Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Formando talentos ou jornalistas em série?

Minha avó sempre falou que, embora não tivesse estudo, formou-se na ‘Universidade da Vida’… Já até pensei em colocar esta instituição em meu currículo (afinal, já são 30 anos), mas acho que não cairia muito bem. Bom, e aonde eu quero chegar? A Folha de S. Paulo publicou artigo do jornalista Getulio Bittencourt no dia 15 de julho, intitulado ‘Aprender com Leleco’, no qual discorria sobre a vida do jornalista Haroldo Cerqueira Lima, conhecido como Leleco, que morreu em 2003.

Duas frases chamaram-me a atenção no texto. Leleco ‘foi um profissional moldado pela experiência, não pela teoria, porque era autodidata em jornalismo’. Em outro momento, o jornalista relembra uma frase dita por Leleco numa entrevista: ‘Está na hora de o jornalista brasileiro fazer a reciclagem do seu comportamento, senão será como nos 40 anos de salazarismo (a ditadura portuguesa): os jornalistas desaprenderam a informar e vão ter que aprender de novo’.

A partir destas afirmações, lembrei-me da controvérsia sobre a obrigatoriedade do diploma no exercício do jornalismo. O Sindicato dos Jornalistas, por exemplo, é a favor. Alguns jornalistas mais experientes, por outro lado, consideram desnecessário, destacando que eles mesmos não fizeram faculdade de Jornalismo. Em princípio, sou contra a obrigatoriedade. Acredito que, tal como um escritor não precisa cursar Letras, um jornalista não precisa passar quatro anos de sua vida numa faculdade de Comunicação Social.

Desempregado ou multitarefeiro

Jornalistas de destaque no Brasil são exemplo de bom jornalismo, dedicação e competência, sem o diploma. Mas acredito também que um bom jornalista possa (e deva) ter seus conhecimentos aprofundados não por um diploma, mas pela participação num fórum de discussão sobre ética, sociedade, filosofia. Aliás, esta definição foi dada a mim pelo jornalista Heródoto Barbeiro em entrevista. E vale a pena lembrar que ele mesmo, Heródoto, já mestre em História, professor universitário, voltou à faculdade para formar-se jornalista.

Na minha opinião um bom jornalista poderia ter um curso de Sociologia, Filosofia ou mesmo Comunicação Social, desde que estes discutissem a inter-relação entre a notícia, o filtro do jornalista, o filtro do meio de divulgação e o receptor. O jovem não deveria cursar Jornalismo pensando somente no diploma, como geralmente ocorre. Se o ambiente universitário fosse realmente o fórum mencionado anteriormente, creio que as coisas seriam diferentes. E, como afirmou Armando Nogueira na apresentação do livro Ponto eletrônico, de Flávio Prado, ‘mesmo que tenha uma boa formação teórica, a sala de aula jamais dará as lições que serão encontradas nos corredores do telejornalismo’, o que se estende a todos os setores do jornalismo. No mesmo livro, Flávio Prado lembra que ‘o talento de cada um é que fará a diferença’.

Será que os cursos de Jornalismo têm estimulado os estudantes a despertar seu talento ou apenas têm formado jornalistas em série, segundo paradigmas ultrapassados, sem estimular sua capacidade crítica? E, com o ‘canudo’ na mão, como os estudantes têm sido recebidos? Ciro Marcondes Filho, em A saga dos cães perdidos, afirma: ‘Chantageados pelo desemprego, os jornalistas de posição intermediária na empresa e os precários (frilas, repórteres-redatores, focas) perdem rapidamente de vista o fascínio da profissão’. Isso sem contar o fator velocidade, cada vez maior, acompanhando a tecnologia (internet, e-mail, fotografia digital etc), que exige um jornalista ‘multitarefa’, com deadline cada vez mais apertado e imerso numa enxurrada de informações, solicitadas ou não (como os releases preparados pelas assessorias de comunicação), que abarrotam suas caixas de e-mail diariamente. A esse respeito, Ciro Marcondes ‘profetiza’ que o jornalista será aquele ‘que modestamente deverá juntar idéias e dispô-las de forma agradável e acessível a um público leitor (online), que, então, avaliará o que lhe interessa’.

A obsessão da estética

A teoria é necessária e muito. Desconfio que os jornalistas ‘autodidatas’ bebem – e muito – nas fontes teóricas, ou seja, liam (e lêem) muito e de tudo, além de discutirem o conteúdo entre si. O perfil do universitário hoje é de alguém que lê o menos possível, foge de debates sobre quaisquer assuntos e, na maioria, é incapaz de construir uma crítica consistente. Talvez aí estaria a única justificativa para a obrigatoriedade do diploma: saber que nos quatro anos de faculdade o aluno pelo menos leu uns quatro ou cinco livros (se não copiou o resumo ou resenha da internet…).

Aqui ainda é possível mais uma crítica. Ao aprender apenas na prática, não estaria o jornalista amoldando-se a um padrão? É o que Ciro Marcondes afirma que alguns donos de jornais fazem, ou seja, ‘adestramentos intensivos no estilo e no formato de seu jornal ou revista, estreitando ainda mais o campo de conhecimento dos iniciantes’. E afirma: ‘De nada adianta insistir sobre a formação intelectual se esta não é acompanhada de uma prática no saber pensar’. Ele define um bom jornalista como alguém que tenha uma ‘boa cabeça, uma capacidade de discernimento, critérios de julgamento, valores consolidados, em suma, uma base intelectual que suporte as turbulências da profissão’.

Muito se tem falado, mas pouco tem sido feito. O formato do telejornalismo, por exemplo, é padronizado, independentemente da emissora a que se assista. A estética (tanto do programa quanto de quem o apresenta e de seus repórteres) é uma preocupação, quase uma obsessão. O tempo é inimigo, tudo tem que ser rápido, recheado de imagens de impacto, não há tempo para reflexão, para digerir o que está sendo ouvido e visto. Ultimamente o noticiário tem sido espaço para merchandising e até sorteio de eletrodomésticos e eletro-eletrônicos! E não é por falta de crítica. Os teóricos têm diagnosticado e alguns meios até divulgado, mas poucas mudanças têm ocorrido.

Telespectadores do ‘inútil’

O Jornal da Cultura (exibido na TV pública paulista) é uma ilha num mar de mesmice. Talvez uma das razões tenha sido descoberta por Pierre Bourdieu. Em Sobre a televisão, ele afirma:

‘Embora eu tenha todas as razões para temer que elas [suas críticas] sirvam para alimentar apenas a complacência narcísica de um mundo jornalístico muito propenso a lançar sobre si próprio um olhar falsamente crítico, espero que possam contribuir para dar ferramentas ou armas a todos aqueles que, enquanto profissionais da imagem, lutam para que o que poderia ter se tornado um extraordinário instrumento de democracia direta não se converta em instrumento de opressão simbólica’.

Bourdieu considera a pauta da televisão, recheada de sensacionalismo, sangue, sexo, drama e crime, feita para elevar o índice de audiência, mas também repleta do ‘vazio’, matérias ‘que não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante’. Desta forma, ao utilizar seus (caros) minutos com tal informação, a televisão afasta ‘as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão para exercer seus direitos democráticos’. Ou seja, no caso do Brasil, a concessão pública que deveria formar cidadãos forma telespectadores do ‘inútil’. Será que o diploma muda (ou já mudou) o perfil dos profissionais da área jornalística?

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Estudante do 2º ano de Jornalismo, São Paulo (www.refletir.blog-se.com.br)