Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Diálogos e desafios a partir do jogo coreográfico

1. Introdução

A pesquisa proposta neste trabalho busca investigar as relações construídas entre público e obra artística na produção, elaboração e representação de conteúdos à cena contemporânea, examinando traços compositivos que fundamentem a construção da obra Jogo Coreográfico tais como o descentramento do espaço cênico, a introdução do acaso no fazer artístico, a não dependência estabelecida entre música e movimento, a autonomia do olhar na apreensão da obra; propomo-nos, porém, simultaneamente, a promover um estudo acerca dos arranjos simbólicos, elementos estruturais, que se articulam à concepção do espetáculo, desenvolvendo discussões e análises acerca de seus valores e interferências no empreendimento criativo, situando-nos, desse modo, na fronteira entre propostas coreográficas e abordagens conceituais e associando-nos, assim, ao discurso e conteúdo da Animação Cultural.

A recomposição destas redes densas de significações e interações que tramam a complexa unidade do processo de criação artística faz-nos apreender a relevância de um estudo pautado no fenômeno dialógico dos elementos sensíveis e técnicos para o levantamento de apontamentos que se desdobrem para além dos limites de um debate que se circunscreva ou detenha a descrição de processos criativos; exortando-nos, não ao estabelecimento de testemunhos que resgatem experiências, mas, sobretudo, a um caráter de imersão, pautado na análise do ato coreográfico, que possibilite-nos o encontro com a idéia de cientificidade e sua aplicação em nossas propostas de estudo; ensejando-nos a elaboração ‘de uma crítica radical dos valores dominantes na sociedade moderna e uma proposta de transformação do próprio princípio de avaliação de onde derivam os valores’ (MACHADO, 1985: 14).

Com isso, todavia, não pretendemos instituir em nossas observações procedimentos cristalizados e baseados em padrões de investigação que busquem formas uniformes de elaboração do conhecimento, validadas em conceitos, métodos e técnicas fundamentais à reprodução; procuramos, sim, instaurar a possibilidade concreta de analisarmos a realidade a qual integramos – enquanto intérpretes criadores do Projeto Jogo Coreográfico – sem que tal ordem de saberes nos escape a objetivação1, examinando, deste modo, nossas práticas em dança como um conjunto que relaciona significado à realização, ciência à arte; onde, decerto ‘a arte não só é reabilitada por sua força afirmativa da vida como também é escolhida como modelo capaz de impregnar o próprio conhecimento com a dimensão do trágico’ (MACHADO, 1985: 51).

Adotando, portanto, a cientificidade ‘como uma idéia reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos’2, estabelecemos processos cruzados e encontros possíveis entre a razão científica e o pensamento artístico, desmistificando antigos dilemas fomentadores de oposição e contrariedades entre o mundo social e o universo técnico.

A pesquisa, assim, aproxima-nos de um processo de familiarização entre ciência e arte, avizinhando-nos da produção de uma reflexividade mais consistente nos procedimentos de análise de obras artísticas e revelando-nos, à medida que nos possibilita reconhecer a parcialidade e provisoriedade constantes em todo ato de investigação, a idéia de que a ‘totalidade de qualquer objeto de estudo é uma construção do pesquisador, definida em termos do que lhe parece mais útil para responder ao seu problema de pesquisa’3, o que nos faz perceber ser irreal a pretensão que determinadas investigações sustentam de descrever e descobrir a relevância teórica de todo o universo pesquisado. Por isso, partimos, aqui, da perspectiva de que o trabalho proposto não abarca, de maneira alguma, o complexo de questões e problematizações disponíveis em nosso setor de pesquisa, tampouco liquida ou extingue todo o arcabouço metodológico e linhas de investigação possíveis a um melhor e mais amplo entendimento do espetáculo Jogo Coreográfico; entretanto, conquanto limitado, é a luz deste representativo nicho de pensamento que nos propomos a contribuir com a elaboração e o desenvolvimento das formas de organização do pensamento nos círculos do fazer coreográfico, dispondo-nos a examinar o processo relacional entre espectador e espetáculo e a avaliar a repercussão4 de cada um dos fatores que estruturam a obra Jogo Coreográfico, seus elementos simbólicos e dimensões compositivas, na produção de conteúdos à cena contemporânea e promoção de discursos no âmbito social.

