Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Efeitos de didatização da realidade

O objetivo desse trabalho é estudar o funcionamento do discurso jornalístico, buscando compreender as marcas lingüísticas, que colocam em relevo formações discursivas, que fazem falar sentidos didatizados sobre o mundo e que movimentam jogos de imagens de sujeitos, atribuídas a si mesmo e aos seus interlocutores. Inicialmente perguntamos: de que discurso falamos? À luz de qual teoria o discurso será observado? Consideramos discurso como ‘efeito de sentidos entre interlocutores’ (PÊCHEUX, 1969) e o discurso dos relatos midiáticos, de acordo com Dranka (2005), configura-se como produto de uma instituição que, através da ideologia, mascara-se com uma imparcialidade e veracidade aparentemente inquestionáveis:

‘O discurso jornalístico é o produto de uma instituição que se apresenta como veículo de informação e portadora da verdade dos fatos. A imprensa ao alegar seu compromisso com a verdade, atua como ficção através de um mecanismo ideológico que produz o deslizamento do processo histórico que constitui sua discursivização, fazendo esquecer como o discurso jornalístico torna os acontecimentos visíveis impedindo a circulação de outros sentidos.’ (op.cit., p.3)

Assim, o discurso jornalístico tem importância na construção de determinados sentidos e no silenciamento de outros (ORLANDI, 1997), apresentando os relatos e as narrativas como fatos puros e apagando que inerente à construção dos sentidos, há relações de poder de várias ordens: os cargos hierarquicamente definidos dentro da redação, os interesses econômicos da empresa de comunicação, a relação com os patrocinadores, enfim, uma complexa teia, em que várias vozes litigiam. Nesse jogo de dizer e não-dizer, a ideologia define que há zonas de sentido autorizadas a circular e outras, que são tidas como indesejáveis e que precisam ser silenciadas. Esse processo ideológico é que permite ou proíbe as palavras de significar, decidindo os sentidos que devem ser propagados e aceitos como verdade, influindo na produção das notícias. Vale marcar que tal disputa é totalmente desconhecida por muitos leitores-consumidores de notícias, sobre isso MARIANI (1998, p.224) afirma que:

‘ … o discurso jornalístico, enquanto forma de manutenção de poder, atua na ordem do cotidiano, pois além de agendar campos de assuntos sobre os quais os leitores podem/devem pensar, organiza direções de leituras para tais assuntos. No dia a dia, o leitor comum nem sempre tem como perceber os processos de filiação de sentidos, ie, os deslocamentos e re-alocamentos de memória, reforçando a ilusão de unidade e transparência na relação das multiplicidades do presente e das indicações do que pode vir a se.’

Controle dos sentidos

Assim, tem-se que o leitor (poderíamos também considerar o ouvinte, o espectador, o internauta) da notícia está imerso na ilusão de transparência e completude dos sentidos sobre o fato. Esse jogo de poderes e influências, constitutivos da produção de sentidos da/sobre notícia, cria um efeito ideológico de evidência, em que os sentidos parecem neutros e óbvios. ‘A produção de sentidos na notícia dos fatos se realiza a partir de um jogo de influências em que atuam impressões dos próprios jornalistas (eles também sujeitos históricos), dos leitores e da linha política dominante no jornal.’ (Mariani (op cit, p.60). Além desses elementos, não podemos esquecer de que, o que é permitido dizer, o é em uma certa formação social, afetado pela historicidade, visto que: ‘o que é dito nos jornais depende fortemente das possibilidades enunciativas específicas de cada formação social em cada período histórico’ (MARIANI, 1998, p.65).

Lembramos também que, a memória da própria instituição jornalística influi na produção e significação das notícias, visto que ‘no discurso jornalístico, como tal, já se tem uma memória da própria instituição da imprensa agindo na produção de notícias. Memória que atua como um ‘filtro’ na significação das notícias e, conseqüentemente, no modo como o mundo é significado’ (op cit, p.67). Há também influências da imagem que a instituição toma para si, do lugar onde imagina ter constituída a sua história, do modo como ela inscreveu sentidos em outros contextos sócio-históricos e como o faz no momento da enunciação.

