Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Do Porto para a Lusofonia

Todos os homens e mulheres têm paixões. Uma delas pode chamar-se museu de imprensa, mesmo que isso pareça estranho. Não são, aliás, as paixões tantas vezes campo de estranhezas várias?

O projecto do Museu Nacional da Imprensa de Portugal, mais concretamente a funcionar na segunda cidade do País, o Porto, dificilmente existiria se não fosse fruto de uma paixão.

Primeiro foi a ideia, já lá vão mais de 15 anos, seguida de pesquisas e recolhas de maquinaria que a renovação tecnológica sacrifica no cadinho do desenvolvimento. Processo longo, silencioso, que só em 1997 ganha significado com a abertura ao público. O Presidente da República, Jorge Sampaio, associa-se e inaugura assim o primeiro ‘museu vivo’ português. A coleccão de relíquias passava a estar disponível para culturalmente permitir composições e impressões a qualquer visitante. Poemas de amor ou textos emblemáticos de causas nobres podem ser impressos manualmente em velhos prelos.

Depois, o projecto foi crescendo em espólio – sendo hoje considerado um dos melhores do mundo – e inovação museal, a par do desenvolvimento de dois eixos principais: descentralização e internacionalização.

A descentralização permite não só a aposta em núcleos regionais (Celorico de Bastos – já criado – Funchal e Arcos de Valdevez, em processo), como a itinerância de exposições temáticas que, ora com o cartum, ora com documentos, testam e valorizam uma nova forma de actuar museologicamente. Por exemplo, neste mês Abril, dos 30 anos do ’25 de Abril’ – A Revolução do Cravos – temos diferentes exposições alusivas à efeméride em quatro cidades distintas. Associando a elas outras três mostras que, nas instalações do museu, evocam a queda da ditadura em 1974, está dado o tom sobre a preocupação em fazer do museu uma instância de memória e presentificação da história. De forma descentralizada, porque há um princípio que se segue desde a abertura: os bens culturais devem ser deselitizados. Neste caso concreto, com uma evocação importantíssima: o fim da Censura, essa máquina tenebrosa que foi aperfeiçoada ao longo de 48 anos para controlar a forma de pensar, ver e sentir a realidade, do país do mundo.

Papel histórico

O eixo da internacionalização tem sido desenvolvido com o ‘Museu Virtual da Imprensa’ (www.imultimedia.pt/museuvirtpress) e com uma matéria que pode ser surpreendente em Portugal: o humor. Exactamente, é através do cartum que o Museu tem alargado fronteiras. Prova disso é o crescimento exponencial do PortoCartoon-World Festival que, em cinco anos, passou a ser considerado como um dos três concursos mais importantes do mundo. Os temas das convocatórias anuais são sempre de relevo mundial e têm estado, por vezes, associados às designações da UNESCO para cada ano. Há dois anos, ano do Ecoturismo para a UNESCO, o vencedor do Grande Prémio foi o jornalista brasileiro Cau Gomes que está inteiramente dedicado ao cartum na Bahia. Este ano, tempo do Euro (em Portugal) e das Olimpíadas (na Grécia), o tema foi ‘Desporto e Sociedade’. A participação superou a edição anterior, com mais de 1600 desenhos, de 600 cartunistas de 62 países.

Esta aposta tem reforçado a ideia que temos vindo a defender desde 1997 de que o cartum não é só um género jornalístico (coisa que os manuais não consideram), como se traduz na linguagem mais universal da imprensa.

Hoje, com o PortoCartoon em velocidade de cruzeiro, procuramos apostar noutra dimensão: na criação de um Museu Sem Fronteiras da Imprensa da Lusofonia. Esta foi uma proposta apresentada na conferência de abertura do II Encontro da Rede Alfredo Carvalho. Pelo acolhimento e pelo extraordinário trabalho de pesquisa desenvolvido em todo o Brasil pela rede ALCAR, a utopia tem condições para ser pragmatizada. A ideia é simples: inventariar e preservar já o que existe da velha imprensa, nos oito ‘países lusófonos’; criar uma base de dados; utilizar o ciberespaço para a sede do projecto; e preparar uma programação que integre roteiros turístico-culturais que estimulem e valorizem não só a história de cada país (dos últimos 200 anos), mas também os intercâmbios culturais entre todos os países da lusofonia.

A imprensa, tantas vezes sepultada (quase!) pelos avanços tecnológicos, pode assim assumir mais um papel histórico na valorização humana: fazer a mediação cultural entre o que fomos e o que somos. Como diz Pessoa, o sonho é também a melhor forma de ver.

Será assim tão difícil ver que … a paixão espalha o prazer da cultura?

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Diretor do Museu Nacional da Imprensa (Porto, Portugal)