2. A arte como representação cultural

Após uma breve análise da relevância do caráter atribuído ao relacionamento fundado entre público e composição coreográfica para produção de conteúdos à obra artística e a apresentação de nossos propósitos investigativos – para melhor identificarmos os aspectos promotores e organizacionais da pesquisa em questão – optamos, neste momento, em examinar a estrutura que trama o vínculo entre arte e cultura, propondo, sobretudo, conciliações a estas esferas no âmbito social.

Aí, percebemos que cada cultura possui uma lógica particular estruturada sobre um conjunto de bens simbólicos que possibilita aos seus integrantes o compartilhamento de ideais, hábitos, costumes e ações, viabilizando, desse modo, a participação e integração de seus indivíduos na organização social e facilitando-nos o entendimento de que toda sociedade humana se edifica através de processos que possibilitam aos homens identificarem-se e reconhecerem-se pela utilização de materiais culturais comuns. Donde depreendemos que o:

Modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são (…) produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura. (LARAIA, 2006: 68).

No entanto, este conjunto de práticas e bens que estrutura a cultura não está cristalizado ou se estabiliza em padrões comportamentais hermeticamente fechados, e sim se caracteriza por um movimento constante de (trans)formação, que nos faculta apreender a dinamicidade da cultura e a participação dos indivíduos na construção e reformulação de seus domínios. Neste contexto, a cultura é examinada como uma produção dependente de quem a faz, o agente humano; e este nasce, transforma-se e morre o que torna inviável a compreensão de que os seus modos de produção possam permanecer preservados e estacionados no espaço-tempo. Por sua vez, o homem torna-se resultado do meio cultural em que foi socializado, caracterizando-se como herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e as experiências adquiridas pelas gerações anteriores, o que garante à cultura a produção e o desenvolvimento da Humanidade.

Neste diálogo entre produto e produção – como elementos transitórios e em deslocamento – observamos uma relação diferenciada entre o ser e sua rede de significações, que integra-nos, ou ao menos aproxima-nos, da compreensão de que as realizações humanas – individuais ou coletivas – são desenvolvidas e desenvolvem um espaço cada vez mais carregado de informações e experiências. Daí, estabelece-se a necessidade de reflexionarmos as representações culturais, tais como as religiões, a moralidade, as ciências, a tecnologia, as artes, o comércio, o senso comum, entre outras, enquanto texturas de idéias, ações e realizações que instaurem uma contigüidade intelectual orgânica entre si, ou seja, como campos de fronteiras dúcteis e maleáveis que facilitem e predisponham-se ao estabelecimento de diálogos interdisciplinares e, por conseguinte, ao enriquecimento dos saberes e fazeres, nas formas de organização do conhecimento.

Isso não significa, é claro, que religião, ciência, alta tecnologia, tecnologia do cotidiano, ciências sociais, ciências naturais, crença e magia sejam tudo a mesma coisa. O que a nova sociologia do conhecimento faz, ao explicitar a base comum de todas essas formas de conhecimento e estruturação da realidade, é criar as condições para que suas diferenças e semelhanças apareçam com clareza, livres das mistificações e impostações com que cada qual trata de se defender das demais. (SCHWARTZMAN, 1997: 77).

Neste sentido, conseguimos analisar a Arte de uma maneira mais ampla e aberta; apreendendo-a não como um elemento autônomo, mas como subsistema pertencente a um sistema maior, a cultura, e em relação com os demais segmentos sociais. É certo que em quase todo o mundo, surgiram pessoas capazes de chegar à conclusão de que falar sobre a Arte em termos técnicos seria o suficiente para entendê-la; nas sociedades, porém, em que outros tipos de discurso (cujos termos e conceitos derivam de interesses culturais que a Arte pode servir, refletir, desafiar e descrever, mas não, por si só, criar) se congregam ao redor da Arte para conectar suas energias especificas à dinâmica geral da experiência humana, percebemos a promoção de alianças, entre a Arte e os outros setores da sociedade, que se mostram integras por oportunizarem um maior entendimento às representações artísticas, induzindo-nos a possibilidade de associação com o que ela (a Arte) tem de mais significante: o homem.