Levamos em conta a assertiva de que os dizeres já consolidados pela imprensa e as zonas da memória às quais os jornais já se filiou são essenciais para a fundamentação do falar jornalístico, funcionando como um filtro, de modo a selecionar o que não deve ser dito, o que precisa ser mantido, o modo como dever ser dito. Ressaltamos que há uma heterogeneidade vozes nos relatos jornalísticos, movimentando zonas do já-lá (PÊCHEUX, 1999) e imagens já inscritas em outros contextos sociais, produzindo sentidos no agora do relato, evidenciando um modo de formular e não outro, a escolha de um tema e não outro, uma determinada fotografia e não outra.

Como as empresas de comunicação vivem atreladas a interesses econômicos do grande capital (MORAES, 2002), podemos inferir que a ‘escolha’ de fotografias, textos e manchetes é atravessada pela formação social (PÊCHEUX, 1969) à qual tais empresas pertencem; e, desse lugar social, o dizer jornalístico tenta controlar os sentidos, passando a impressão de que não existem outros modos de dizer. (ROMÃO, 2006). Dessa forma, o discurso jornalístico não pode ser tomado como neutro, apolítico e objetivo; devemos, sim, compreender os mecanismos de luta pelo poder na trama social, desnaturalizar os modos de dizer e contar os fatos da realidade e do mundo e estranhar o que parece evidente, visto que só assim é possível flagrar, na materialidade dos relatos, reportagens, notícias, etc, os sentidos construídos e, principalmente, os silenciados.

Construção simbólica

Neste processo de instauração de certos sentidos e de silenciamento de outros, há movimento de formações discursivas (FD), indiciárias de posições-sujeito e de modos de dizer, ainda que, na página impressa ou eletrônica, a aparência seja de unidade. Tais reflexões trazem à baila o conceito de ideologia (PÊCHEUX, 1969), entendido como o mecanismo que interpela o indivíduo em sujeito do discurso, fixando para ele um sentido tido como único possível de ser dito, criando a ilusão de uma relação termo a termo entre as palavras e o mundo e apagando outras maneiras de dizer e de produzir sentidos. Dessa forma, a mídia: ‘controla a polissemia na tentativa de manipular o gesto de leitura do internauta e direcionar as representações lingüísticas, visuais e simbólicas para uma região naturalizada como a única possível de ser dita e narrar o fato.’ (ROMÃO; PACÍFICO, 2004, p.5).

A região considerada como única possível de narrar os fatos corresponde ao efeito ideológico de literalidade, de evidência e de exatidão da FD dominante, que faz o sujeito-leitor pensar que só há aquele meio de se dizer e narrar o fato e que, em Pêcheux (1969) recebe o nome de os dois esquecimentos. Assim, tem-se um imaginário que aceita o falar da mídia como verdadeiro, legítimo, único e neutro, isto é, que virtualiza a ilusão da referencialidade, pois, como já vimos, o relato midiático, afetado e construído a partir de jogos de influência e poder, não pode ser neutro: ‘a mídia enuncia de uma posição política, que nunca é neutra dentro de um contexto de disputa e confronto de poderes’ (ROMÃO; PACÍFICO, 2004, p.5).

Para Gregolin (2003), há nos textos da mídia a ilusão de unidade de sentido, ‘as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta’ (op.cit., p.97).

Como juízes

É importante procurar inferir sentidos ao que está marcado na materialidade lingüística e também escutar as marcas do implícito, não-dito, silenciado para compreender os mecanismos de produção da notícia, considerando os elementos, os jogos de disputa por dizer e os processos de calar, que influenciaram a construção do discurso jornalístico. Desse modo, o leitor busca percorrer e construir uma leitura menos ingênua, desconfiando da relação de completude e exatidão entre as palavras e o mundo. Dito isso, avançamos na direção de considerar o discurso marcado pela seguinte contradição: ser homogêneo e heterogêneo ao mesmo tempo, conforme descreve Dranka (2005, p.3): ‘A prática jornalística é heterogênea durante o processo de produção, mas seu produto final tende a homogeneidade, decorrente de seu caráter institucional. Essa hegemonia dos sentidos foi construída por um imaginário, um já-dito, produzindo a ilusão de objetividade.

