Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Há espaço para a ética de convicção no jornalismo?

O sociólogo alemão Max Weber (1910) foi o precursor do que hoje conhecemos como Sociologia da Imprensa, uma corrente de estudos científicos com enfoque sociológico sobre temas diversos referentes à imprensa. A proposta de Weber consiste em empreender esforços para uma compreensão mais aprofundada não apenas sobre empresas ou produtos jornalísticos, mas também sobre os próprios jornalistas – aqueles que efetivamente produzem os conteúdos enquanto integrantes de empresas e, portanto, conhecedores de duas realidades determinantes do produto informativo posteriormente veiculado e consumido por milhares de pessoas: o processo diário de produção jornalística e as relações de poder dentro das empresas de comunicação.

A razão de ser do jornalismo consiste em, primordialmente, oferecer um serviço de informação e esclarecimento às sociedades – e a prática jornalística é tão rica e variada justamente por estabelecer um diálogo com os diversos grupos sociais cujas demandas informacionais distintas devem ser supridas pela imprensa. De acordo com Weber (1910), a imprensa provoca e sugere deslocamentos no modo e na maneira como a sociedade capta e interpreta o mundo exterior.

A mudança constante e o fato de dar conta das mudanças massivas da opinião pública, de dar conta de todas as possibilidades universais e inesgotáveis dos pontos de vista e dos interesses, pesa de forma impressionante sobre o caráter específico do homem moderno. […] O que se destrói e o que é novamente criado no âmbito da fé e das esperanças coletivas, da ‘sensação de viver’ (Lebensgefiihl) – como se diz hoje em dia –, que possíveis atitudes são destruídas para empre, que novas atitudes são criadas? (Weber, 1910: 43)

Existe, portanto, uma relação direta estabelecida entre jornalismo e sociedade, e essa relação gera conflitos e disputas entre os diversos agentes construtores da arena simbólica que integram essas duas instâncias. O jornalismo, enquanto construtor da realidade social e do imaginário coletivo, é mediador e difusor de ideias e opiniões, é capaz de influenciar e estabelecer novas relações sociais, e é precisamente por essa função legitimadora que muitas disputas pelo domínio e controle do seu arsenal simbólico são silenciosamente deflagradas no âmbito político.

Ideias e interpretações muito pessoais

Se a importância social do jornalismo é inegável, é fundamental ter muito claro que o jornalismo não se dá sozinho, mas é produzido por profissionais, os ‘agentes especializados’ do campo jornalístico (Bourdieu, 1998). Nelson Traquina (2005) também dá especial importância ao papel dos jornalistas como peça essencial para a compreensão do jornalismo: ‘[…] é indubitavelmente claro que não é possível compreender as notícias sem uma compreensão da cultura dos profissionais […]’. Reconhecendo, portanto, a importância dos agentes especializados do campo jornalístico na produção do conhecimento próprio do jornalismo, deve-se perguntar quais são os aspectos inerentes ao profissional-jornalista e ao indivíduo-jornalista que merecem ser estudados e compreendidos para um melhor entendimento do próprio jornalismo e do seu papel enquanto instituição formadora da opinião pública. Dentre esses aspectos, talvez o mais essencial seja a ética.

Porquê uma interrogação ética? Mesmo sem entrar na discussão sobre os poderes, reais ou supostos, dos media, a simples dimensão da realidade mediática exige uma reflexão sobre o espaço de liberdade de que gozam os seus actores e sobre a extensão da sua responsabilidade. E seja qual for a natureza da função reconhecida ao jornalista, simples peça funcional de um sistema cujos objectivos e mecanismos o ultrapassam ou agente responsável pela informação que fornece, põe-se a questão da legitimidade do seu papel, da sanção da sua actividade pelo público. (Cornu, 1999: 11, grifos meus)

Qual é o espaço de liberdade e a extensão da responsabilidade dos jornalistas de que fala Cornu? Quais ferramentas do campo teórico ou prático delimitam o espaço de livre-atuação dos profissionais e quais determinam seus limites bem como suas responsabilidades? O jornalista não é apenas um profissional, mas um indivíduo dotado de subjetividade e capaz de fazer escolhas e executar tarefas baseado não apenas em regras e normas, mas também em convicções profissionais e pessoais e em situações e contextos diversos que implicam escolhas e ações distintas.

