Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Da literatura para o jornalismo

Começo, meio e fim, atividade analítica, interpretação, ‘carpintaria’ do texto. Técnicas discursivas raras no jornalismo atual, muito preocupado com o processo industrial, com o dead line, sem se dar conta das pílulas narrativas insossas que produz com freqüência cada vez maior. Produzir e ler jornal tornou-se, nos tempos de hoje, uma atividade ‘pós-moderna’: porque pensam, os arautos do jornalismo, que o leitor não tem tempo para ler um grande texto, nem tem paciência para ‘decifrar’ uma frase construída além da meia dúzia de técnicas já decoradas pelo repórter e pelo editor e, por conseqüência, introjetadas no público.

Como narradores de acontecimentos e responsáveis pela memória de uma comunidade, o jornalismo moderno criou o seu ‘monstro’, um estilo seco de transmissão de informações, com vocabulário pobre, linguagem concisa e direta, sem tornar o texto individualizado ou com um mínimo de complexidade. Do jornalismo norte-americano, importou o lead, a técnica da pirâmide invertida, que hierarquiza as informações de modo a permitir que, já nas primeiras linhas, o consumidor possa absorver os dados principais da notícia, sem se importar com o conjunto do texto.

Além da produção da notícia, portanto, a fruição da informação no jornal tornou-se maquinal, descontínua, poupando o leitor de ‘grandes esforços de imaginação, usurpando-lhe uma gorda fatia da função de construir ativa e conscientemente a mensagem’ (Silva, 2002: 121). Assim, oferecem-se ‘pílulas’ informativas, valorizando o caráter visual na página do jornal, por meio de fotos, charges, infográficos e ilustrações. Ocorre, pois, a dispersão narrativa em microfatos, como se fossem autônomos, desprovidos de um sentido único, dado por um suposto ‘discurso totalizante’ – o que os liga é somente o suporte do meio jornal.

Objetividade, credibilidade

Exemplo disso são as mortes de crianças índias por desnutrição ocorridas neste ano no Mato Grosso do Sul: na grande imprensa, encontramos somente relatos absolutamente factuais de cada uma das mortes, misturado a tentativas exíguas de apontar, por meio de especialistas em saúde ou questões indígenas, a causa comum de todas elas. Ao leitor, fica a sensação de ausência informativa, a carência de dados para que cada um possa realizar a sua inferência sobre o fato.

O fragmento, que se mostra tão bem na diagramação dos jornais e nas próprias notícias (…) aponta para a inteireza que lhe falta, remete sempre a outro lugar.

Por inferência, a esse outro lugar nos enviam não só as notícias abandonadas, mas a suposição daquelas que jamais foram abordadas. Temos aí uma reserva donde sempre pode algo ser recuperado, algo disponível como notícia. (Gomes, 2000: 83)

Em poucos momentos, até agora, viu-se a tentativa, nas páginas dos jornais, em agrupar os fatos em um discurso que busque esgotar todas as possíveis interpretações, que se coloque no lugar do leitor comum e procure compreender as várias nuances da realidade. Aqui, não basta informar ‘objetivamente’, mas sim auxiliar o consumidor na tarefa de intelecção da notícia. Com o advento dos novos media, principalmente a internet, coube aos sites noticiosos a tarefa de informa concisa e rapidamente, em textos curtos, objetivos. Dos jornais e revistas, espera-se algo mais: o comentário, a interpretação do fato, que auxilie a comunidade na tomada de decisões e na formação de opiniões. Segundo Chaparro (1998: 76), ‘o discurso jornalístico caracteriza-se, cada vez mais, pela aptidão de captar, compreender e socializar, pela mediação crítica, os discursos interessados dos agentes produtores de acontecimentos, falas e saberes que desorganizam, reorganizam ou explicam a atualidade’.