A ilusão de objetividade, que esconde os processos de produção de sentidos das notícias e a heterogeneidade de vozes, refere-se à ilusão de neutralidade e veracidade do discurso jornalístico, características que traduzem o ideal de suposta confiabilidade creditado à instituição jornalística, ao longo do tempo. Tem-se a idéia de que ‘se em tal jornal ‘os fatos falam por si’, logo, se trata de um jornal objetivo e verdadeiro, pois utiliza-se de uma linguagem que está colada aos acontecimentos relatados’ (MARIANI, 1998, p.73). Por meio desta acepção, os fatos são como são, não se considera nenhuma intervenção na transmissão da mensagem, como se ela fosse um processo automático, negando-se a existência da subjetividade e, sobretudo, da ideologia, o que é confirmado por Mariani (1998, p.61-2): ‘… no discurso jornalístico mascara-se um apagamento da interpretação em nome de fatos que falam por si. Trata-se de imprimir a imagem de uma atividade enunciativa que apenas mediatizaria- ou falaria sobre- de forma mais literal possível um mundo objetivo’

Esses ‘fatos que falam por si’ ligam-se à imagem da instituição jornalística: ‘Os jornais agem como juízes, emitindo juízos de valor com base, não esqueçamos, na imagem que a instituição jornalística se arroga para si mesma: o poder de dizer a verdade com uma linguagem transparente, colada aos fatos que falam por si’ (MARIANI, op cit, p.197). Ora, nem o mundo, nem a linguagem, nem os sujeitos são objetivos, neutros, exatos e completos, tampouco transparentes. A explicação para os mitos da objetividade e neutralidade está no próprio discurso jornalístico, envolvendo fatores internos e externos de controle, como discursiviza Mariani (1998, p.73):

‘… tal crença na idéia de informação neutra, objetiva e imparcial, resultado desse ‘domínio’ da linguagem referencial, é resultado da própria história da constituição do discurso jornalístico. E neste mito da informação objetiva, tanto a censura como o aparato jurídico que se formou em torno da imprensa desempenham um papel bem importante, uma vez que ambos acompanhavam e ainda acompanham a palavra impressa. Em outras palavras, a noção de informação no jornalismo também precisa ser avaliada como decorrência das leis que constituem a idéia de liberdade presente na instituição imprensa. Observando a ‘comunicação referencial’ por este ângulo, comunicar/informar/noticiar (na imprensa) são atos resultantes de um controle exterior, vindo do Estado e do sistema jurídico por um lado, e por outro, de um controle internalizado na própria atividade jornalística. Os efeitos ilusórios estão aí: o controle interno e externo garantindo a objetividade (e neutralidade etc,) garantiria também a imprensa como digna de fé.’

‘Medo no Estado’

O que é aparentemente objetivo, na verdade, já é produto de uma inserção no discurso, uma determinação ideológica dos sentidos e dos percursos dos sujeitos. Essa determinação e institucionalização de sentidos é uma característica do discurso jornalístico, que constitui o imaginário social e didatiza um modo de ler a realidade. Segundo Mariani (2006), este discurso atua na institucionalização social de sentidos. ‘Contribui na constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado, bem como na construção da memória do futuro’ (op.cit, p.61), atua assim, nos dizeres já ditos e nos a serem ditos, produzindo sentidos a partir da referida ilusão de objetividade. Na perspectiva da referencialidade, a língua não é vista como em sua injunção ideológica, em seus movimentos de diferentes sentidos, mas, apenas como instrumento de comunicação e de informação, o que denotaria imparcialidade e exatidão, perspectiva essa que descartamos.