Quando se pensa em ética jornalística também é necessário pensar no espaço de atuação do jornalismo, sua função social, seus efeitos – o jornalismo se dá na sociedade e para a sociedade, se dá no âmbito das relações sociais, no vai-e-vem dos acontecimentos que envolvem diretamente determinados agentes e indiretamente outros milhares. Deste modo, é difícil e improvável pensar a ética jornalística como algo pronto, determinado e estático, pois ela existe para ser praticada por indivíduos que têm ideias e interpretações muito pessoais sobre o mundo e seus acontecimentos.

Convicção e responsabilidade

Em 1919, Weber realizou uma conferência na cidade de Munique que deu origem ao livro intitulado A política como profissão. Neste trabalho, Weber propõe reflexões sobre os indivíduos inseridos no âmbito do político e que se utilizam de discursos diversos para estabelecer relações de poder. Entre os ‘tipos políticos’ de Weber estão os demagogos. Segundo o autor, o maior representante de tal gênero é o jornalista (profissionais da imprensa no geral, não apenas repórteres, mas editores, chefes de redação, donos de empresas de comunicação etc.), que se utiliza de determinados discursos com o único intuito de alcançar determinado fim – que nem sempre é o de bem informar. A fim de organizar seu pensamento, Weber estabeleceu dois conceitos, duas categorias éticas que, mais tarde, foram aplicadas ao jornalismo e ao jornalista: os conceitos de ética de convicção e ética de responsabilidade. Para Weber, todas as ações são orientadas segundo uma dessas duas concepções éticas.

O indivíduo que age de acordo com a ética da convicção (resultante da crença), age e justifica suas ações baseado muito mais em crenças e princípios pessoais de toda ordem (política, religiosa etc.), sem se preocupar com as consequências de tais ações e tampouco considerar que outros indivíduos pode não apenas discordar delas, como serem prejudicados. Já o indivíduo que age e justifica suas ações com base na ética de responsabilidade (resultante da razão), ao contrário, leva em grande conta as consequências e os efeitos de tais ações e pensamentos, pondera sobre o contexto em que se desdobra determinada realidade e como tal prática pode transformar ou influenciar esta realidade, positiva ou negativamente.

Aí é que está o ponto decisivo. Temos de entender com clareza que toda a acção eticamente orientada se pode encontrar sujeita a duas máximas completamente diferentes uma da outra e irremediavelmente opostas: pode orientar-se pela ética da convicção ou pela ética da responsabilidade. O que não quer dizer que ética da convicção seja sinônimo de irresponsabilidade ou que ética da responsabilidade se identifique com falta de convicções. (Weber, 2000: 89, 90)

Aplicando o pensamento de Weber ao jornalismo, deve-se pensar como os jornalistas pensam e agem do ponto de vista ético para alcançar determinados fins (informar, opinar, interpretar etc.) e sob qual ética são orientados. Adaptados os conceitos ao campo da informação tem-se, então, a separação entre o jornalismo de convicção, cuja maior preocupação é a missão de dizer e pode ser negligente com a informação em prol de interesses pessoais ou de determinada classe, e o jornalismo de responsabilidade, que relaciona as informações com as consequências e efeitos provocados pela sua difusão e se preocupa com a repercussão na vida dos receptores (Cornu, 1999).

Interpretações e adaptações

No entanto, é necessário aprofundar a reflexão sobre o tema, pois a ética jornalística, sendo um conjunto de regras e normas estabelecido em códigos e manuais, permite ou torna possível essa distinção entre jornalismo de convicção e jornalismo de responsabilidade? Seria o primeiro anti-ético e o segundo ético em qualquer circunstância? Para responder essas questões é fundamental compreender se a ética jornalística é um aspecto já estabelecido do jornalismo ou se é um aspecto que pode sofrer interferência de outras concepções éticas ou de acordo com as situações postas diante de seus agentes, os jornalistas. Bucci (2000) fornece pistas a respeito disso:

A ética do jornalismo não trata originalmente de premissas institucionais (embora as pressuponha), mas lida com o campo abrangido pelas decisões individuais do jornalista. E isso não se pode perder de vista quando se quer compreender como os preceitos foram estabelecidos. Mais que um rol de normas práticas, a ética jornalística é um sistema com lógica própria. Não é um receituário; é antes um modo de pensar que, aplicado ao jornalismo, dá forma aos impasses que requerem decisões individuais e sugerem equações para resolvê-los. O que se deve ter em conta, de início, é que a prática do jornalismo não é auto-suficiente em sua dimensão ética, mas vai buscar em correntes filosóficas que trataram da ética em geral os parâmetros para enfrentar seus dilemas cotidianos. (Bucci, 2000: 14, 15, grifos meus)

Quando pensamos em ética jornalística o mais comum é recorrermos aos códigos, nacionais ou internacionais, que prevêem uma série de orientações acerca da boa prática do jornalismo – o receituário ao qual Bucci se refere. Diversos autores dedicaram-se a pesquisar e compreender a função desses códigos, seu poder efetivo sobre a ação dos profissionais, de modo a preservar a integridade da informação jornalística e protegê-la de interferências ou omissões decorrentes de disputas pelo poder – poder este não apenas sobre a informação, mas principalmente sobre os efeitos que esta pode provocar em seus receptores. No entanto, é necessário ter clareza quanto à fragilidade destes códigos de deontologia.

Cornu (1999), em obra intitulada Jornalismo e Verdade – para uma ética da informação, atenta para alguns aspectos que explicam tal fragilidade: a ausência de um consenso deontológico sobre o jornalismo, ou seja, a grande variedade de códigos e normas para uma mesma prática dentro do campo de ação do jornalismo, e baixa representatividade ou ausência de órgãos de controle que de fato fiscalizem o cumprimento do que ditam os códigos deontológicos e éticos da profissão. Ainda de acordo com Cornu, a deontologia da informação é vulnerável, como todas as declarações de caráter moral, às declinações conforme situações e necessidades que geralmente distorcem seu sentido. Ou seja, os códigos deontológicos e éticos que pretendem estabelecer comportamentos e ações aos profissionais do jornalismo estão sujeitos a interpretações e adaptações em função de situações, interesses externos aos do jornalismo e de sociedades distintas. Os autores dessas possíveis adaptações, que podem ser positivas ou negativas, são, claramente, os jornalistas.

Um caso típico de vulnerabilidade

Os códigos deontológicos também se dirigem a sujeitos, independentemente do catálogo de deveres que propõem. Sujeitos chamados a decidir, a escolher, a avaliar regras que podem entrar em contradição umas com as outras, a relacioná-las com a sua consciência. Sujeitos livres de se abrirem a uma reflexão ética, que tanto incide na realidade da sua profissão como na pertinência da sua deontologia. (Cornu, idem: 118, grifos meus)

Diante da variedade de regras e normas deontológicas e éticas e da possibilidade de adaptá-las de modo mais conveniente às diversas realidades, deve-se perguntar se tais adaptações e interpretações interferem no produto final (o conteúdo jornalístico) ou se interferem apenas nos meios. Cornu afirma que os códigos frequentemente misturam os aspectos que dizem respeito ao produto final (informação verdadeira, livre) com os aspectos que dizem respeito aos meios técnicos (o tratamento correto de fontes, de dados etc.).

No entanto, mesmo com algumas dificuldades de entendimento e de execução do que ditam os códigos de ética, é fato que eles estão presentes em todas as redações, empresas de comunicação, associações de jornalistas etc., instituem regras e normas que, a priori, devem ser obedecidas e consultadas por todos os profissionais em caso de dúvida, como uma espécie de oráculo do jornalismo. Sendo, em tese, a definição estabelecida do que é e do que não é ético no jornalismo, deve-se procurar justamente nesses documentos por pontos de fragilidade e vulnerabilidade que podem permitir ou facilitar a prática de um jornalismo orientado muito mais pela ética da convicção do que pela ética da responsabilidade.

No Brasil, o documento de maior relevância que trata sobre normas e regras para uma conduta profissional ética é o Código de Ética dos jornalistas brasileiros, criado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). No entanto, por ser produzido pelo sindicato representante da classe, o código não é editado por lei federal ou decreto e dessa forma constitui-se apenas em uma orientação para os profissionais. Como o jornalismo no Brasil também não possui um conselho federal de fiscalização, o código de ética não é suficiente para estabelecer sanções legais a um profissional que infrinja suas normas. A situação do código de ética dos jornalistas brasileiros é um caso típico da vulnerabilidade a que essas regras e normas estão expostas em virtude da ausência de uma fiscalização eficaz, como apontou Cornu anteriormente.

