Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Considerações sobre a teoria
e a análise do jornalismo

I

O campo jornalístico tem sido, dos campos da mídia, o mais analisado. O mais criticado. Criticado às raias da paranóia crítica porque tem-se atribuído ao jornalismo um poder manipulatório quase absoluto.

É evidente que aqui não estamos nos referindo à manipulação técnica pois, grosseiramente, poderíamos dizer que o jornalismo é uma atividade de manipulação técnica incessante. E o é. É o derramamento de petróleo no mar da Galícia que se transforma em manchete. É a viagem do presidente da França que se transforma em infografia. E por aí vai. Mas por que em infografia?, perguntam os analistas. Para esvaziar a explosividade da viagem, respondem as vozes da análise.

Para esta ordem de exemplos poderíamos usar outros exemplos de ordem pragmática, tais como: por que a fotografia do presidente da Argentina saiu impressa em cores vermelhas? Porque na hora da impressão faltou tinta marrom e o jeito foi utilizar logo a cor vermelha. Por que a foto do governador saiu fora de foco ou saiu exatamente aquela em que ele bocejava? Porque eram exatamente as melhores que o fotógrafo tinha no único rolo de filme. Por que o título da matéria saiu exatamente com a declaração mais infeliz do ministro da Ciência e Tecnologia? Simplesmente porque isto era a novidade, era a notícia, era o mais importante. E é função dos jornalistas dizer o que é mais importante. O importante, no caso, referia-se simplesmente à política nuclear brasileira.

Para corrigir os desastres informativos, existem os porta-vozes e os desmentidos posteriores. Mas este é um problema de assessoria de comunicação. Ou, então, por que só o secretário de Finanças foi ouvido pela equipe de campo de reportagem? Porque o ministro estava com a agenda lotada e por isto não estava recebendo jornalistas e, para isso existem os cargos de segundo escalão para receber a imprensa. E outros dois técnicos do Tesouro Nacional também não foram ouvidos porque estavam impedidos de falar com a imprensa. E uma terceira fonte não foi encontrada porque estava viajando e, finalmente, uma quarta fonte não quis falar.

Ossos do ofício do jornalismo diário… Qualquer estudante de Jornalismo quando sai a campo para fazer uma reportagem sabe muito bem das dificuldades de fechar uma pauta. Mas o analista, longe dos ossos do ofício diário ininterrupto do jornalismo, viu nisto tudo uma reação da imprensa brasileira contra o socialismo recém-parido. Evidentemente, estes são exemplos grosseiros e não estamos nos referindo a práticas realizadas pelo jornalismo de baixa qualidade e de baixo padrão ético e editorial.

A intenção destes exemplos foi mostrar situações rotineiras de produção que fogem da vontade e dos desejos de manipular e controlar tudo e todos. Os exemplos também foram utilizados com a intenção de exemplificar o quanto é preciso conhecer os meandros, as lacunas, os interstícios das regras da instância produtiva para analisá-la sem cair na consciência total do jornalismo ou no manual de produção de discurso contra a manipulação jornalística.

II

O domínio da cartografia jornalística implica ter noção do que significa verdade para o jornalismo. Do que significa objetividade para o jornalismo. Que não é a negação da subjetividade mas exatamente o seu reconhecimento, a sua afirmação. Saber o que são as notícias. O que é o jornalismo? O que são as notícias? O que e quem são as fontes? O jornalismo não é o tudo nem o todo. Se cada um e todos forem manipular em favor disto e contra aquilo, o telejornal não fecha e não começa no horário, tamanha a quantidade de manipulação ideológica, política etc. É evidente que não estamos dizendo que não existam manipulações políticas e ideológicas em situações, lugares e contextos determinados, é claro que existem e sempre existirão. Trata-se, no entanto, de uma outra questão, trata-se do reconhecimento de que são as fontes que fornecem a verdade factual ao jornalismo. Não existe jornalismo sem fontes porque o jornalismo é feito a posteriori do acontecimento. Mais do que nunca as fontes dão o conteúdo e o enfoque, basta ver o grande aproveitamento dos materiais vindo das assessorias de comunicação, transformando a atividade de assessor mais rentável do que a de jornalista/repórter.

Esta é uma relação estrutural entre jornalismo e fontes. E agora quem manipula quem? Não esqueçamos que tanto fontes quanto jornalistas e editores são elementos, da cadeia produtiva, interessados em notícia (em repercussão, em notoriedade, em audiência etc.). Uma relação estrutural interessada em produzir notícia (conteúdo, imagens e comentários). O princípio da verdade factual é muito caro para o jornalismo porque é dele que ele extrai a sua credibilidade e permanência. Até as ‘fábricas de mentira’ (Günter Wallraff) mantêm intacta a ilusão da verdade factual. Criam a partir da ilusão da verdade factual.