Observa-se que, além de lançar direções de sentido para a leitura, a imprensa pode construir os chamados ‘eventos-notícias’: ‘… a imprensa tanto pode lançar direções de sentidos a partir do relato e determinado fato como pode perceber tendências de opiniões ainda tênues e dar-lhes visibilidade, tornando-as eventos-notícias.’ (MARIANI, 1998, p.59). No mecanismo de disputa e de jogos de poder, que regem o discurso jornalístico, dá-se a manipulação citada, visto que os jornais funcionam instituindo uma ordem e fazendo circular os sentidos que interessam às instâncias que o dominam; para tanto, fazem circular alguns sentidos e não outros, produzem consensos, didatizam explicações sobre a realidade e constroem evidências.

A edição do jornal Folha de S. Paulo do dia 15 de maio de 2006 textualiza esse modo de didatizar os fatos, construindo um percurso de sentidos que, tanto ordena uma ordem para a instabilidade do presente (Mariani, 1998), quanto fixa um sentido dominante. Na página de capa, duas grandes fotos – uma de um ônibus em chamas e outra do interior da cela de um presídio – acompanham a manchete: ‘PCC ataca ônibus e fóruns, promove megarrebelião e amplia medo no Estado’. A sigla PCC nomeia o grupo responsável pelas ações que o jornal quer denunciar e reclama do leitor o acesso do leitor ao arquivo (Pêcheux, 1997), visto que para interpretar essa manchete, ele precisa mobilizar todos os usos sociais dessa sigla, os contextos em que ela foi mobilizada, o interdiscurso que a sustenta e o modo como tudo isso constrói um percurso de sentidos sobre a questão da violência e da exclusão no país. A marca lingüística ‘ataca’ marca os efeitos tidos como bélico e violento das ações deflagradas pelo PCC e também coloca em funcionamento a imagem de selvageria, barbárie e animalização atribuída a esse grupo, tornando-o o principal e único autor da megarrebelião relatada. Os efeitos de perigo, de logística brutal, de violência e de falta da ordem da Lei são tecidos no/pelo diálogo entre as palavras e as imagens, fazendo narrar como conseqüência direta o ‘medo no Estado’.

‘Todo mundo sabe’

Ao fixar, na ordem da língua, que ‘PCC ataca’, o discurso jornalístico fixa uma diretividade de leitura e põe em movimento um modo de dizer sobre a cidade com seus ‘ônibus e fóruns’ atacados, sobre o Estado com o ‘medo‘ ampliado e sobre o sistema penitenciário em situação convulsionada pela ‘desordem’. Assim, ao inscrever tais sentidos, tal relato ordena discursivamente o espaço imaginário da cadeia, da cidade e do país, estabelecendo didaticamente uma ordem gradativa de espaços atacados e vulneráveis a ação do medo, cujo saldo é apresentado logo abaixo da manchete em letras grandes e vermelhas:

** 68 mortes

** 125 ataques

** 78 rebeliões

As estatísticas, ditas nesse contexto de turbulência social, mais do que quantificar os ‘ataques’ e as vítimas, estabelecem uma relação matemática de contagem dos acontecimentos e de medição de sua extensão. Ao usar os números, topicalizando-os um abaixo do outro, o discurso jornalístico coloca-se como a voz da exatidão, didaticamente capaz de ensinar ao leitor a dimensão e o alcance dos fatos e, desse modo, ele tende a construir para si a imagem de que o jornal conhece e sabe com precisão o número de vítimas, ataques e rebeliões, esteve presente na cobertura dos acontecimentos e o fez com eficácia, tanto que divulga os números da ‘verdade’. Ao apresentar o número como prova contundente, o sujeito desse discurso produz o sentido de certificação, de conhecimento da realidade, de comprovação e, desse lugar de saber e poder, ensina, explica, sentencia, enfim, dá aulas ao leitor.

Quando alega o ideal de ‘verdade’ a ser transmitida e ensinada ao leitor, a imprensa nega o processo ideológico de construção dos fatos e das evidências, dessa forma, apaga outros modos de relatar e documentar a realidade, cristalizando apenas uma formulação para o desarranjo do presente e da sociedade. Conforme Mariani (1998, p.81):

‘ … ao alegar seu compromisso com a ‘verdade’, a imprensa finge não contribuir na construção das evidências (ou mesmo, do sentido literal), atuando, assim, no mecanismo ideológico de produção das aparências de obviedade. Daí seu caráter ideológico, e não um pretenso compromisso com a verdade.’