Imagens abrangentes e representativas

Além disso, permanece ainda o debate sobre a validade e eficácia de um mesmo código de ética servir a duas ocupações distintas: jornalistas e assessores de imprensa. Precede essa discussão outra polêmica ainda maior sobre jornalismo e assessoria de imprensa serem duas profissões distintas, mas essa é uma questão cuja solução não está à vista.

De qualquer maneira, há de fato uma distinção clara entre o trabalho executado por um jornalista e por um assessor, enquanto aquele responde aos interesses da sociedade, dos leitores, telespectadores e ouvintes, este responde aos interesses e demandas de quem o emprega ou contrata seus serviços. Ambas as atividades devem divulgar informações verdadeiras e ter uma postura profissional ética, mas o jornalista não lida com interesses de empresas, figuras públicas ou instituições, enquanto o assessor só existe em virtude desses interesses particulares (Bucci, 2006).

Desse modo, alguns artigos do código de ética dos jornalistas brasileiros soam ambíguos por se dirigerem a dois profissionais cujas atividades se dão em ambientes distintos e com funcionalidades distintas. Essa ambiguidade oferece brechas para que jornalistas realizem seu trabalho como assessores – ainda que não o sejam realmente, mas como assessores de causa própria (convicção, consciência pessoal). Por exemplo, um jornalista filiado a algum partido político pode tratar de modo tendencioso a informação jornalística sobre outra sigla; da mesma forma, um jornalista racista ou preconceituoso pode vir a abordar de tal forma determinado acontecimento que trate de um tema do qual ele discorde.

Já se sabe que o jornalismo realiza a manutenção de vários tabus, reforça estereótipos e ajuda a estabelecer relações sociais de poder entre as classes sociais. O jornalismo diário não oferece apenas informação factual, mas um imaginário coletivo – o jornalismo é agente construtor da arena simbólica. Daí a importância de manter a prática o mais isenta possível de convicções pessoais, preconceitos, racismos, opiniões baseadas em experiências individuais.

[…] o objetivo primeiro das notícias é derivado do papel dos jornalistas como construtores da nação e da sociedade, e como gerenciadores da arena simbólica. O objetivo mais importante das notícias, portanto, é fornecer à arena simbólica e à cidadania imagens abrangentes e representativas (ou constructos) da nação e da sociedade. (Gans apud Soares, 2001: 26)

A ‘cláusula de consciência’

Para auxiliar nessa tarefa, que é delicada, códigos de ética realistas e aprofundados, órgãos de fiscalização atuantes e profissionais dispostos a discutir longamente a própria atividade são essenciais. É necessário um trabalho conjunto. No entanto, o código de ética dos jornalistas brasileiros contém uma cláusula que vem a reforçar a autonomia ética de cada profissional jornalista. É a ‘cláusula de consciência’, que diz:

Capítulo IV – Das relações profissionais

Art. 13. A cláusula de consciência é um direito do jornalista, podendo o profissional se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam suas convicções.

Parágrafo único. Esta disposição não pode ser usada como argumento, motivo ou desculpa para que o jornalista deixe de ouvir pessoas com opiniões divergentes das suas. (Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, 2007: 3)

A ‘cláusula de consciência’ significa que os profissionais têm o direito de recusar-se a apurar e escrever matérias, e não podem ser obrigados a cumprir normas editoriais às quais, por razões explícitas ou implícitas, sejam contrárias as suas convicções pessoais. Segundo Cornu (1998), essa proteção é importante, pois todos os meios de comunicação adotam linhas editorais definidas a partir de objetivos políticos ou comerciais, e nem sempre isso é claro. De acordo com a Declaração de Munique, a linha geral do veículo de comunicação deveria estar registrada no contrato de trabalho de cada jornalista empregado, pois este tem o direito e o dever de conhecê-la, já que ela irá condiconar todo o seu trabalho e, portanto, deveria condicionar também sua adesão pessoal. Apesar disso, geralmente os profissionais conhecem apenas em termos muito gerais a linha editorial de um novo empregador e isso pode provocar sérios conflitos de interesses e de consciência mais tarde.

