, explica-se pelo desinteresse do jornalista por assuntos ‘banais’. Os jornalistas acham desnecessário analisar o que acontece numa reunião de pauta, por exemplo. Eles vivem isso todos os dias. O problema é que, ao ‘neutralizar’ os eventos do seu quotidiano, eles acabam negligenciando as significações sociais neles implícitas. E, quando as coisas explodem os jornalistas são incapazes de dar uma resposta eficiente às crises profissionais.

Por exemplo: certos jornalistas podem banalizar a onda de denuncismo que tomou conta da imprensa política no Brasil. É algo que parece ‘natural’ à prática jornalística nos dias de hoje. Mas essas coisas podem terminar mal: erros irreparáveis, crise de credibilidade da imprensa, declínio no número de leitores etc. E aí, em vez de olharem para os próprios umbigos, alguns chefes da mídia preferem demitir profissionais e contratar empresas de consultoria. O que, obviamente, não resolve muita coisa.

Diálogo produtivo

A segunda crítica, aquela que tacha o pesquisador em jornalismo como um ignorante falastrão, é mais séria. Porque ela reflete um certo rancor e um desrespeito pela vida universitária, o que me parece totalmente descabido. Se somarmos o tempo de conclusão de um curso superior, mais mestrado e doutorado, descobriremos que é necessário, no mínimo, dez anos para se formar um pesquisador. Dez anos para ser foca no meio acadêmico! Ora, é absurdo chamar alguém que se submete a tudo isso de incompetente. Chega a ser vil, porque pesquisador no Brasil costuma trabalhar muito e ganhar pouco. E continua fazendo isso por uma paixão incondicional por seu trabalho e seu objeto de pesquisa. E ainda leva desaforo para casa.

Eu não passei tanto tempo estudando jornalismo por rancor ou frustração. Eu realmente gosto dele enquanto objeto de pesquisa, da mesma forma como muitos jornalistas são apaixonados pela profissão. E acredito que, apesar das diferenças, jornalistas e pesquisadores têm a ganhar com o diálogo. A boa ciência não se fecha em verdades absolutas. Ela é, por princípio, um processo permanente de desconstrução e reconstrução de seus preceitos. Daí a necessidade de se abrir para fora do mundinho acadêmico.

O mesmo serve para os jornalistas. O enriquecimento mútuo do campo e da profissão deveria estar acima de corporativismos e bairrismos profissionais. Todos deveriam ter orgulho de ser comunicólogos.

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Comunicólogo