Tal ideal de verdade, do qual desconfiamos e que negamos, exclui a consideração de qualquer possibilidade de influência ideológica na produção da notícia, seja ela por parte do autor da reportagem ou do veículo jornalístico no qual se insere, já que considera que a verdade estaria colada aos fatos, não sendo passível de qualquer manipulação. E como tala verdade estaria nos relatos, espera-se que o leitor se aproprie dos consensos instaurados pelo discurso jornalístico como lei a ser seguida, filiando-se à opinião abrangida pelo jornal, que remete ao ‘todo mundo sabe’:

‘O discurso jornalístico contribui, desta forma, na produção de verdades locais, as quais ligadas circularmente aos sistemas de poder (FOUCAULT, 1984) vão sendo disseminadas como consensos sociais. Ou seja, a prática discursiva jornalística permite a institucionalização social de certos sentidos, remetendo ‘ao que todo mundo sabe’ (uma verdade local) e ao silenciamento de outros sentidos, resultado de uma política do silêncio.(Orlandi, 1992).’ (MARIANI, 1998, p.226)

Apenas uma versão

Assim, não se filiar a voz e ao relato do jornal corresponde ao gesto de ocupar outra posição que não aceita o sentido dominante e fura o previsível. Romão (2006) nos fala sobre a mídia e a produção de consensos, expondo que na comunicação global, o discurso jornalístico nutre-se de imagens e depoimentos em fontes globais, que disseminam a todos as mesmas informações, naturalizando uma única região de sentidos, aceita como consenso e como única. Considerando que a ‘verdade’, tal e qual não pode ser registrada, visto que temos apenas relatos e versões dos fatos, vale marcar que a mídia atribui a si mesma um papel e um lugar de onipotência e onisciência (BUCCI; KELH, 2004),

fazendo falar um imaginário de força, poder e eficácia na cobertura do mundo em todo lugar e a toda hora. Essas duas potências combinadas promovem a voz da verdade, ou seja, instala-se nesse lugar e funciona discursivamente a partir dele, apagando sentidos indesejáveis.

Gostaríamos de tomar outros recortes da reportagem da Folha de S.Paulo (C4), dias 16 e 17 de maio de 2006, a título de exemplificação, visto que é interessante flagrar a imagem que a mídia tem de si mesma e como ela tece tal representação, evidenciando o efeito de uma verdade a ser ensinada ao leitor, didaticamente. O box destacado chama-se ‘Momentos da crise em SP’, que sustenta uma narrativa marcada cronologicamente pela seqüência: ‘quinta-feira’, ‘sexta-feira’, ‘sábado’, ‘domingo’, ou seja, um tempo de investigação que pretende tornar natural o sentido de que o sujeito conhece o desenvolvimento das ocorrências, acompanhou os fatos com freqüência e, dessa forma, conhece ‘verdade‘ do dia-a-dia da cidade em pânico, explica o desenrolar dos acontecimentos passo a passo para o leitor, não perde os detalhes, saber ‘tudo’ sobre os momentos da crise e enuncia o que é importante e deve ser conhecido e aprendido pelo leitor

