Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Em defesa do modelo conquistado

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo tem 60 anos de existência. Há cerca de 30 anos ela vem sendo administrada quase integralmente pelos professores, desde que a comunidade passou a eleger diretamente os seus reitores e que estes passaram a ser homologados pela entidade mantenedora, a Fundação São Paulo, e pelo grão-chanceler da instituição, o arcebispo metropolitano de São Paulo. É claro que se trata de uma autonomia concedida e muito mais efetivada na prática do que no formalismo da lei e dos contratos.

Nesse período, apesar de se fiar na informalidade de boa parte dos entendimentos ocorridos entre entidade mantenedora e a mantida, a universidade conseguiu desenvolver e consolidar um modelo próprio, diferente das universidades estatais e das demais universidades privadas, o qual lhe permitiu conquistar um conceito público positivo e um lugar efetivo – pela produtividade e inserção social – entre as melhores instituições escolares do Brasil.

Esse modelo está assentado num contrato de trabalho por regime de tempo, que possibilita ao professor maior dedicação à universidade, e um plano de carreira com acesso controlado pelos próprios professores. Além disso, professores e funcionários puderam agregar vários benefícios acordados ao longo dos anos, entre os quais o adicional por tempo de serviço, o chamado qüinqüênio, aplicado na forma de cascata.

O modelo puquiano também está assentado no exercício concreto das liberdades de opinião, de expressão, de manifestação, de reunião e de cátedra. Ao longo dos anos o campus da PUC-SP serviu de espaço livre para todos os movimentos culturais, sociais e políticos da sociedade brasileira, praticamente sem restrições. Mesmo no período mais duro da ditadura militar, a PUC-SP abrigou encontros da UNE e da SBPC.

Da mesma forma, a liberdade de cátedra trouxe para a PUC-SP grandes professores e intelectuais como Florestan Fernandes, Maurício Tragtenberg, Perseu Abramo e Octavio Ianni, em momentos que até as universidades estatais lhes negaram abrigo. Na PUC-SP, de maneira geral, os professores conquistaram o direito de manifestar livremente suas opiniões, dentro e fora da sala de aula, e escolher a bibliografia que bem entender. O mesmo não acontece nas universidades privadas mercantis ou mesmo na maioria das universidades controladas por grupos religiosos.

O outro pilar do modelo sedimentado na PUC-SP é a existência de várias instâncias acadêmicas, executivas e deliberativas, que atuam na gestão da universidade – todas elas com a participação de professores, funcionários e estudantes eleitos pelo voto. Essas instâncias assumiram funções e tarefas – formais (estatutárias) ou não – que lhes permitem interferir diretamente na composição do quadro docente, no plano acadêmico e de carreira de cada professor, no sucesso e na qualidade dos cursos, no estabelecimento de normas e de medidas relativas à vida acadêmica, à produção do conhecimento e à vida universitária em geral.

Um exemplo disso é a própria contratação de professores: há muitos anos quem seleciona e indica o ingresso de novos professores são os departamentos. Esta unidade básica da universidade aperfeiçoou, com o tempo, os critérios de seleção e o estabelecimento de concursos com regras mais gerais, mas é a banca de cada departamento que define quem entra e quem não entra na PUC-SP; e é também o departamento que deve tomar a iniciativa de encaminhar para as demais instâncias a proposta de quem deve permanecer ou sair da universidade, com base na área de conhecimento que o departamento precisa (para fornecer os seus serviços para os cursos), na dedicação e no desempenho de cada professor.

Onde erramos

De maneira geral e sintética, esse é o modelo construído por professores, funcionários e estudantes em muitos anos de embates internos na universidade. Portanto, se considerarmos que a PUC-SP foi administrada pelos professores e conquistou grande autonomia durante os últimos 30 anos, diante de um quadro de crise como o atual precisamos evidentemente nos perguntar onde foi que erramos. Por que, onde, quando e como o nosso modelo não funcionou adequadamente e gerou desequilíbrio orçamentário e o ingresso da PUC-SP na ciranda financeira dos bancos? Ao encontrarmos as respostas para essas questões teremos também, pela lógica, as propostas mais adequadas para o enfrentamento da crise.

Nesse sentido, há muita polêmica sobre a origem da crise: uns atribuem ao corte de verbas públicas que teria ocorrido ainda na ditadura militar; outros relatam a existência de desvios e desmandos administrativos durante os anos 1980 causados por pessoas de má-fé; e há ainda, certamente, os que consideram os problemas enfrentados pela PUC-SP como sendo originários na própria estrutura do modelo puquiano, que seria anacrônico e inviável num mundo dominado pela concorrência predatória e pelas leis do neoliberalismo.

Prefiro acreditar que, mesmo que os três motivos sejam verdadeiros ou tenham algum fundamento, a crise da PUC-SP tem a ver principalmente com a gestão do modelo, na medida em que ele abrigou distorções que resultaram, em primeiro lugar, no desequilíbrio orçamentário, e, na seqüência, no questionamento dos pilares de sustentação do modelo. Ou seja, não é o modelo que está errado ou fora de época, mas foi a gestão – controlada pelos professores – que cometeu erros, os quais perfeitamente possíveis de correção.