Embora a cláusula da consciência garanta uma proteção importante e necessária aos profissionais, também dá margem para interpretações diversas. Alguns temas com muita frequência abordados pela imprensa possivelmente não sofrerão censura individual com base na presente cláusula, outros, no entanto, podem ser vetados por profissionais que eventualmente evoquem seus direitos previstos no Código de Ética.

Além disso, a cláusula não deve ser evocada apenas quando o jornalista não quer ou não concorda em noticiar determinado assunto, mas também quando o profissional discorda da forma como tal informação foi apurada ou editada, ou o enfoque que a publicação pretende dar à notícia – muitas vezes informações corretas e adequadamente apuradas são totalmente distorcidas pela edição ou pelo enfoque dado a ela. Geralmente, quando isso acontece ou o veículo é claramente tendencioso ou sensacionalista, ou há interesses alheios ao jornalismo que influenciaram a escolha editorial. Nesses casos, o jornalista poderia evocar a ‘cláusula de consciência’ e se recusar a participar do episódio.

Referência à consciência e convicção profissional

Embora seja louvável a preocupação com a defesa e a proteção da liberdade profissional e o respeito às convicções pessoais do jornalista, o tema é bastante complexo, polêmico e ambíguo. A interpretação subjetiva das contradições ou dúvidas que deixam os códigos pode ir para qualquer lado. Assim, a cláusula da consciência pode servir tanto para proteger a informação quanto para escondê-la, com base no julgamento subjetivo submetido à exclusividade da consciência pessoal . (Karam, 1997: 97)

É difícil prever em quais situações um jornalista faria uso da ‘cláusula da consciência’, pois além de deixar a informação jornalística vulnerável, pode provocar grandes perturbações nas relações profissionais entre repórter e editor – pode ser difícil justificar uma recusa diante do editor utilizando argumentos de caráter pessoal e subjetivos, facilmente refutáveis com a máxima de que ‘jornalista deve ser imparcial, neutro, objetivo’; e mais difícil ainda pode ser justificar uma recusa quando a razão não é propriamente uma convicção pessoal e subjetiva, mas uma discordância profunda com o tratamento editorial que exige o editor da publicação, que, no entendimento do repórter, vai comprometer a veracidade e integridade da informação.

O que temos claro é que a ‘cláusula da consciência’, embora recurso necessário para assegurar a liberdade e a proteção de cada profissional, pode também facilitar uma prática jornalística negligente e irresponsável quando evocada para justificar falhas informacionais, manobras editoriais questionáveis ou convicções pessoais que não devem interferir no trabalho do jornalista (como convicções de ordem política ou religiosa).

Mas, se a polêmica cláusula é parte de um código de ética amplamente divulgado como ferramenta primeira de orientação profissional, como os profissionais devem se comportar? Talvez o mais adequado fosse esclarecer no próprio código e depois em longos debates que a cláusula da consciência faz referência à consciência e à convicção profissional e que embora o limite entre profissional e pessoal seja sutil é fundamental distinguir um do outro.

Uma formalidade a ser atendida

O jornalista, assim como o dono do meio de comunicação, não pode ser o juiz do mundo, o árbitro moral do movimento controverso da realidade cotidiana. A consciência profissional do jornalista deve, isto sim, ter em conta a dimensão pública de sua atividade, com as consequências sociais que traz, com a responsabilidade que exige, com a obrigatoriedade de revelação de acontecimentos independentemente da posição pessoal. Isto seria consciência de sua atividade profissional e da ética específica – não particularista – que carrega. […] Portanto, o profissional não pode condicionar os fatos e versões a sua consciência pessoal. (Karam, Op. Cit.: 101, grifos meus)

Bucci (2000) também defende que a postura profissional do jornalista deve ser consciente e estar de acordo com a ética específica de sua função, independente de convicções pessoais sobre assuntos variados, inclusive sobre si mesmo. De acordo com o autor, um erro muito comum é o jornalista se declarar imune à pressões e situações de conflitos de interesses que possam interferir na ação jornalística ética com argumentos que dizem respeito ao seu caráter, a sua índole, sua ‘psicologia pessoal’. No entanto, o jornalismo, enquanto função social, é norteado, regido, por normas de condutas muito específicas, próprias da sua função, e não do indivíduo que a exerce. ‘O sentido dessa limitação é, portanto, social. O problema é da estrutura da profissão – não é da pessoa. É formal, e deve ser vigiado como uma formalidade a ser atendida por aquele que exerce a função social de informar o cidadão.’ (Bucci, 2000: 90).