Ver também o caso da repórter Janet Cook, do jornal Washington Post que, no início dos anos 80, recebeu o prêmio máximo do jornalismo americano, o Pulitzer, ‘pelo seu relato ficcional de uma criança toxicodependente com apenas oito anos’ (Easear, 1986, apud Traquina, 2000). Verificar também o episódio mais recente, o caso Jayson Blair, repórter do jornal The New York Times que inventava e plagiava reportagens, ‘erros que haviam se tornado rotineiros’, conforme trecho da reportagem-sindicância (Folha de S.Paulo,18 de maio de 2003, p. A22). Estes casos ilustram o antijornalismo, a picaretagem individual ou quando o jornalismo é exercido por indivíduos impostores que se valem da mentira, da fraude, do engodo, da dissimulação e do plágio para sobreviver no topo da carreira. Invenção, fraude e plágio também em jornalismo constituem-se em atos graves.

Novos territórios existenciais

Da parte que cabe à teoria, ao conhecimento dos fenômenos, a problemática continua imensa porque a disciplina de Teoria do Jornalismo carece urgentemente de uma epistemologia, isto é, de uma sistematização das várias correntes teóricas e de suas perspectivas metodológicas; de uma sistematização do campo, do objeto e dos estatutos que conferem a existência teórica e metodológica do jornalismo. Essa lacuna teórica tem sido preenchida por análises discursivas e comunicacionais não-orientadas pelas regras próprias do campo sociológico da produção, mas orientadas por regras discursivas. Pois sabemos que toda produção produz discurso e leituras.

Essas leituras precisam levar em conta primeiro que a notícia não é o fato em si, a notícia é resultado de um complexo processo de produção. Segundo, que muito do que é analisado em relação ao campo do jornalismo não leva em conta a Teoria da Recepção. A Teoria da Recepção procura dar conta dos movimentos de leitura e de interpretação do trabalho jornalístico. Pois não existe uma única leitura, uma leitura fechada, um padrão de leitura do texto jornalístico. A produção jornalística atual está inserida no complexo contexto da pós-modernidade profundamente marcado pelas revoluções e inovações tecnológicas e pelas imposições dos mercados.

O jornalismo, visto como um lugar sociológico de produção de subjetividades (e não como jornalismo de mercado, para o mercado. Vide o caso das três capas das três principais revistas de informação semanal sobre o lançamento do livro de Paulo Coelho), é marcado pelos novos territórios existenciais pós-modernos, pelas forças homogeneizadas/instituídas, pelas novas forças de transformação, pela dispersão dos saberes, pela especialização dos campos do conhecimento, pelas novas frentes de criação. Não é algo regido apenas pelas normas da casa e pelos padrões de manipulação, como querem alguns. Apesar de toda sua precariedade, o jornalismo é algo mais amplo e complexo e realiza-se na história e na atualidade. Realiza-se ininterruptamente dentro do tempo presente, pois como bem o definiu Gomis (1991, p. 12) ‘o jornalismo é um método de interpretação sucessiva da realidade social’. Um trabalho ininterrupto de seleção e interpretação do mundo. Do mundo aqui perto do mundo lá longe.

Trabalho de escuta

De novo vamos nos valer da definição de Gomis (p. 36) de que o jornalismo é um fenômeno de interpretação, mais exatamente um método para interpretar periodicamente a realidade’. Esse ‘método para interpretar’ a realidade é o que constitui o campo de produção no jornalismo. E Gomis vai mais longe, diz que ‘a notícia é interpretação’. A notícia é interpretação porque é resultado de um processo de produção, resulta de um processo produtivo que possui regras próprias de coleta, pesquisa, seleção, verificação, redação, edição e exposição. De modo que podemos inferir que o jornalismo se constitui em um modo de interpretar o mundo. Muito pode avançar o conhecimento sobre a epistemologia do jornalismo e da notícia se os estudos discursivos e comunicacionais se concentrarem na questão do fenômeno dos efeitos sobre as audiências. Inferências analíticas sobre a ordem produtiva não fazem o conhecimento avançar porque batem nas tentativas de conhecer/desvelar/desmascarar as intenções manipulatórias de repórteres, editores e proprietários. Os estudos sobre a ordem produtiva requerem cuidados/procedimentos, muito bem demonstrados pela socióloga Gaye Tuchman na sua observação direta-e-participante dentro de uma redação de jornal.