Afinal,

‘… os meios através dos quais a arte se expressa e o sentimento pela vida que os estimula são inseparáveis. Assim como não podemos considerar a linguagem como uma lista de variações sintáticas, ou o mito como um conjunto de transformações estruturais, tampouco podemos entender objetos estéticos como um mero encadeamento de formas puras’5.

Assim, apreendemos que o que o indivíduo é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita que se torna inseparável dele; esta indissolubilidade permite-nos analisar as práticas artísticas como propostas, possibilidades ou potências de Animação Cultural que renovam perspectivas e engendram processos de integração, ativação e participação entre sujeitos. Neste ínterim, apesar de a questão fatídica, que frequentemente se levanta nos Estudos em Artes sobre como associar as representações artísticas ao ser humano que se instala no cenário da contemporaneidade já estar solucionada (à medida que compreendemos e localizamos a Arte como um segmento da teia de significações que produz e é produzida pelos homens) surge à Luz do Pensamento Profundo, uma nova questão que nos convida a diferentes divagações e a busca de arejados esclarecimentos no vasto e problemático campo das Artes, ei-la: ‘Como uma representação artística (em nosso caso específico, a dança) pode induzir os membros de determinada sociedade a refletirem sobre suas ações dentro de determinado contexto cultural e induzi-los a produção de bens simbólicos?’

Certamente, pensar em uma Arte que induza a concepção de bens e provoque a criação, é denunciar ‘o processo de dominação ora explícita, ora escamoteada ao qual tem estado submetida toda a civilização ocidental desde os seus primórdios’6, é pensar, simultaneamente, em uma Arte que adquira a responsabilidade de ‘transgredir’ o atual estado das coisas, promovendo a experiência como ferramenta indispensável ao processo de fruição de suas representações, à medida que sabemos viver – o que complica ainda mais a questão – em uma sociedade que produz grande proporção de patrimônios simbólicos para as massas, criticada por favorecer a construção de unanimidades à medida que estimula o consumo acrítico; acusada de fomentar a homogeneidade que gera, por conseqüência, a automação, de desenvolver funções meramente conservadoras, de não oportunizar espaços que sirvam de estímulos à formação de seres reflexivos; censurada por encorajar uma visão e postura passiva cuja base é o desestímulo ao esforço pessoal, por não produzir ideais libertários e conscientes o que favorece a manutenção de preconceitos, mitos, estereótipos etc.

Assim sendo, para a promoção deste estudo torna-se imperioso a escolha de uma obra artística que viabilize provocações no âmago criador de seus espectadores, tornando-se propositora da produção ativa e consciente em dança; tal prática de escolha desenvolve-se, aqui, amparada pela familiaridade com o espetáculo em questão: o Jogo Coreográfico, concebido e dirigido por Ligia Tourinho, cujo objetivo consiste em exercitar o fenômeno da coreografia – o ato de coreografar e ser coreografado. A seguir, pois, propomo-nos a examinar a estrutura do espetáculo e suas conciliações a idéia da Animação Cultural, analisando, sobretudo, o papel em trânsito dos artistas-cidadãos envolvidos na confecção da obra.

3. Jogo coreográfico e animação cultural

Em primeiro lugar acredito ser fundamental esclarecer o que é o jogo coreográfico. Ele é um jogo para se exercitar o fenômeno da coreografia – o ato de coreografar e ser coreografado. Exige o mínimo de três jogadores, podendo ser realizado por pequenos grupos ou um grande grupo. Não existe um limite máximo de participantes, apenas um limite mínimo. Este limite mínimo sintetiza as três funções do jogo, são elas: Jogador coreógrafo – a função do jogador coreógrafo é de orquestrar e determinar as funções e objetivos do(s) jogador(es) intérprete(s). Jogador intérprete – a partir das indicações do jogador coreógrafo o intérprete cria sua dança dialogando com os demais colegas. Jogador público: Tem a função de receptor de informação e de após o exercício retornar suas impressões aos demais colegas. (TOURINHO, 2006: 81).