Quais foram esses erros? Um erro evidente, que provocou elevação da folha de pagamento dos professores – acima do que deveria ter estabelecido a gestão correta do modelo – foi a liberalidade e descontrole com a ascensão ilimitada de professores às categorias mais elevadas do quadro de carreira acadêmica. Se a gestão tivesse estipulado cotas por categorias, limitando a percentuais ou números absolutos o ingresso nas categorias mais altas, com certeza o impacto na folha e nas planilhas dos cursos teria sido outro, bem mais baixo do que aconteceu.

Da mesma forma, a contagem ilimitada de qüinqüênios, mesmo para quem já havia se aposentado, foi outra distorção e liberalidade na gestão da universidade que contribuiu para a elevação dos salários e da folha de pagamentos, e que só agora, recentemente, foi corrigida pela reitoria. Mais um exemplo de erro de gestão – e não de modelo. Se os qüinqüênios tivessem sido interrompidos nos 25 e nos 30 anos, não teríamos dezenas de casos de professores recebendo 7, 8, 9 e até 10 qüinqüênios.

Responsabilidade

Além dessas questões de gestão do plano de carreira, contribuímos com a crise financeira da PUC-SP com a desatenção ocorrida com muitos cursos. Todos nós sabemos que as demandas sociais por determinados cursos flutuam ao sabor da valorização profissional, do mercado de trabalho, das novas tecnologias e de novas áreas do conhecimento, do modelo de desenvolvimento do país e até mesmo de modismos passageiros. Mesmo sabendo dessa flutuação, que possibilitou muitas universidades privadas se posicionarem e alcançarem crescimento rápido, a PUC-SP permitiu que muitos cursos ficassem esvaziados, com pouca procura e, assim, sem poder cumprir a sua função social maior – que é formar pessoas para a sociedade.

É claro que vários desses cursos com pouca demanda acabaram pesando no orçamento da universidade, e a questão que agora se coloca é a seguinte: por que os coordenadores desses cursos, chefes de departamentos, diretores de faculdades e os órgãos colegiados da PUC-SP não adotaram medidas rápidas e eficazes para mudar o destino desses cursos? Se o curso não é mais atraente, o que fazer para torná-lo atraente? Se a anuidade é alta demais para o seu público, por que não torná-la acessível?

Mais uma vez, está claro que o problema é de gestão, é da existência de gestores sem a noção exata de seu papel e de sua responsabilidade para recuperar e conseguir o sucesso de um curso ou o seu completo fracasso. É claro que a excelência acadêmica pesa, que a qualificação do professor é vital, mas só isso não garante o bom funcionamento de um curso, que depende – principalmente – de atrair muitos alunos. Sem alunos não existe curso!

Acredito que a gestão correta dos cursos e do plano de carreira são medidas suficientes para restabelecer o equilíbrio orçamentário da PUC-SP, revitalizar as várias faculdades e permitir que a universidade tenha recursos para investir na sua infra-estrutura física, na sua atualização tecnológica e na produção de conhecimentos – através do ensino, da pesquisa e da extensão. Isso pode e deve ser feito sem alterar ou destruir o modelo construído ao longo de tantos anos e que ainda serve de referência para inúmeras instituições nacionais.

No momento em que a Fundação São Paulo e a reitoria impuseram a demissão de professores e funcionários de cima para baixo, sem respeitar as instâncias de funcionamento da universidade, praticaram uma violência contra a instituição, quebraram a autonomia e as regras do jogo. Mais do que isso, no momento em que a reitoria passa por cima da Deliberação 65/78, que rege os contratos dos professores, e propõe a contratação por hora-aula ou valores inferiores aos dos contratos vigentes previstos no quadro de carreira, está ameaçando de morte um dos pilares do modelo puquiano, exatamente aquele que assegurou o padrão de qualidade do ensino na PUC-SP.

A nossa mobilização, neste momento, deve estar centrada na defesa do modelo que construímos, com o diagnóstico correto de todos os seus erros, equívocos e distorções, e com propostas precisas para a sua correção – sem qualquer intervenção externa. A defesa do modelo significa defender os contratos e o plano de carreira dos professores; significa preservar todas as liberdades e os direitos de opinião e de manifestação, refutando as censuras e quaisquer formas de ameaças e perseguições políticas; significa estimular o debate amplo e democrático e o funcionamento autônomo de todas as instâncias da PUC-SP.

Mais do que isso, a restauração das virtudes e qualidades do modelo puquiano passa, obrigatoriamente, pela realização de eleições gerais já, que é o único instrumento capaz de legitimar a representatividade e indicar claramente qual o projeto de universidade que nós queremos.

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Jornalista e professor do Departamento de Jornalismo da PUC-SP