Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Corrupção política é questão estrutural

Uma militante do PT, daquelas que ainda defendem a ‘Carta de Princípios’ e o ‘Manifesto de Fundação’ do seu partido, certa vez me disse, com um belo sorriso enigmático, mas triunfal: ‘Quem não entende de política, lê a Folha; quem entende, lê o Estadão.’ Ela logo me explicou que, com isso, não pretendia que a cobertura jornalística do Estadão fosse melhor que a da Folha, mas apenas que o Estadão é um jornal muito claro em seus objetivos, que ele desempenha magistralmente o seu papel de ‘instrumento de classe’ na luta histórica entre a elite econômica brasileira, que ele representa, e os trabalhadores. Claro, a Folha também faz parte da chamada ‘imprensa burguesa’, mas ela tergiversa, às vezes até fingindo mea culpa, o que acaba frustrando ou confundindo seus leitores. O Estadão, não: ele possui uma firmeza de caráter (reacionário), uma convicção (burguesa) e uma consciência de classe (dominante) semelhantes, no Brasil, talvez, apenas às da Veja, e olhe lá!

Por isso, quem entende de política, ou seja, quem sabe que existe uma luta de classes, lê o Estadão; e quem não sabe, lê a Folha. É preciso acrescentar a esse diagnóstico um detalhe que não foi mencionado naquela conversa, embora estivesse subentendido: que o Estadão seja lido por quem entende de política, não significa que todos os leitores do Estadão sejam politicamente alfabetizados. Não quero dizer que eles são exatamente ‘analfabetos políticos’, como aquele do poema de Brecht, pois todos os leitores do Estadão, justamente porque o são, parecem saber de tudo o que depende das decisões políticas: o custo da vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato, do remédio… E parece também que eles não estufam o peito, burros, dizendo que odeiam a política.

Porém, com quanta força apaixonada eles conseguem odiar os políticos! Um exemplo. Neste domingo (11/12), a edição online do jornal publicou uma matéria de Marta Salomon sobre desvio de dinheiro público por meio de entidades de fachada. O Estadão culpou diretamente o presidente Lula por ter facilitado o esquema de corrupção quando decidiu pelo veto ao dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que exigia declaração do Fisco para o repasse de verbas públicas a entidades privadas sem fins lucrativos. Nenhuma palavra, claro, sobre a abominação política que é a existência dessas entidades, mesmo as que não são de fachada. Elas vêm adquirindo grande poder desde o governo FHC e faziam parte das estratégias de desregulação do PV e do PSDB para o país, caso um dos dois partidos, não à toa chamados de ongueiros, saíssem vitoriosos na eleição presidencial.

A traição aos documentos históricos

O Estadão, além de não criticar a existência dessas entidades – quando personaliza o problema e diz que Lula ‘incentivou’, ‘facilitou’ ou ‘estimulou’ os desvios –, trata a corrupção como uma questão moral, dando a deixa para as diversas manifestações politicamente ignorantes, embora sobre temas políticos, típicas do seu leitor médio, como observamos facilmente nas centenas de comentários deixados na página do referido artigo. O desvio de verbas é chamado pelos leitores do Estadão de ‘safadeza’. Os sindicatos, apontados como origem da formação política da base governista, são descritos como ‘covis de ladrões’. O presidente Lula é um ‘charlatão semi-analfabeto’, enquanto ministros e deputados são chamados de ‘cachorros sarnentos’. E esses nem são os termos mais ofensivos. Logo percebemos que a condenação moral dos representantes do governo popular, que esses leitores do Estadão certamente não ajudaram a eleger, transforma o ódio e a violência numa estética de classe. A cada novo comentário, uma nova manifestação de ressentimento, normalmente de quem não perdeu absolutamente nada com o governo Lula a não ser o número de privilégios em relação aos trabalhadores. Esses leitores do Estadão acham que seus impostos sustentam os ‘vagabundos’ do programa Bolsa-Família, eles defendem que o MST deveria ser considerado um grupo terrorista, julgam que a cracolândia é uma questão de polícia, que executar bandidos e legalizar as drogas são as soluções mais baratas e eficazes contra o crime organizado, que os direitos humanos e civis são um luxo quando se lida com traficantes, eles usam a palavra ‘nordestino’ como ofensa… E tudo isso sem pudor algum!

São centenas de ‘Mayara Petruso’, a xenófoba do Twitter, nas páginas de comentários do Estadão. Então devemos ignorar as denúncias de corrupção, evitar as acusações e críticas aos políticos que compõem o governo Lula e o futuro governo Dilma? Esse é o contrário das declarações de ódio dos leitores do Estadão? Não. Mencionei no começo desse texto a ‘Carta de Princípios’ e o ‘Manifesto de Fundação’ do PT. Pois bem, a corrupção do governo Lula é resultado da traição dos atuais dirigentes do partido a esses documentos históricos, que representam, ainda hoje, os anseios da classe trabalhadora brasileira e os anseios do próprio partido.

O ódio e a violência

É preciso deixar claro que a corrupção política é uma questão estrutural, não moral. A acusação moral, nas páginas do Estadão, atinge todo o partido e as reivindicações históricas da classe trabalhadora no Brasil, enquanto a crítica estrutural, se pudesse ser feita, denunciaria a crise ideológica da direção do partido, que pode e deve ser superada. A acusação moral ao governo Lula tem sido um dos principais instrumentos de boa parte da mídia brasileira desde o seu primeiro mandato, mas foi elevada a níveis surpreendentes nas últimas eleições. Esse é um sinal do temor das classes dominantes diante da intensificação do processo histórico de construção de uma sociedade igualitária, cujas condições materiais, de fato, já estão dadas, mas é freada também pela direção equivocada do PT, que promove alianças contrárias aos interesses dos trabalhadores e do próprio partido em nome da governabilidade, criando, assim, as condições políticas para a corrupção econômica.

Nesse meio tempo, o Estadão e outros do tipo se esforçam para mostrar que ‘isso’ é o PT, que ‘isso’ é o máximo que podemos esperar de um partido de trabalhadores repleto de corruptos. Não dizem, entretanto, para retomar as referências, que tanto a prostituta e o menor abandonado quanto o político corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais são frutos do mesmo sistema de exploração e do abandono da busca pela realização de uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto no plano econômico quanto no social. Os leitores do Estadão aprenderam pelo menos uma lição nos últimos oito anos: as decisões políticas, especialmente as equivocadas, determinam o custo da vida, ou seja, a corrupção pesa nos seus bolsos. E isso é suficiente para deixar a burguesia pronta para o ódio e a violência.

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Historiador, Aracaju, SE