O Jogo Coreográfico compõem-se de três tipos de jogadores: Jogador Coreógrafo, concebe e determina a ação dos jogadores intérpretes; Jogador Intérprete, realiza as indicações dos jogadores coreógrafos; Jogador Público, visualiza as montagens coreográficas, apreendendo o processo de produção e criação em dança. Estes jogadores funcionam como recursos indispensáveis a concepção coreográfica, todavia, além do material humano a mecânica do Jogo demanda outras ferramentas, tais como: uma mesa de som repleta de Cds e dois microfones, elementos que possibilitam aos jogadores coreógrafos estabelecerem suas construções artísticas.

Em geral, o espetáculo inicia-se no saguão do teatro (ou em outros locais alternativos) com intérpretes e público reunidos formando um grande círculo (de mãos dadas); na ocasião, um dos intérpretes propõe uma oração típica do teatro e pede a todos que a repitam – ‘Eu seguro minha mão na tua, para que possamos fazer juntos, aquilo que eu não posso fazer sozinho’, este mesmo intérprete, após a articulação destas palavras informa que vai passar uma mensagem que deve percorrer o círculo sendo endereçada ao indivíduo do lado (de um a um), a sentença é: ‘Eu preciso de você’; daí, todos penetram o espaço cênico, os jogadores intérpretes se direcionam ao palco e o jogador público se encaminha para as poltronas ou assentos. Neste momento, os intérpretes apresentam seus nomes e números (cada um dos bailarinos é identificado por seus nomes e números inseridos em seus uniformes7 ou em material gráfico presente sobre a mesa de som), tornando-se identificáveis a todos, e em seguida, fornecem as regras do Jogo: os jogadores intérpretes podem realizar estruturas como andar, pausar e desenhar livremente pelo espaço, entrar e sair de cena, realizar ações simples, executar suas coreografias particulares (pequenas partituras coreográficas), imitarem-se uns aos outros, entre outras coisas; tais regras são conteúdos estruturais que possibilitam mais tarde a interação direta dos espectadores com a obra proposta. Só então, quando todas as regras são colocadas, o jogador público pode se tornar jogador coreógrafo, utilizando o microfone para indicar suas necessidades coreográficas e utilizando o som e diversidade musical em prol de sua composição. Os jogadores intérpretes cuja movimentação tem como suporte a improvisação e experimentação traçam em suas práticas gestuais o contato com o inusitado e imprevisível, estabelecendo aí, a indigência de ‘que o saber se acompanhe de um igual esquecimento do saber. (…) um ato difícil de superação do conhecimento. (…) uma (…) espécie de começo puro que faz de sua criação um, exercício de liberdade’ (Lescure apud BACHELARD, 1979: 194). Como a estrutura do Jogo possui dois microfones, para jogar basta se posicionar a frente do microfone vazio, esta é a deixa para que o jogador coreógrafo atuante finalize seu jogo e transfira a vez a um novo jogador.

Aí, percebemos que o caráter da produção artística instaura um estado de polivocalidade que além de orientar outros produtores em suas construções, dispõe ferramentas de composição, cuja elaboração se faz ‘melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores’ (BENJAMIM, 1994: 132).

Há uma pausa, o primeiro tempo é finalizado e após um intervalo de, aproximadamente, cinco minutos dá-se início ao segundo tempo do Jogo Coreográfico.

Nesta fase, os jogadores intérpretes podem utilizar objetos na construção das coreografias; como no primeiro tempo, os bailarinos iniciam a jogatina8 e depois formulam convite para o jogador público se transformar em jogador coreógrafo; nova pausa e, inesperadamente, o jogador público é convidado desta vez a exercer a função de intérprete, bastando para tal vestir uma das camisetas de reservas apresentadas. O Jogo finaliza com a participação dos espectadores nos três estágios possíveis a produção em dança.