Vale marcar que essa imagem sustenta o imaginário de que o dizer jornalístico corresponde à realidade e verdade dos fatos, criando a ilusão de uma relação termo a termo entre a linguagem e o mundo. Apaga-se, por exemplo, a condição de que os enunciados da mídia são construção sociohistórica e, como narrativa, são sempre e antes de tudo apenas uma versão sobre a realidade, e que, como versão, sempre silenciam outras formas de narrar, diferentes modos de dizer sobre, múltiplas maneiras de percorrer e produzir sentidos. O sujeito pontua o dia da semana e o horário em que a crise apresentou os momentos mais delicados ou merecedores de destaque: na manha da última quinta-feira, ‘à noite’ e ‘durante a madrugada’ fracionam o tempo em pedaços a serem ordenados, indiciando o efeito de uma virtual seqüencialidade no correr das horas, organizando uma cronologia sem buracos e tentando domesticar os efeitos de dispersão, de equívoco e de furo provocados pelos ‘ataques do PCC’. Tal movimento faz falar o modo como o discurso jornalístico enuncia, supondo didatizar o que no plano do discurso e dos sentidos é descontrole, fixando apenas uma possibilidade de conter a contraditória ordem da realidade, estabelecendo relatos considerados coerentes do ponto de vista do tempo e, nesse caso, registrando um boletim de ocorrência cuja expressão numérica é flagrada.

Efeito ideológico

Outros quadros também instalam efeito de didatização: ‘Quem é Marcola’, ‘Quem decide hoje pelo governo’, ‘Como começa uma rebelião, ‘Como funcionar a tecnologia de bloqueio’, ‘Dia-a-dia da violência’, ‘Guerra urbana na região’, ‘Mapa das rebeliões’ são formulações que aparecem acompanhadas de infográficos, ou seja, de roteiros rápidos de narração, cuja marca principal é a tentativa de controle dos sentidos e dos discursos sobre a realidade. Quantifica-se supondo explicar detalhes, didatizar a realidade e enunciar certeza (dos números de mortos, ataques, rebeliões e das horas, dos locais, dos personagens envolvidos), sob o efeito ideológico de que, nesse correr do/de tempos e números, uma ordem e uma organização possam ser contadas e ditas como exatas, verdadeiras, objetivas, evidentes e óbvias.

‘Entendemos que noticiar, no discurso jornalístico, é tornar os acontecimentos visíveis de modo a impedir a circulação de sentidos indesejáveis, ou seja, determina um sentido, cujo modo de produção pode ser variável conforme cada jornal, mas que estará sempre submetido às injunções das relações de poder vigentes e predominantes.’ (MARIANI, 1998, p.82).

Não há espaço para vozes dissonantes, para sentidos de resistência, para outras palavras que desafiam a FD dominante, conforme atesta Mariani (1998, p.138): com ou sem os muitos períodos censórios, no discurso jornalístico há pouco espaço para vozes ideologicamente divergentes se fazerem entender.’ Já em Gregolin (2003) encontramos a consideração de que a mídia não funciona apenas como suporte ideológico dos discursos dominantes, sendo também um espaço de resistência a discursos oficiais. Assim, apesar de não constituírem a maioria, há discursos contrários aos oficiais circulando nos meios de comunicação do país, seja em charges, cartuns, artigos assinados, caricaturas, cartas publicadas no painel do leitor etc. Interessa-nos marcar que, ainda que apresente tais espaços de/para a resistência, a página do jornal centraliza uma voz e inscreve a institucionalização dos sentidos que didatizam o cotidiano, os fatos e o mundo:

‘O discurso jornalístico atua na institucionalização social dos sentidos, buscando promover consensos em torno do que seria a verdade de um evento. Para tanto, o discurso jornalístico assume um caráter didático, em que as explicações têm a forma causa/conseqüência, aparecendo pontuada com exemplos. A operação de definição faz parte dessa pedagogia institucional jornalística como modo de didatizar as informações’ (MARIANI, 1998, p.145).

Essa ‘pedagogia institucional jornalística’ pode ser interpretada no exemplo com o qual estamos trabalhando nesse artigo. Ainda tomando a edição da Folha de S. Paulo do dia 15 de maio de 2006, observamos que a quantidade de infográficos do caderno Cotidiano salta aos olhos, o que para nós é indicio do efeito ideológico (e do desejo) de didatizar e controlar. Interessa-nos refletir, no infográfico ‘Números dos ataques’, sobre o modo como os números discursivizam os fatos e como narram o espaço.

