Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Escrevam um epitáfio para a ECA-USP

Há 40 anos como Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, a ECA pode ficar pela metade. A iniciativa parte de professores de Artes que preferem se separar institucionalmente das Comunicações. O comentário sobre a divisão ainda permanece restrito à universidade e apenas com a sua ampliação será possível avaliar qual peso tem essa sigla e a sua posição entre as 50 melhores universidades do mundo na área de concentração “Comunicação e Estudos Midiáticos”.

O título deste artigo joga com a eventual confirmação desse processo e convida seus leitores a ficarem a par da movimentação e a se manifestarem. No dia 13 de maio, às 14h, houve a primeira reunião de uma Comissão Mista que deve apresentar em 90 dias um relatório a ser entregue à Direção e, depois, a ser avaliado pela Congregação. Genericamente, a Comissão resulta de uma decisão tomada pela Congregação em 18 de fevereiro a fim de “repensar essa Unidade [ECA] como um todo”. Em termos práticos, analisa a proposta de separá-la num Instituto de Artes e do Audiovisual e, por consequência, numa Escola de Comunicações. Apesar de ser apresentada como um foro de debate, a Comissão também pode ser entendida como um plebiscito ou a caminhada de uma profecia autorrealizável.

A Unidade em questão tem oito departamentos e uma escola técnica, 31 grupos de pesquisa e 160 professores em dedicação integral. O número de matrículas feitas na graduação é próximo de 2.000 e na pós-graduação é superior a 500. Os dados são de 2011, mas são os que estão divulgados atualmente na página oficial desse centro. Quanto à sua posição entre as 50 instituições mais importantes do mundo, o dado foi levantado pela QS World University Rankings by Subject 2013, elaborado pela Quacquarelli Symonds.

O “polo das Comunicações”

A intenção de dividir a ECA parte de departamentos de Música (CMU), Artes Cênicas (CAC), Cinema, Televisão e Rádio (CTR) e Artes Plásticas (CAP) e se assemelha a proposta já feita nos anos 1980, quando o historiador e crítico de arte Walter Zanini era diretor da Escola.

A formação de um Instituto de Artes também foi mencionada em 1998. A Revista Comunicações e Artes, em seu número 33, registra esse interesse no texto “ECA em revista: os desafios da renovação”, o qual é assinado por quatro professores. Esse material chegou a ser fotocopiado e distribuído na primeira reunião da Comissão Mista. Em seu resumo de diagnósticos, o artigo assinala que “se não fosse a crise que enfrentamos [1998]” se deveria fazer a criação de um instituto de Artes, com o “A” em maiúsculo.

Não bastasse essa oposição entre departamentos e professores, ela ocorre num momento desgastante para toda a Unidade – a “Nova ECA” –, uma vez que a comunidade “ecana” e reitoria divergem sobre futuras as instalações físicas da Escola. O tema da divisão da ECA, tanto material quanto institucional, por enquanto circula restritamente dentro da USP. Um desses exemplos são as matérias publicadas em jornal-laboratório (aqui) e em associação de professores (aqui, página 3, e aqui).

Quanto ao “polo das Comunicações”, ele se constitui dos departamentos de Biblioteconomia e Documentação (CBD), de Comunicações e Artes (CCA), de Jornalismo e Editoração (CJE) e de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP).

Livros e vídeos

O processo político em favor da divisão institucional da Escola possui toda a legitimidade e sua discussão seguirá o cronograma estabelecido pela Comissão Mista e o trabalho de duas subcomissões. Uma delas fará a defesa da criação do Instituto de Artes e do Audiovisual, enquanto que a segunda argumentará pela permanência das Artes com as Comunicações.

O problema talvez – menos administrativo e menos superficial – seja mesmo o de tocar no patrimônio imaterial existente no nome ECA. Ademais, não é todo dia que o brasileiro percebe e reconhece positivamente os serviços públicos. Se há sempre o que melhorar na educação brasileira, por outro lado, parece haver um histórico favorável desse setor da USP.

Não à toa, ouvem-se comentários feitos por egressos como “eu estudei na ECA”, “quando eu fazia ECA”, nos quais eles evocam não só o tempo em que eram mais jovens, mas quando tiveram uma formação de qualidade. Ocasiões essas que dispensam cerimônias, pode ser uma conversa cotidiana ou quando Arrigo Barnabé e Denise Garcia ouvem e interpretam o primeiro álbum de música eletrônica erudita lançado no Brasil, em 1975, por Jorge Antunes (Supertônica).

Há uma série de oportunidades para se empregar o adjetivo “ecano” (adj. m.: pertencente ou relativo à ECA). A começar pelas territoriais competições esportivas entre as unidades da USP, certamente. Mas além de adjetivo, a fonte de referência chega a livros e a projetos, como o terceiro volume de “Pensamento Comunicacional Uspiano” (2011), organizado por José Marques de Melo, e a série de vídeos Memórias Ecanas, com mais de 200 horas de depoimentos ligados à Escola. O nome comparece no ato falho de um grupo de teatro ao preencher o formulário de um Festival de Teatro, quando escreve ECA quando deveria digitar USP. Acredite, acontece. No entanto, quem quiser saber se o vocábulo “ecano” tem aplicação, precisa circular pela Cidade Universitária e tirar a prova.

Quem somos e quem queremos ser

Dividida ou não, a “futura ECA” provavelmente preservará um fator. Ele seria capaz de promover uma hipotética junção dos dois blocos departamentais caso hoje eles estivessem separados em diferentes Unidades: Comunicações e Artes se complementam tanto na pesquisa quanto no ensino da Universidade de São Paulo. Afinal, como ocorreu ao longo das décadas, apesar de suas especificidades, é bastante comum professores de ambos os campos publicarem em revistas acadêmicas, lançarem livros e disputarem cargos eletivos em associações científicas sem contarem com distinções disciplinares tão rígidas.

No Brasil, há um gosto por se pensar naquilo que virá. Stefan Zweig chegou a dar material para uma expressão que se popularizaria – “país do futuro”. Aqui se gosta de olhar para frente, mas talvez nem sempre se reconheça o lastro daquilo que dá certo e causa orgulho. Afinal, se não falta personalidade para se olhar para horizonte e criar linguagens como fez Hélio Oiticica com seu “Quasi Cinema” e seus penetráveis, aqui ainda se procura lidar melhor com o passado. Nesse sentido, é interessante pensar como os regimes de exceção de país colocaram de mesmo lado comunicações e artes pela ação da censura, atingindo artistas, jornalistas, publicitários, críticos de arte, livreiros e editores. Passado que merece ser solucionado. Autoritarismo que assassinou Vladimir Herzog, uma das mentes que abrilhantou a história da ECA como professor.

É verdade que, em 1966, a Unidade se chamava Escola de Comunicações Culturais para só depois ser chamada de Escola de Comunicações e Artes. Mas enquanto a Escola enfrenta o desgaste de uma mudança física e talvez institucional, na França, uma efeméride é celebrada nas Ciências Sociais – são os 50 anos da Fundação Maison des Sciences de l’Homme (FMSH)–, segundo a observação da historiadora Isabel Lustosa (Estado de S.Paulo, 15/05/2013, aqui). Ou seja, as crises aparecem e somos convidados a entender quem somos e quem queremos ser. E, se for o caso, em persistirmos em propostas originais. O patrimônio imaterial da ECA merece toda a consideração.

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Ben-Hur Demeneck é doutorando da ECA-USP e representante discente no PPGCOM