A ordem da produção jornalística impõe mais tensão que coesão, mais complexidade que linearidade, mais negociação que consenso, mais heterogeneidades que homogeneidades, mais interdiscursos que autocentramento. E refere-se ao mundo. Está referida ao mundo, ao tempo sociológico. A ordem da produção jornalística está plena de causalidades, equívocos, acasos, pressão, tensão, estresse, cansaço, abundância, escassez, pontos de fuga, regulagem, erros, acertos etc. Basta uma única visita a uma sala de redação e de edição de uma emissora de televisão ou de um jornal diário ou de uma revista semanal de informação para verificar as expressões de ansiedade de jornalistas e de estagiários (pessoas sempre correndo contra o tempo, correndo contra isto, aquilo. Uma correria que não dá tréguas, que não possibilita tempo para o dirigismo permanente, para as manobras incessantes contra este, contra aquilo etc). Um continuum produtivo que define o jornalismo exatamente pela permanente continuidade, pelo trabalho permanente em busca da redução de erros, pela periodicidade, pelo tempo, pelo espaço que se repetem em forma de formato. É o território da tensão permanente entre previsibilidade e imprevisibilidade. O sistema produtivo jornalístico nunca se fecha, está em permanente estado de atualização. Atualização informativa, atualização tecnológica, atualização lingüística etc.

Por outro lado, a ordem discursiva (campo dos analistas do discurso e dos fenômenos de comunicação) lida permanentemente com os fenômenos de linguagem desencadeados pela ordem produtiva (que é também da ordem organizacional, tecnológica, industrial e etc). Sobre a ordem da produção, a noção de atividade foi desenvolvida por Pedroso, 2000. Assim, o jornalismo é o mapa e as análises discursivas e comunicacionais são as cartografias. Essas análises vão realizar estudos sobre o imaginário, sobre o sujeito, sobre o pré-construído, sobre o inconsciente, sobre a ideologia presentes na ordem produtiva que repercutem nos seus produtos e resultados. As análises discursivas e comunicacionais vão trabalhar sobre as evocações, as ressonâncias, os efeitos lingüísticos e de recepção. Enfim, vão fazer o trabalho de escuta porque a ordem da linguagem precede a ordem da produção e a ordem da recepção. Quais os saberes precedem o jornalismo econômico, por exemplo? Procurar respostas para o pré-construído, para o que está lá e aqui na ideologia, no imaginário, no inconsciente, na história, no mesmo e no outro.

A intenção de informar

A ordem da produção é referencial, está referida a lugares sociológicos e a fazeres, está co-determinada ao individual e ao coletivo, ao homem e à máquina etc. Está dotada de complexidades, de intencionalidade, de não-intencionalidades, de arbitrariedades, racionalidades, rotinas. Ordem que não se fecha em totalidades nem só em intencionalidades (Ver Pedroso, 2000). Evidentemente, a ordem da produção jornalística, constituída pela linguagem como o é, ‘é um lugar que produz realidades’ (Fausto Neto, 2002).

A ordem da produção é, assim, duplamente assinalada como um lugar sociológico de produção de subjetividades, de interpretação ininterrupta, de significações dadas e como um lugar de regulagem dos sentidos sociais. O jornalismo é, por natureza, um campo de regulagem dos sentidos. Ao evocar os princípios da referencialidade, da clareza, da exatidão, da verdade factual, o jornalismo não deixa os sentidos à deriva. O método da objetividade entra aí como o ‘farol no nevoeiro’ (Expressão de Furio Colombo), orientando os jornalistas nas noites de dúvida, de cansaço, de crise com a baixa qualidade do jornalismo feito por ele e pelos outros, de perplexidade diante do novo mundo, de abatimento, de exaustão, de denúncias, de desmentidos, de dossiês, de acusações, de especulações, de rumores, de intrigas etc.

As regras do campo informativo são reconhecidamente rígidas, reguladoras, buscando sempre o fechamento e não a abertura dos sentidos porque o jornalismo informativo diário é posto à prova diante da ‘cena original perdida’ (expressão utilizada por Fausto Neto, 2002). A ‘cena primária’ está perdida, então, o modo de dizer passa a ser referencial, controlado pelo princípio da verdade factual, porque o acontecimento perdido reacontece na tela da televisão, na tela da internet, nas ondas do rádio, nas páginas dos jornais e das revistas. O jornalismo é uma atividade movida pela linguagem e pela produção e regulada pelas regras dos seus gêneros porque a intenção de fundo é a intenção de informar. Os gêneros jornalísticos são dispositivos de controle de sentidos. São guardiões das regras do campo jornalístico; são lugares de passagem da figura do interpretante, da função do mediador. Os gêneros jornalísticos instalam/criam lugares de leitura. Os gêneros jornalísticos são ressonâncias da ordem produtiva que visa organizar/controlar o continuum, o turbilhão, as tempestades informativas do mundo da natureza e do mundo da cultura.