São Paulo

5 centro

8 norte

5 oeste

9 sul

15 leste

Estado de SP

17 Grande SP

10 Litoral

30 Interior

16 Localização não confirmada

De novo, marcamos como o uso do número põe em funcionamento o sentido de exatidão e de mapeamento seguro e comprovado dos fatos, do qual o leitor não ousaria discordar, visto que, como já dissemos, há no número o efeito ideológico de um dado irrefutável. No caso, o gráfico faz falar a geografia dos ‘ataques’, desenha as localidades atingidas na cidade de SP e em todo o corpo do Estado de SP, além disso, sistematiza uma lição para o leitor conhecer a territorialização do perigo.

Mídia e consumidor

Esse didatismo reforça a ilusão de objetividade (MARIANI, 1998), produz explicações, estabelece causas e conseqüências, apresenta infográficos, sinaliza resumos e sínteses, apresenta fotos e closes de ângulos confortáveis aos olhos, oferece entrevistas e depoimentos, ensina um modo de organização da realidade, estabiliza sentidos para o leitor que, em princípio, poderia ser asfixiado pelo efeito caótico do excesso dos dizeres midiáticos, dos números divulgados, dos infográficos, das entrevistas etc. Com a organização, o didatismo e os ensinamentos da voz midiática, o leitor estaria habilitado para entender, dizer e inferir sentidos sobre o mundo, assim, o discurso jornalístico procura informar desambigüizando, didatizando, apascentando as contradições e colocando os fatos em suposta situação de controle, clareza e organização, pois a ‘… imprensa como uma instituição que, apesar de ter na heterogeneidade uma característica constitutiva, funciona desambigüizando o mundo, homogeneizando os sentidos e instituindo ‘verdades’ que ela mesma coloca em circulação’ (MARIANI, 1998, p.224). E o leitor tende a acreditar fielmente nestas ‘verdades’ postas em circulação pela mídia, visto que, no imaginário social, há previamente a concepção de que o relato que está na mídia é verdadeiro, importante e, mais uma vez, destituído de disputas e jogos de poder e interesse. Assim, os dizeres que são propagados pela mídia ganham o status de verdade, pois constituem o ‘Texto fundamental’ na sociedade contemporânea, como assegura Payer (2005: p.15): As ‘práticas discursivas se sustentam em um ou mais textos específicos que lhes são também fundamentais, enquanto textos que guardam e fazem enunciar os seus enunciados-máxima’. Assim como o Livro Sagrado é o texto fundamental da prática discursiva religiosa, tal como predominou na Idade Média, a mídia é o ‘Texto fundamental de um novo grande Sujeito, o Mercado, agora em sua nova forma globalizada.’ (PAYER, op.cit., p.16), configurando-se como a voz onipresente do mercado, e os leitores como seus consumidores.

Observamos que há um processo de formação imaginária que sustenta esse funcionamento do discurso jornalístico (ROMÃO, 2006), já que, as notícias são produzidas a partir da imagem que o veículo jornalístico possui de seu leitor, isto é, um consumidor a quem se quer agradar, vender informações ou prestar serviços: ‘… se a instituição jornalística não funciona sem leitores, e se ela busca atrai-los como consumidores, há que se considerar que todo jornal noticia para segmentos determinados da sociedade, produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal segmento’. (MARIANI, 1998, p.57). No ‘como se diz’ já está embutido o ‘quem vai ler’, através desse mecanismo de formações imaginárias, presentes no discurso jornalístico, no qual estão em jogo as imagens que o sujeito tem de si mesmo e do outro (Pêcheux, 1969).

Há, na construção destes jogos de imagens no discurso jornalístico, uma relação entre a mídia – que ocupa um lugar de poder – e o consumidor, que ocupa um lugar imaginado como ‘o do espectador crédulo que necessita de informações, caracterizando, assim, um ‘saber-e-poder-a-mais’ da mídia, e um ‘saber-e-poder-a-menos’ do leitor.’ (ROMÃO, 2006).

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Aluna do Curso de Ciências da Informação e da Documentação da FFCLRP/ USP, bolsista de Iniciação Científica da Fapesp; professora-doutora da FFCLRP/USP