Essa relação construída pela performance coreográfica e expandida em três direções que se cruzam sugere-nos a metáfora de um espaço polifuncional; metáfora esta, imediatamente, confirmada pelo trânsito e agitação que percebemos e que ‘reforçam a tridimensionalidade e eliminam uma separação clara entre público e área do atuante’. (COHEN, 2004: 59).

A obra coreográfica promove, pois, um deslocamento entre sujeito e objeto da contemplação ou realização, fundindo e confundindo as relações entre artista e público em um cenário de intervenção que estabelece interação e novos conteúdos estruturais à composição cênica. Instala-se uma linguagem de experimentação que rompe com o formalismo e a narrativa e oportuniza a confluência de elementos cênicos cujas bases favorecem o acaso, o evento e convida o espectador a participação.

O conceito de jogo aplicado à composição coreográfica é, portanto, mais que uma metodologia, é uma propriedade da arte com aplicação direta à representação. Por ser uma forma óbvia de expressão humana – presente desde os primeiros meses de nascimento – o jogo, cobre uma ampla variedade de atividades físicas e processos mentais. Espontâneo e autogerado é fim em si mesmo e constitui uma relação de ‘puro prazer’ por não precisar ter um aspecto funcional.

Filosoficamente, como conceitua Huizinga o jogo se caracteriza por ser ‘uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterioriza a vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogado de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com geral não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredos e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes. (TOURINHO, 2006: 82).

O jogo é o potencial da manifestação artística, cujo:

‘… impulso lúdico torna-se artístico quando é iluminado por uma crescente participação no consciente social, e por um senso do valor comum das coisas, quando em outras palavras ele se torna consciente de seu poder de modelar semelhanças que terão valor para outros olhos ou ouvidos trazendo reconhecimento e renome’ (READ, 2001: 129).

Desse modo, mais do que uma aplicação artística, o conceito de jogo e seu uso em um espetáculo de dança contribuem para formular uma parceria viva e ativa entre o espectador, a dramaturgia, a cena e seus demais agentes e elementos. Ai, o espetáculo e suas partes, historicamente desintegradas, coadunam-se para assumir uma importante proposta de intervenção cultural, uma Pedagogia Social.

O Jogo Coreográfico consiste em um desenvolvimento constante da desintegração de conceitos formais da Arte, pelo questionamento da natureza da obra artística e pela busca de uma forma de contato não contemplativo; a possibilidade prática de ação e realização do espectador, agora participante, que não somente pode entrar no interior da peça, mas gerá-la é a negação do artista como criador, mas sua localização como propositor de práticas. Assim, o espetáculo tem a necessidade de gerar e ‘improvisar uma ação de tal maneira que o público passe a participar como ator dessa ação. A ação pretende alcançar a integração do público, e então o público, na sua condição de público desaparece. E a finalidade (…) é (…): conscientizar o público e discutir a situação social’ (BORNHEIM, 1983: 54).

O espectador torna-se aí o co-participe do fazer, enriquecendo a pratica de proposição em dança, cuja própria elaboração inconclusa demonstra o desejo e a necessidade do outro e, com isso, a valoração da alteridade. O espetáculo passa a ser considerado como espaço de convívio, espaço para viver onde o fenômeno da criação é aprendido como trânsito que não se restringe a determinada(s) individualidade(s), mas como processo acessível a todos através do quadro de experiências propostas pelo exercício da ação.

Aí, percebemos que as representações artísticas podem, como ações culturais, veicular valores úteis ao desenvolvimento da sociedade. Provocando nos espectadores o desejo ativo e consciencioso de integração à produção de bens simbólicos, o espetáculo Jogo Coreográfico desloca a representação do âmbito de material produzido para as massas para o âmbito de criação pelas massas tornando-se um ato de celebração criadora.

Funcionando como limiar do fenômeno de transformação dos conteúdos artísticos, que não há de ocorrer de modo abrupto, o Jogo oferece-nos a saída mais útil para o desenvolvimento do panorama de dança na contemporaneidade: o cruzamento de uma arte de entretenimento a uma arte de proposta.