Convicção, objetividade e intersubjetividade

Embora seja consensual que o jornalismo não deva sofrer grandes interferências nem distorções provocadas pelas convicções pessoais de cada jornalista, é também aceito que o profissional não pode simplesmente se despir, se livrar justamente daquilo que o define como sujeito: suas crenças, ideologias, identificações culturais etc. No entanto, o jornalismo almeja a objetividade e muitas vezes esses aspectos pessoais de cada jornalista podem comprometer o distanciamento necessário entre o profissional e o acontecimento, o fato, a fonte. Assim, ‘surge um conflito entre aquilo que lhe constitui a subjetividade e aquele que é seu dever profissional’ (Bucci, 2000).

Esse conflito é muito comum e inevitável, posto que o jornalista é um sujeito que reporta acontecimentos produzidos por outros sujeitos a um grande número de outros tantos sujeitos, os destinatários. A rigor, o distanciamento necessário para a objetividade é inexistente, já que o jornalista deve observar, coletar informações e depoimentos de fontes e compreender situações que muito se aproximam da sua própria realidade, ou de experiências vividas. Nesses termos, é muito fácil se envolver e deixar que a descrição objetiva dos fatos e dos protagonistas seja influenciada por vivências anteriores, opiniões e preconceitos pessoais.

Se a objetividade é uma meta do jornalismo e se para produzir esse mesmo jornalismo situações de conflitos de consciência são inevitáveis, qual é o caminho mais adequado para pelo menos amenizar os possíveis impactos e prejuízos para o jornalismo? Bucci novamente nos aponta uma possibilidade:

A única resposta possível é subjetiva: a objetividade depende de quem for o jornalista e de qual for a história a ser investigada e contada. A melhor objetividade no jornalismo é então uma justa, transparente e equilibrada apresentação da intersubjetividade. Quando o jornalismo busca a objetividade, está buscando estabelecer um campo intersubjetivo crítico entre os agentes que aí atuam: os sujeitos que produzem os fatos, os que o observam e o reportam, e os que tomam conhecimento do fato por meio do relato. Daí a necessidade de prestar atenção nas convicções pessoais dos jornalistas. (Bucci, 2000: 94)

As condições para uma ‘boa informação’

Isso significa que a melhor maneira de resguardar o jornalismo e sua objetividade e, principalmente, a informação e as sociedades que a consomem, é garantir que cada jornalista tenha muito claro para si e para os demais quais são suas limitações, suas convicções pessoais que podem vir a atrapalhar a cobertura noticiosa de determinados assuntos. É um compromisso de cada profissional para com a redação na qual trabalha e para com o público ao qual serve primordialmente.

O pecado ético do jornalista não é trazer consigo convicções e talvez até preconceitos. Isso, todos temos. O pecado é não esclarecer para si e para os outros essas suas determinações íntimas, é escondê-las posando de ‘neutro’. O pecado ético do jornalista, em suma, é falsear a sua relação com os fatos, tomando parte na impostura da neutralidade. (Bucci, Op. Cit.: 97)

Conforme Bucci, existem três maneiras clássicas de falseamento em relação aos fatos e às convicções pessoais, e esse falseamento é muito mais anti-ético do que do que o reconhecimento de uma ética de convicção. A primeira é a ocultação voluntária, que é quando o jornalista finge não ter convicções ou preconceitos, ou que eles não ameaçam a objetividade e veracidade da informação jornalística. A segunda é a ocultação deliberada, que é basicamente disfarçar concepções pessoais na forma de informação objetiva – geralmente, a ocultação deliberada é praticada desde a definição da linha editorial dos veículos de comunicação. A terceira e última é a ocultação voluntária, quando um profissional abre mão de suas convicções e consciência para assumir as de quem está no comando, o editor ou chefe de redação.