A divisão do relato jornalístico entre informação e opinião foi estabelecida por Samuel Buckley, diretor do The Daily Courant, primeiro diário de que se tem notícia no mundo, nascido em maio de 1702, na Inglaterra. Buckley introduziu no jornalismo o conceito de objetividade, o relato isento dos fatos, sem comentários; esses ficariam em um espaço específico do jornal. Só assim, segundo o diretor, o jornal ganharia credibilidade perante o público leitor. Esse paradigma, bem ou mal, resiste até hoje.

Três direções

Para Chaparro, no entanto, ‘o jornalismo não se divide, mas constrói-se com informações e opiniões’. E explica por quê: de um lado, a apuração e o relato de um fato são intervenções valorativas de quem escreve, pois sempre há uma seleção daquilo que, na opinião do autor, é relevante no ‘garimpo’ do real; de outro, não se pode construir opinião sem basear-se em fatos ditos ‘objetivos’. Noticiar é, pois, sempre valorar:

O mundo de verdade que dá significação ao texto é um mundo de ajustamentos dinâmicos, em contextos reais, com múltiplos sujeitos (todos interessados) e muitas verdades – verdades de quem escreve, de quem lê, de quem informa, de quem comenta, de quem fala, de quem ouve… (…) E a interpretação dá-se por acordos e conflitos, por compreensão e incompreensão, por rejeições e aceitações, por desconfianças e crenças.

É em sua totalidade interpretativa que o jornalismo se realiza como espaço e processo cultural. (Chaparro, 1998: 28)

Nessa junção necessária entre informar e interpretar, o auxílio da literatura pode ser de grande valia. Segundo Medina, para além da questão de estilos, a ‘palavra-revelação’ é necessária tanto ao escritor quanto ao jornalista – para além das ‘carpintarias próprias’ de um ou outro segmento. Uma palavra que ‘não se consubstancia numa fria palavra analítico-descritiva, gramaticalizada em manuais de estilo, e sim na palavra narrativa, sintético-reveladora’ (Medina, 1990: 28). Cabe ao jornalista buscar a palavra essencial do acontecimento, a capacidade de simbolização mais perfeita possível da realidade – e tudo isso é oferecido, de sobra, pela literatura.

A reportagem é o campo por excelência da aplicação da linguagem literária no texto jornalístico. Seu texto permite uma grande liberdade de experimentações formais, pois o estilo da reportagem é menos rígido que o da notícia, podendo-se dispor as informações tanto em ordem decrescente, como na notícia, como narrar a história da mesma forma que um conto ou um excerto de romance. A reportagem também não possui o caráter imediato da notícia, o que permite um texto de lavra mais cuidada, interpretando o fato jornalístico. Na passagem de um prática para outra, mudam as configurações de tempo e espaço: ‘(…) enquanto a notícia registra o aqui, o já, o acontecer, a reportagem interpretativa determina um sentido desse aqui num círculo mais amplo, reconstitui o já no antes e no depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos presente’ (Medina & Leandro, 1973: 25).

De acordo com Medina & Leandro, a irradiação do acontecimento jornalístico (a notícia) no conteúdo da reportagem interpretativa se faz em três direções:

a) ao fato nuclear se articulam outros fatos que o situam num presente e num espaço conjunturais;

b) valoriza-se o humano no fato jornalístico, levando a uma generalização capaz de fazê-lo coincidir com os anseios e preocupações do grande público, dando a este a sensação de ser ele mesmo o herói. Isso se faz através de uma abertura de tempo (objetivo e subjetivo) e espaço (objetivo e emotivo) de modo a inseri-lo na história;

c) procura dar à informação jornalística um certo grau de cientificidade, um ‘quadro de referências criteriosamente reconstituído’, através, especialmente, de uma pesquisa de antecedentes históricos.

