Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estudantes chacoalham a concertación chilena

O cabelo cuidadosamente desarrumado indica que muitos deles levaram vários minutos brigando com o gel na frente do espelho antes de vestir os sapatos negros e sair de casa. A imagem fiel de um roqueiro indie é concluída com um cigarro aceso que fumega junto com a neblina das sete e meia da manhã – sim, 33% dos chilenos entre 12 e 18 anos fumam. Esse, até pouco tempo, parecia ser o máximo de atitude a se esperar dos estudantes do ensino público secundário do Chile, em busca de ser algo mais que um mar de terninhos e gravatas, ou de saias plissadas, que ao terminar o período de aula se misturam nas praças do país para conversar e namorar.


A semente que estava em gestação sob essa fachada ingenuamente teen brotou em maio nas principais ruas de Santiago e colocou a imagem de bom-moço do Chile e da equipe de governo de sua nova mãe, a presidente Michelle Bachelet, em xeque. Ninguém imaginava que sairia dos estudantes o grito que se ouviria em nível internacional – de que um país são não vive apenas de estabilidade macroeconômica. Quem diria, eles sabiam muito bem onde queriam ver investidos os tão aclamados excedentes gerados pelo cobre, commodity propulsora da economia chilena que vem alcançando polpudos preços internacionais.


Grau de maturidade


O movimento – considerado o maior visto em 30 anos –, que em seu momento auge resultou na tomada de mais de cem estabelecimentos de ensino, onde 600 mil alunos abdicaram das aulas para defender sua causa, tem premissa bem definida: educação de qualidade e justa. Para isso, apresentaram ao governo dois níveis de propostas, de curto e longo prazo. Entre elas, gratuidade do transporte público e da prova vestibular do país (PSU, na sigla em espanhol), revisão da jornada integral – pois não adianta ter horário estendido se não há condições básicas, como infra-estrutura e professores capacitados – e revisão da lei orgânica constitucional do ensino (Loce), ditada por Pinochet pouco antes de deixar o poder e cujas características liberais afastaram do Estado a responsabilidade quanto ao ensino – impulsionando a municipalização da educação pública que deixou as escolas à sorte do que a arrecadação de cada comuna poderia fazer por elas, e o completo desinteresse pelos resultados dos subsídios dados ao ensino particular por falta de fiscalização.


Panorama desestimulante para muitos chilenos que sequer acreditam na possibilidade de aceder à universidade, já que no país não existe ensino superior gratuito.


Enquanto o movimento foi ganhando adesões e espaços na mídia – e repressão pesada da polícia militar local, os carabineros –, os ministros e subsecretários se trombavam e reagiam em desconformidade. Para não gerar crise na coalisão de centro-esquerda da qual a presidente faz parte e que governa o país desde sua redemocratização, nenhuma cabeça foi cortada, e várias pastas foram envolvidas no assunto para dispersar a atenção e amenizar o papelão.


Com a cozinha ordenada, a reação do Executivo chegou na quinta-feira (1º/6), com a própria Bachelet na TV, em rede nacional, fazendo sua contraproposta que garantia o apoio aos mais pobres e justificava com números a inviabilidade da universalização de algumas das demandas estudantis, comparando quantas casas próprias, hospitais e outros bens sociais elas custariam. Uma jogada que demonstrava respeito às demandas argumentada de forma a atrair a opinião pública, até então totalmente favorável ao movimento, para seu lado, já que os estudantes planejavam uma nova manifestação, em que buscavam atrair a mais setores da sociedade que não apenas da educação, marcada para segunda-feira (5/6).


Apesar do apelo da presidente, os estudantes decidiram manter seu ato de domingo (4), cujo resultado para a reputação do movimento estudantil dependerá de seu grau de maturidade para responder às propostas concretas do governo.


Injeção de ânimo


Mais além da importante reforma educacional, entretanto, esse episódio também poderá representar um fortalecimento da democracia chilena. Em um país onde há mais de quinze anos governa o mesmo grupo de partidos, que se mantém no poder sobretudo pela boa administração dos números e o respeito e a luta a favor dos direitos humanos, numa prestação de contas do estrago deixado pelo período ditatorial, a vontade de influir nas tomadas de decisão a partir da iniciativa básica de participação no processo eleitoral, por exemplo, foi minguando ano a ano na década de 1990.


No Chile, o voto só passa a ser obrigatório a partir do momento em que o cidadão se registra para votar pela primeira vez, o que pode ocorrer a partir dos 18 anos. Estatísticas do governo indicam que a participação de chilenos de 18 a 29 anos nas eleições caiu de 36% em 1988 a 9%, em 2004. Frente a uma possível crise de renovação do eleitorado, o primeiro ponto da campanha presidencial de 2005 foi tentar ressucitar essa participação, estimulando os jovens a fazer seu registro eleitoral.


Quem sabe esses secundaristas que hoje estão nas ruas, quando cheguem aos 18 anos, não tenham mais motivos concretos e se sintam mais estimulados a responder nas urnas sobre as atitudes dos atuais governantes?


Bachelet, em seus primeiros discursos como presidente eleita, reforçou a idéia da participação cidadã ao defender que iria governar de baixo para cima. Se o movimento estudantil vai estimular um sem-número de outras manifestações que arrisquem, ao invés disso, um ‘desgoverno’, ainda é cedo para avaliar. Mas, por enquanto, a atitude dos estudantes representa uma bem-vinda injeção de ânimo à opaca democracia chilena – característica que, infelizmente, não se traduz em exceção no restante do continente.

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Jornalista