Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Especulação e espetáculo

O caderno ‘Aliás’, suplemento dominical do Estado de S.Paulo, inaugurou uma nova série esta semana: ‘Diálogos Aliás’. Para a estréia o suplemento reuniu o economista Eduardo Giannetti da Fonseca e o psicanalista Thales Ab´Saber numa conversa sobre a crise financeira mundial e suas relações com a cultura e o modo de vida. Mediado pelas jornalistas Flávia Tavares e Mônica Manir, o debate rendeu duas boas páginas de jornal. Ali estão dois intelectuais de matrizes distintas – Giannetti é um liberal e Ab´Saber vem de uma formação de esquerda – que não se acomodam em cartilhas ideológicas. Dialogam de fato, vão além dos chavões doutrinários e, com isso, conduzem o leitor por uma trilha que ultrapassa o óbvio e lançam pontes de interlocução entre correntes de pensamento que pouco se falam. Ponto para eles e para o ‘Aliás’. Em tempos de esgotamento das receitas prontas, o jornalismo não encontra mais notícias na reverberação de slogans, mas nas pontes de diálogo que podem fomentar idéias novas.


A recente turbulência financeira expôs o limite crônico dos valores sobre os quais a nossa civilização se alicerçou: ambição, agressividade, consumo – as ‘virtudes’ propulsoras do nosso tempo. A especulação movida pela fome de riqueza – fome que, para muitos, deveria ser o motor da prosperidade – atinge o paroxismo e ameaça gerar mais abundância de fome. O capital fictício, virtual, se esboroa e seus impactos sobre a chamada economia real já se avizinham. Não é mais o ‘sólido que se desmancha no ar’, como escreveram Marx e Engels há 160 anos, mas o virtual que se esborracha no chão, ferindo os corpos e os destinos dos viventes. E então? Será possível reformular os cânones do nosso modo de vida?


A estréia da série ‘Diálogos Aliás’ desmascara crenças estabelecidas porque faz as perguntas certas. Para onde nos levará esse apego atroz a padrões de alto consumo para a afirmação do sujeito? ‘Uma economia hiperalavancada no endividamento necessita de uma subjetividade hiperalavancada no consumo’, afirma Thales Ab´Saber, apontando os mecanismos irracionais que parecem ter determinado a crise. De seu lado, Eduardo Giannetti da Fonseca expressa com firmeza a necessidade de que a civilização reveja seus padrões, mas se mostra lacônico: ‘Eu até gostaria de acreditar em mudanças de valores com base em amadurecimento, mas a história não nos autoriza a imaginar que isso seja simples.’ Estamos agora mergulhados em mais incerteza. E no medo.


Programas sensacionalistas


Por que o medo? À medida que especulam sobre a especulação, os dois pensadores entrevêem forças inconscientes agindo sobre os movimentos do mercado. São elas que amedrontam. O cenário faz lembrar a frase de Freud: ‘O ego não é senhor em sua própria morada.’ As pessoas não sabem bem o que fazem, mas fazem, mesmo desconhecendo as forças a que obedecem – e depois se assustam. Agora, quem se assusta não é mais o indivíduo, mas a sociedade como um todo. Coletivamente, as pessoas se dão conta de que, tentando satisfazer o que acreditam ser seus desejos, criam situações que absolutamente não queriam provocar. Contra os demais e contra si mesmas. Há um divórcio dramático entre duas finalidades que se deveriam conciliar sempre: satisfazer as ambições pessoais e promover o bem comum. A atividade econômica, em lugar de conduzir ao desenvolvimento, parece pronta a nos levar à ruína.


Por isso, o medo que a crise põe em cena é mais profundo que o pânico de perder dinheiro: é um medo relativamente novo, um medo que a humanidade sente de si mesma quando se descobre capaz de produzir, inconscientemente, estragos de dimensões inéditas, como o comprometimento da saúde do planeta pela exploração desmedida dos recursos naturais. A crise financeira global nos põe em contato com o mesmo medo ao mostrar a potência destruidora que nós, humanos, temos e não gostaríamos de ter. Será que, no fim de tudo, só o que teremos produzido é destruição? Nesse sentido, o clamor por algum nível de regulação dos mercados financeiros pode ser lido também como demanda por um freio civilizado contra aquilo que no humano é inconsciente, selvagem e, sem trocadilho, desumano.


Aqui, e somente aqui, chego ao paralelo que inspirou o título deste artigo. A indústria do entretenimento – ou, em termos mais gerais, a chamada sociedade do espetáculo – ilustra de modo cristalino o mesmo mecanismo que, na crise das bolsas, nos confronta com a monstruosidade das forças inconscientes. Muitos ainda se espantam ao constatar que os programas sensacionalistas de TV que atraem multidões de espectadores também geram os protestos mais veementes. A mesma sociedade que os consagra com sua audiência os repudia com sua consciência. Como explicar a contradição?


Forças do inconsciente


A resposta é tão simples quanto desconcertante. Esse tipo de entretenimento aciona diretamente pulsões e desejos que não gostamos de admitir em público. Fala de perto com as nossas predileções inconfessáveis – e são elas que comandam a audiência. O espetáculo soube converter essas predileções inconfessáveis em suas regras de conduta pública. Ele reflete, portanto, menos aquilo que gostaríamos de declarar sobre nós mesmos e muito mais o que somos e preferiríamos não ser – ou gostaríamos de esconder. A violência que muitas vezes ele celebra é a violência que nos marca e que desejamos ver consumada. Mesmo – ou principalmente – quando não ousamos declará-la.


O capital, como o espetáculo, encerra em si as forças do inconsciente e a elas presta suas contas. Um e outro se abastecem dessas forças e, entregues ao desgoverno, irão levá-las ao extremo. O quadro é desalentador. Talvez ainda nos restem saídas nas pontes do pensamento. Apenas talvez.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP