Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Estupro e objetividade jornalística

Jamais saberei se o cineasta Polanski estuprou ou não Samantha. Portanto, não tenho nenhuma opinião sobre o caso, se ele é ou não culpado. Sei o que todos sabem e que, enfim, podem saber: principalmente que agora, 32 anos após o caso, Polanski está no drama de ser extraditado ou não para os Estados Unidos, para responder à acusação de crime – sexo com menor, ao menos. Assim, meu texto é só indiretamente sobre essa notícia. O que escrevo é diretamente relacionado ao modo como o jornalismo pode falar de uma notícia desse tipo.

Em uma matéria assinada por Sérgio Augusto para o ‘Aliás’, deO Estado de S. Paulo (aqui), o caso é contado sob a regra da objetividade jornalística: informar antes do que deformar ou, mesmo, formar. Sérgio Augusto consegue isso? A técnica é simples: fala-se de quem está a favor de Polanski e mostra-se as suas razões; fala-se de quem está contra Polanski e mostra-se as suas razões. O jornalismo acredita que há dois lados em uma notícia. Alguns jornalistas acreditam que pode haver mais que dois lados, mas raramente eles vão além de dois lados. Pois a noção de objetividade do jornalismo está atrelada a essa idéia dos dois lados. Tendo dois lados e tendo um bom número de dados, datas e nomes, o texto jornalístico tem o aval do editor. Uma boa parte da sociedade escolarizada não ultrapassa esse patamar de compreensão do que é ‘contar uma notícia’.

Uma terminologia notável

Nenhum filósofo acredita que uma história tenha só dois lados e muito menos pode acreditar que a noção de objetividade se faça a partir dos critérios acima. Há um universo entre uma linha preenchida e outra linha preenchida em um texto. Milhões de pensamentos estão ali, por parte do leitor, induzidos por duas linhas do escritor. E nisso, verdadeiramente, está a notícia. Ela diz mais do jornal, do jornalismo, do autor e do contexto pelo qual passa o jornalista do que do caso contado propriamente dito. Na verdade, quando se lê jornal pela ótica da filosofia – um exercício deveras gostoso e útil – o que se fica sabendo é o que efetivamente se pode saber: o autor e o jornal, e menos o caso. Pego um trecho para mostrar o que quero dizer:

‘A exemplo de Polanski, Chaplin tinha o seu lado Humbert-Humbert assaz saliente (e bota saliente nisso).Não podia ver uma Lolita taludinha que também a elegia luz de sua vida e labareda de sua carne. Aos 29 anos envolveu-se com uma garota de 14 anos, Mildred Harris, que dele ficou grávida e deu à luz um monstro natimorto. Chaplin engravidaria outra menor, Lillita McMurray, de 16 anos, descuido que o levou aos tribunais e à pretoria. Lillita, conhecida na tela como Lita Grey, deu a Chaplin seus dois primeiros filhos. Ao cabo de três anos, divorciaram-se. Lita era chave de cadeia. Instruída pela mãe, fez o que pôde para depenar Chaplin. Conseguiu enchê-lo de cabelos brancos, interromper por um ano a produção do filmeO Circo e embolsar mais de meio milhão de dólares, uma fortuna ainda mais vultosa em 1927′ (grifo meu).

Polanski tinha 43 anos quando ‘sodomizou’ (fez sexo anal, creio eu, se entendo bem os jargões americanos, repetidos por Sérgio Augusto) Samantha, que tinha 13 e estava embriagada na casa de Jack Nicholson. O que Sérgio coloca acima, no destaque, sobre Chaplin, não tem nada a ver com a história. Mas ele coloca. Antes, ele havia dito que a maioria das pessoas quer ver Polanski extraditado e que muita gente se move assim por achar que Hollywood quer ser uma ilha imune à lei. E isso porque várias personalidades de Hollywood estão defendendo Polanski. Ele diz isso e, no decorrer do artigo, mostra um caso que, apesar de terminar moralmente favorável a Chaplin, não precisaria estar no texto e, se está, para ilustrar a notícia e mostrar que Hollywood realmente é idiossincrática diante da lei, não deixa de usar uma terminologia notável.

A máquina de moer carne do jornalismo

Que terminologia? Esta: ‘não podia ver uma Lolita taludinha’. Logo abaixo, em passagem que não vou citar inteira para não chatear o leitor, Sérgio Augusto usa frases como ‘Samantha Geimer, a ninfeta de Polanski’. Ora, qual a razão de Sérgio Augusto não usar expressões como ‘menina’ ou ‘garota’ ou ‘menor’? Estilo? Quer escrever algo como jornalismo literário picante? Picante, no jornalO Estado de S. Paulo, um jornal cujos hábitos políticos vão do PSDB ao DEM? Ou trata-se de uma tentativa de, usando tal terminologia, nas entrelinhas quebrar a objetividade posta formalmente? Mostram-se os dois lados e cumpre-se assim o ideal formal de objetividade do jornalismo, ao mesmo tempo em que se dá uma trança pés no leitor, induzindo-o a julgar – principalmente em se tratando do leitor típico doEstadão – Polanski no sentido do que a maioria já vem julgando. Com isso, cumpre-se a formalidade e, ao mesmo tempo, o texto cai nas graças do leitor.

Não posso descartar essa hipótese. Os jornais estão em crise. E os suplementos que viram blogs, que aparentemente poderiam salvar ao menos os jornalistas (se não os jornais), levam a uma competição ferrenha. Muitos jornalistas blogueiros, preocupados em ter ‘ibope’, estão cada vez mais escrevendo o que a maioria do senso comum já apóia. Assim, talvez Sérgio Augusto seja nada além de mais um jornalista que caiu nessa máquina de moer carne do jornalismo atual.

Todos os vícios do senso comum

Mas pode ser, também, que Sérgio Augusto, ele próprio (como seus leitores que tenderiam a condenar Polanski), tenha um extremo prazer em escrever coisas como ‘Lolita taludinha’ e ‘ninfeta’. Não estaria ele tendo uma ereção, em sua casa, quando em frente ao computador escreveu isso? Pode ser que não uma ereção motivada pela imagem da menina, mas por imaginar que homens conservadores leriam aquilo e, ao mesmo tempo que condenariam Polanski (da boca para fora), também possam ficar com ereção. Assim, Sérgio Augusto, num misto de desejo homossexual com desejo heterossexual, não estaria somente tentando induzir o leitor a uma posição, mas efetivamente preso à determinação de seus gostos e instintos. Ele próprio seria, dessa forma, um daqueles que Polanski acusou quando disse que ‘todos os que o condenavam queriam fazer sexo com garotinhas’. Aliás, sabemos bem que, acima dos 40 anos, o desejo do homem de fazer sexo com meninas cresce muito, até pela razão de que, para as meninas, esses homens se tornam muito atrativos.

Samantha tinha 13 anos. Não era virgem e estava embriagada. Não reclamou e, hoje em dia, diz para esquecerem o caso. Mas Sérgio Augusto não quer nem pensar em falar de Samantha hoje. O interessante é tornar Polanski mais velho, de cabelos brancos como está hoje, e tratar Samantha como se ela fosse, ainda agora, a ‘ninfeta’ ou a ‘Lolita taludinha’. Ele fala de Polanski agora, e de Samantha no passado. O interessante é ressaltar o lado bizarro. É importante por na jogada o que pode ser feito para que a notícia provoque a masturbação dos homens e a gritaria (às vezes invejosa) das mulheres, ambos sendo os que estão no grupo dos que condenam Polanski e querem a extradição.

E luta pela audiência cria assim o jornalismo de hoje. Pessoas que possam espelhar o senso comum porque elas próprias estão imersas neste senso comum e, enfim, se acham capazes de manipulá-lo, podem se dar bem no jornalismo atual. Um médico doente é o melhor médico, pois sendo paciente, conhece como ninguém o mal. Um jornalista que tenha todos os vícios do senso comum é a pedida do momento. Antes, o jornalismo brigava com o leitor, hoje o adula e, enfim, em alguns casos, chega a atuar como a revistaSexy ouPlayboy – ajuda na masturbação diária.

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Filósofo, São Paulo, SP