No balcão de opiniões

Se a história, a ideologia e a linguagem são constitutivos do jornalismo como prática social, o processo de produção de notícias (entre)tece-se em (inter)ações complexas, inerentes ao agente humano (incluindo conhecimento, consciência, sentimentos e etc sob o filtro e a regulagem próprias do indivíduo); inerentes ao sistema produtivo em si (incluindo saberes e fazeres pré-instituídos) e inerentes ao mundo, à época pós-moderna. O processo de produção, visto assim pela sua complexidade, pode ser compreendido como um lugar, um lugar sociológico de criação de subjetividades (e de verdades e de realidades) que atinge o imaginário das massas.

E aí entra a função do analista do discurso e das notícias, não para repetir que existe manipulação na produção. Pois a manipulação técnica e ideológica dos materiais é constitutiva do processo produtivo jornalístico. Até porque, como já sabemos, a notícia não é o fato em si. O que a ética do jornalista deve é tentar evitar a tentação de ‘manipular ativamente [porque esta] é uma atitude nitidamente política’ (Marcondes Filho, 1993, p.138). Manipular para favorecer/desfavorecer/des merecer/qualificar/desqualificar. Militar em vez de informar.

Evidentemente que o jornalista que manipula ativamente as informações e as edições deveria estar do outro lado do balcão, no balcão das opiniões. Aí poderá extravasar a sua necessidade de expressão ou o seu desejo de se sobrepor aos fatos e ao mundo. Ou dedicar-se às atividades de assessoria do seu partido político, por exemplo. O ideal do jornalismo responsável e de qualidade impõe ao jornalista o exercício diário do desafio da separação para suportar o Outro, o diferente. Quanto à questão de que lado do balcão está o jornalista, não estamos dizendo que exista uma separação objetiva ou ilusória entre informação e opinião. Estamos querendo dizer que não se trata, evidentemente, de uma separação mas de um movimento pendular contínuo, permanente, incessante entre sujeito e objeto, entre jornalista e fato.

III

Mas cabe ao analista um papel mais transcendente do que ficar preso na gaiola dos que não sabem o que querem (escritores, médicos, psicólogos que gostariam de ser jornalistas; jornalistas que gostariam de ser escritores, vereadores, senadores, governadores etc). Cabe ao analista dizer que existe um processo de criação de subjetividades alimentado pelo jornalismo; explicitar as características do processo, identificar os efeitos sobre as massas e as respostas que as massas criam/enunciam/evocam. Uma tarefa mais científica e humanista (por isto, esclarecedora) do que acusatória, reacionária, refratária, projetiva contra os super- poderes do jornalismo.

Pois há pelo menos ‘três fatores que jogam do lado do receptor, [e das massas] impedindo que a manipulação surta efeito: a memória, a vivência e a visão de conjunto.As três supõem reserva de informação anterior’ (Marcondes Filho, 1993, p.135). Assim, nem tudo e nem todos estão dominados. As massas respondem, votam, fazem novas elaborações e isto já é por si só muito importante. (Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República Federativa do Brasil apesar do Jornal Nacional e da Rede Globo. Collor não foi eleito nas Alagoas apesar de ser empresário/proprietário de empresas de comunicação. E por aí vai… Apesar disto, a liberdade e a democracia precisam de vigilância contínua pois a tentação de castrar o poder revolucionário do jornalismo rondam o mundo pós-moderno).

Quando Gomis (1991, p. 33) diz que ‘o presente das notícias não se define tanto por sua emissão como por seu comentário’, ele refere-se ao tempo presente social, à interação social, à recepção, à comunicação (aquilo que agora é comum). E acrescenta que ‘o presente é o que se comenta’ (Gomis, 1991 apud Gomis,1988). Assim, se levarmos em conta a notícia como ressonância do mundo de hoje, do presente histórico, grande é a tarefa da história, da sociologia, da antropologia e da filosofia para conhecer e explicar esse mundo, divulgado, propalado, difundido, expandido pelo trabalho jornalístico, que se denomina pós-moderno, pós-industrial, pós-história, pós-neoliberal etc. O mundo da chamada globalização (ou da homogeneização?).

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Jornalista e professora-adjunta do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul