Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Dos livros de história às páginas policiais

‘A palavra ‘índio’ não quer dizer nada. Os índios – que antes eram xavantes, guaranis – acabaram assimilando essa denominação para conseguir um lugar’, afirma Lucia Rangel, antropóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Segundo a pesquisadora, os indígenas são mais vítimas de preconceito do que os negros. E essa discriminação começa na imagem de índio propagada pela imprensa.

‘A mídia vê o indígena como o xinguano, e quem não seguir esse estereótipo, é excluído’, aponta Benedito Prezia, coordenador da Pastoral Indigenista em São Paulo. De fato, 500 anos de miscigenação pouco mudou o conceito de índio propagado pela primeira vez na carta de Pero Vaz de Caminha.

De cabelos negros e lisos, pele morena e olhos puxados, Alísio Guarani se encaixa no padrão de índio conhecido, menos por um detalhe: Alísio mora em São Paulo, nas proximidades do Pico do Jaraguá. Analfabeto, ele vive junto com outras 40 famílias em uma reserva do tamanho de um campo de futebol. O representante da tribo Tekoa Pyau também já teve problemas com os jornais. ‘Tem muito jornalista que escreve no papel com outro sentimento da história’, conta o guarani, acostumado com a visita de repórteres na época do 19 de abril.

Alísio, no entanto, acredita na imprensa como o melhor caminho para mudar a atual situação dos índios brasileiros. ‘A gente gostaria de ter mais contato com os jornalistas porque, desde o descobrimento, não vemos o índio contando a própria história.’

Mesmo quando os jornais se lembram de abordar o assunto, nada garante a presença de indígenas dando sua versão dos fatos. Em uma análise das matérias publicadas na mídia impressa brasileira, no último mês, nota-se que é raro um índio ser entrevistado.

A jornalista da Agência Carta Maior, Verena Glass, justifica: ‘Não há no Brasil uma liderança, alguém que fale pelo movimento indígena. Também há barreiras do idioma. É muito difícil entrevistar um índio’.

Para a professora Lucia Rangel, a sociedade tem dificuldade de enxergar o índio como um sujeito de identidade própria. ‘Tudo o que eles contam precisa ser confirmado por um antropólogo, que ganha o poder de atribuir a um povo sua identidade’, afirma. Benedito Prezia concorda: ‘Os índios são reféns, nas escolas, do 19 de abril, e na faculdade, da antropologia’.

Para o pesquisador, a grande problemática indígena é só aparecer na história do Brasil do século 16, sumir, e hoje voltar à cena só quando causa transtornos.

Urubus sobre carniça

‘Em Pernambuco, o que a imprensa gosta é de derramamento de sangue, correm como urubus em cima de carniça. Mas não sabem nada da cultura, dos costumes, muitos não sabem nem que há índios no estado ou quantos são os povos’, denuncia Marcos Xukuru, cacique do povo Xukuru, uma das etnias do estado nordestino.

A preferência da imprensa pela publicação de crimes é percebida na leitura dos jornais e confirmada por pesquisadores. Na opinião de Rinaldo Arruda, antropólogo e professor da PUC-SP, uma das grandes reivindicações do índio atualmente é deixar de ser invisível. ‘A imprensa é bastante omissa. Ela só aparece quando há morte, de preferência muitas. O fato dela só relatar mortes e de maneira pouco refletida, é um desfavor para a causa indígena’, acredita Rinaldo.

‘Nos estados onde há mais conflitos (por terra), a discriminação é violenta. (Nesses locais) a forma como a imprensa trata o assunto é assustadora’, relata a jornalista Verena Glass.

Wilson Matos, presidente da Comissão Especial de Direitos Indígenas da OAB-MS, índio filho de mãe terena e pai guarani-kaiowáa, denuncia a dependência da mídia sul-mato-grossense em relação a políticos e fazendeiros. Para ele, o fato torna a abordagem das matérias parcial. ‘Vários líderes indígenas já foram mortos em nome da retomada de terras sem que isso fosse divulgado. Quando é o contrário, morre alguém do lado dos fazendeiros, a imprensa explora até a última gota’, afirma o advogado criminalista. Wilson, ex-cortador de cana e radialista, cuida de cerca de cem processos contra índios gratuitamente.

O advogado, no entanto, não culpa diretamente os repórteres. ‘O jornalista até faz bem o seu papel, mas ele não é o dono do jornal’, acredita. Segundo ele, o problema está nas pautas, que direcionam o trabalho de quem sai a campo. ‘Eles têm que buscar o que os donos querem divulgar, o que atende aos interesses de grupos de poder. Um fotógrafo já chega na aldeia sob a ordem: ‘preciso fotografar um índio bêbado, caído na sarjeta’, acusa Wilson.

Para Verena Glass, o jornalista precisa estar mais aberto à realidade encontrada. ‘Isso não significa que vamos defender o índio só porque ele é índio. Não podemos santificar o indígena, mas, como um setor frágil, é preciso protegê-lo’.

Segundo a jornalista, uma maneira de evitar o preconceito é incluir o índio nos debates nacionais e tratá-lo como um cidadão. ‘A questão indígena está no dia-a-dia, está no PAC, em temas como a energia. É preciso deixar de tratá-lo como fato isolado, folclórico, e trazer essa discussão para o cotidiano’.

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Jornalista