Nesse sentido, torna-se fundamental o diálogo, a transparência, a disposição tanto por parte das empresas de comunicação como por parte dos profissionais de debater abertamente sobre questões éticas, sobre responsabilidade, sobre convicção. Nas redações pouco se fala sobre isso, é mais adequado não comentar, agir como se esses conflitos não existissem – às vezes, a simples menção de um conflito de consciência ou de interesses já provoca reações negativas e julgamentos prévios por parte de colegas, fontes e do público. ‘Isso significa dar lugar a uma ética reflexiva que, interrogando as próprias condições de prática, procura identificar as pressões objetivando agir sobre elas e criar as condições para uma `boa informação´’ (Cornu, 1998: 97).

Garantir credibilidade ao jornalismo

Nesse contexto de dúvidas e conflitos éticos retomamos a questão inicial sobre qual é a função efetiva dos códigos de ética jornalística. Para Bucci (2000), os valores e condutas do jornalismo se instituem muito mais pela prática, pelo costume do que por normas e regras explícitas e estabelecidas em documentos, além disso, alguns princípios básicos são compartilhados universalmente e não geram muitos questionamentos a respeito de sua validade e aplicabilidade. A vantagem desses códigos seria então a de poder deixar em registro oficial e legítimo os princípios que regem o jornalismo.

Já sobre normas que ditariam a conduta adequada em situações de conflito entre ética de convicção e ética de responsabilidade – situações e dilemas cujas soluções demandam avaliação subjetiva tornando cada caso único –, Bucci é taxativo ao afirmar que códigos de ética só têm real poder de orientação se forem resultado de extensos debates coletivos, se forem produzidos pelo maior número possível de profissionais.

Bernier (2004) compartilha dessa opinião. Para ele, os códigos dizem respeito a uma normatização fundamental, porém sempre questionada, a fim de reafirmar fundamentos ou definir novos princípios para orientar a prática jornalística. Para Bernier, os valores morais de cada profissão são resultado de sua história e de sua função, de seu papel atual para a sociedade, de modo que a normatização da mesma deve acompanhar as transformações ocorridas no que diz respeito à funcionalidade de sua atividade, à legitimidade de seus agentes e de seus serviços. O jornalismo contemporâneo apresenta dilemas e conflitos que algumas décadas atrás não existiam, a sociedade que consumia o jornalismo de décadas atrás também sofreu profundas transformações, de maneira que os debates éticos a respeito da profissão, de suas premissas, do que pode e do que não pode precisam considerar essas transformações históricas, culturais e sociais. De qualquer maneira, defende Bernier, os códigos têm, sim, sua importância e exercem o papel de garantir maior credibilidade ao jornalismo, bem como enfatizar as especificidades da atividade.

Os efeitos no produto final

Cornu (1998) também acredita que a existência de tantos códigos de ética e manuais de conduta indicam uma tendência utilitarista cujo objetivo é satisfazer expectativas do público ao conciliar, através dos códigos, a aplicação de regras e normas com a prática, transmitindo assim uma boa imagem para o público, conquistando mais credibilidade e dissuadindo os poderes públicos de intervir na regulamentação do jornalismo sob o argumento de que tal atitude violaria o princípio básico da liberdade de expressão.

Seja quais forem as intenções dos códigos de ética, é necessário ter claro que tanto é importante para o jornalismo, para os jornalistas e para a sociedade, que existam códigos e manuais cujos esforços maiores são para orientar e proteger a profissão e a informação produzida por ela, como é igualmente importante renovar repertórios, promover novas pesquisas e tentar compreender se esses códigos têm condições de cumprir efetivamente seu papel de orientador e protetor da boa prática jornalística.

Como vimos até agora – não exclusivamente pela vulnerabilidade e precariedade das normas –, o código de ética dos jornalistas brasileiros apresenta pontos de fragilidade que facilitam ou pelo menos não oferecem respostas e orientação como deveria a respeito de posturas e ações de profissionais claramente ou implicitamente orientadas por uma ética de convicção. No entanto, é também essencial aprofundar as pesquisas e a compreensão a respeito desse conceito e de seu antagônico, ética de responsabilidade, a fim de compreender quais são os efeitos no produto final (a notícia), e nos receptores; e também para poder avançar nas discussões sobre outro conceito fundamental do jornalismo, a objetividade.

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Jornalista, Florianópolis, SC