Modelo condutor

A reportagem reinterpreta a realidade percebida, ao captar o real sob múltiplos ângulos e observações. A maior profundidade na abordagem do fato permite a essa forma de narrativa jornalística um tratamento diferenciado do texto, mais elaborado que o noticioso. A busca de um formato narrativo mais refinado que os relatos-fórmula da notícia é fundamental para a estruturação de uma reportagem interpretativa. Do relato direto e padronizado da notícia tradicional parte-se para técnicas narrativas mais criativas. Foge-se aí das fórmulas usuais para a criação de fórmulas inovadoras e até mesmo artísticas, na qual o jornalista não dispõe de soluções imediatas e fáceis, mas busca novas soluções, novas linguagens para o enquadramento do fato. ‘Nesse momento só se diferencia do escritor de ficção pelo conteúdo informativo (realidade e não revelação ou transformação da realidade como na arte) de sua narração.’ (Medina, 1973: 25)

Para Sodré & Ferrari (1986), a reportagem jornalística é uma narrativa como a literária, contendo personagens, ação e descrições de ambientes, mas separada desta unicamente por seu compromisso com a objetividade da informação. Como em muitas formas da literatura em prosa, as principais características da reportagem são: predominância da forma narrativa, humanização do relato, texto de natureza impressionista (a subjetividade do sujeito do discurso) e objetividade dos fatos narrados.

Corroborando o caráter maleável e dinâmico da reportagem enquanto estrutura textual, Sodré & Ferrari afirmam que a reportagem pode alterar o modo de construção textual (a hierarquia das informações) de acordo com as características do assunto tratado, o que demonstra que ela não é um molde fixo, mas uma narrativa expositiva que visa à efetividade da comunicação e da transmissão de informações e também da troca de emoções com o leitor.

Há muitos pontos comuns entre a reportagem e o conto literário, pois algumas vezes o repórter encontra no conto o ‘modelo condutor’ do seu texto. ‘Pode-se dizer que a reportagem é o conto jornalístico – um modo especial de propiciar a personalização da informação ou aquilo que também se indica como ‘interesse humano’’ (Sodré & Ferrari, 1986: 75). No Brasil, a revista Realidade recorreu freqüentemente às características do conto, que são plenamente aplicáveis à reportagem jornalística:

a) força: a narrativa tem força quando consegue prender o leitor até o seu final. Para isso, é preciso uma combinação dos elementos textuais para produzir a intensidade que caracteriza a força da narração;

b) clareza: é um dos atributos essenciais do jornalismo e se refere à objetividade ligada à compreensão imediata por parte do leitor. Assim como no conto, a clareza é importante devido ao espaço exíguo e à necessidade do efeito impactante;

c) condensação: aproximar elementos num curto segmento narrativo, por meio da eliminação de detalhes intermediários sem relevância;

d) tensão: a narrativa é retardada para se gerar o suspense, mantendo a curiosidade do leitor. Tal dosagem desemboca num clímax, ponto máximo de interesse da história;

e) novidade: característica ligada à anterior, é a imprevisibilidade contida no texto, tanto no plano do conteúdo (ações inesperadas, personagens não caricatos) quanto no da forma (descrições surpreendentes, narrações de pontos de vistas inusitados).

Níveis de interpretação

É possível, portanto, fugir do padrão comum do texto jornalístico por meio da literatura utilizando-se da reportagem (jornalismo interpretativo). O resultado é enriquecedor para o discurso da imprensa: ‘(…) Linguagem expressiva se opõe à padrão pela criação artística que envolve. O padrão não desaparece – a clareza continua exigindo padrões gerais de neutrabilidade – mas a criação acrescenta formas, especialmente sintáticas, mais flexíveis’ (Medina & Leandro, 1973: 39).

A linguagem literária pode alterar a qualidade da informação transmitida num texto de jornal. Em que medida, pois, o embelezamento literário do texto jornalístico muda para melhor ou pior a qualidade do que está sendo veiculado? Qual a relação entre a qualidade do texto jornalístico e a qualidade da informação?