O espetáculo, portanto, não se limita à produção cênica, ele se estende (de várias maneiras) a fim de provocar reflexões sobre o fazer artístico, as relações que se estruturam entre público e obra, as estratégias de fortalecimento do espaço criativo em dança, as possibilidades de interação entre os variados grupos que reúnem-se na apreciação de um espetáculo, a intervenção necessária ao aprimoramento dos indivíduos, o mister de uma formação de público mais consciente e integrada aos homens e suas necessidades; enfim, o Jogo serve para pensar sobre o que produzimos e consumimos.

Defendendo não só o acesso de todos à Arte, como também o papel ativo de todos na produção coreográfica, ele possibilita um caráter ordinário à dança, trazendo-a para o domínio das pessoas comuns, sem elitismo. O artista passa a ser menos o autor dos textos coreográficos e mais aquele que propõe a ação coletiva, buscando o complemento da produção artística na contribuição dinâmica do espectador, agora participador.

Buscando contribuir a compreensão de significados e contextos culturais mais aprofundados e a resolução de problemas sociais, tais como a apatia, a passividade, a cultura de ociosidade e estagnação contemplativa, o espetáculo visa provocar questionamentos e, com isso, contribuir na edificação de uma sociedade mais ativa, solidária e justa; desse modo, o Jogo Coreográfico reconquista criativamente nos espaços de discussão sobre Artes Cênicas o interesse pelo público (no sentido mais amplo da palavra), atribuindo a sua produção, distribuição e consumo um valor cognitivo, útil para pensar e atuar na vida social.

4. Considerações (por agora) finais

A pesquisa apresentada neste trabalho busca refletir, mas, sobretudo, estimular a produção em Artes como processo responsável pelo estreitamento de laços entre os agentes humanos, estimulando e contribuindo para a transformação da cena em um espaço verdadeiramente democrático e favorecendo a edificação de um ambiente de promoção social, tanto na recepção, quanto na produção de bens simbólicos e na elaboração de discursos; por isso, na pesquisa proposta procuramos analisar os vínculos estabelecidos entre a arte e a cultura avançando qualitatitavamente nas discussões, provocações e práticas em dança.

Certamente, sob as condições vigentes se faz ‘inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa’9; no entanto, persistimos na tarefa engendrada, acreditando no potencial transformador e desmistificador do homem, da arte e da Vida e, mormente, validando os aspectos da Animação Cultural em nossas formas de ver e construir o mundo.

A guisa de conclusão, portanto, podemos depreender que a Animação Cultural ao perceber a necessidade de equilíbrio entre o consumo e as formas de produção e participação social nos possibilita fomentar em nossas práticas a humanização plena do indivíduo promovendo-o a agente e não somente paciente do processo social; favorecendo-nos, aqui, na construção de aproximações entre o Jogo Coreográfico e as perspectivas culturais iniciando e reconhecendo diálogos e desafios possíveis para a mobilização e construção de uma arte feita menos para os agrupamentos humanos e mais pelos homens.

Apreendendo a participação ativa de todos os agentes da obra e construção coreográfica como fundamento do espetáculo em questão, assumimos o caráter da experimentação em todas as instâncias da cena como instigação às nossas possibilidades de dialogo com o inusitado, a alteridade e o incomum, exercitando e excitando ‘a busca de novas formas de encarar a realidade social, direta ou indiretamente oferecidas a novas linguagens culturais’10 e apreendemos que ao provocarmos reflexões nos indivíduos, de maneira a aguçar estratégias de fortalecimento dos espaços fundamentais à coletividade criativa, somos nós, sobretudo, os primeiros beneficiados.

Desse modo, percebemos que o trabalho não termina aqui, novas elucubrações hão de advir potencializar o conteúdo de nossas práticas artísticas ao processo de promoção dos sujeitos a partir das experiências e arcabouços da Animação Cultural; estejamos, pois, abertos ao diálogo, mas também aos desafios que surgirão ante o quadro de nossas realizações, reclamando-nos presença, atividade e, mormente, contribuições no âmbito social.

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Artista-bailarino, mestrando em Ciência da Arte na Universidade Federal Fluminense