Para Hohemberg (197?: 73), ‘a precisão da linguagem torna mais claro o significado dos fatos’. Em um texto de jornal, pode-se ser preciso e, ao mesmo tempo, utilizar-se da linguagem literária, já que a beleza de uma linguagem artística e a precisão ao informar sobre o objeto tratado não são características excludentes, mas complementares. A aplicação da linguagem literária no texto jornalístico pode multiplicar a informação, desde que se entenda que essa última também possui conteúdos significativos per si.

Isso ocorre porque o emprego de recursos literários fornece ao texto vários níveis de interpretação, característica que os ‘arautos do bom jornalismo’ negam, dizendo que o texto jornalístico não pode oferecer mais do que um nível interpretativo. Interpretação do fato é algo que ocorre em qualquer texto verbal, seja ele literário, científico ou jornalístico. Conferir à narrativa vários níveis interpretativos talvez ajude o leitor a encontrar aquele que mais o satisfaça, não ficando ‘escravo’ de uma interpretação que se pretende única, mas pode não ser minimamente condizente com a complexa realidade que julga traduzir.

Realidade múltipla

A solução, pois, é revalorizar o talento nas redações, com jornalistas que saibam gostar da palavra e respeitá-la como um potencial recurso para a profissão:

Falta ao jornalismo atual espaço para o talento. O talento é a capacidade de gerar textos originais, com soluções adequadas e criativas, com abordagens diferentes e com maior alcance de absorção da realidade. No momento em que os assuntos são abordados sempre da mesma maneira, o jornal ou a revista ficam defasados em relação aos fatos. O leitor e o jornalismo sofrem com isso. O talento precisa ser despertado e ‘treinado’ no bom sentido. Ou seja, um editor precisa enxergar a capacidade do repórter, orientá-lo dentro dessa capacidade, desafiá-lo, chamar a atenção para a burocratização ou para a falta de objetividade do texto. (Dulclós, 2000)

A linguagem literária aplicada ao discurso jornalístico não é uma fuga, como muitos pregam: ela pode ser o único caminho capaz de levar o jornalismo à captação de uma sociedade complexa, com todas as suas contradições. Se a arte literária é exímia em captar, através de sua linguagem (a palavra-revelação) a essencialidade do ser humano, por que não transplantar essa potencialidade para o jornalismo? Afinal, não é esse também o objetivo último de toda prática jornalística? Será que o jargão dos jornais de hoje, tão simples, dá conta de captar uma realidade intrinsecamente complexa?

O repórter em busca da realidade. Com a sua sensibilidade. (…) Ouvindo histórias das vidas dos outros. Sugando dos outros, a única coisa que eles têm, além dos próprios corpos, nus: uma história, a sua perplexidade, as suas dúvidas, as mínimas certezas. O repórter e sua própria pobreza. (…) E o que lhe disseram ser ‘jornalismo’. E a linguagem que lhe disseram ser ‘jornalística’. Como esta linguagem se adequa aos olhos e às mãos daquele homem, à beira do rio? (Faerman, 1979: 148-150)

O que se tem é, de um lado, uma realidade múltipla, complexa e muitas vezes contraditória, que não se deixa abordar simploriamente. Do outro, tem-se uma linguagem monolítica que julga que, pelo seu verbo pisado e repisado em tantas edições consecutivas de jornais, conseguirá captar a essência do fato com objetividade e transmiti-lo sem preconceitos ao leitor. A abrangência do leque de possibilidades lingüísticas (literárias) na reportagem permite uma maior profundidade no plano dos conteúdos, dos significados sígnicos, o que só auxilia o jornalismo na transmissão de informações. No dizer de Medina, ‘acima de tudo, a literatura ajuda o jornalismo a que este se torne mais humano’ (1990: 29).

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Jornalista, mestrando em Teoria Literária da Unesp (Universidade Estadual Paulista), São José do Rio Preto