Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Híbrido glocal, ciberativismo e tecnologias da informação

Ao analisar a hibridização da cultura contemporânea, Canclini (2004) demonstra ser importante compreender os processos de produção de bens simbólicos realizados nos movimentos sociais e, simultaneamente, pensar a atuação política e cultural desses movimentos. A transnacionalização dos mercados simbólicos não só desconstruiu os antagonismos modernos – cosmopolitismo versus nacionalismo, por exemplo – como possibilitou hibridizar o global e o local. Nessa perspectiva, uma cultura híbrida é, antes de tudo, ‘um lugar híbrido, no qual se cruzam os lugares realmente vividos’ (CANCLINI, 2004, p. 327).

Em outro texto, ao discutir os conflitos multiculturais da globalização, Canclini (2006) aponta que a cidadania se constitui não mais apenas em relação aos movimentos sociais, mas também quanto aos processos comunicacionais. A possibilidade de se reinventar territórios existenciais comuns para as experiências urbanas deve reunir o enraizamento dos grupos locais com a participação solidária na produção da informação e no desenvolvimento cultural proporcionado pela comunicação midiática. Para o autor, o que se deve conceber é ‘como o uso da informação internacional e a simultânea necessidade de estar integrado e arraigado no local podem coexistir, sem hierarquias discriminatórias, num multiculturalismo democrático e inteligente’ (CANCLINI, 2006, p.89). As respostas para as questões teóricas levantadas pelo pesquisador mexicano, talvez possam estar sintetizadas nesse trecho do editorial do jornal digital do Movimento Enraizados [o Movimento Enraizados foi a organização da sociedade civil que venceu o Prêmio Cultura Viva 2007, do Ministério da Cultura, entre 2.683 iniciativas inscritas e submetidas a análise de 302 avaliadores. A premiação foi devido ao trabalho de rede de militância cultural nas periferias dos grandes centros. Ver: www.premioculturaviva.org.br], escrito por um ativista da cultura hip hop: ‘Somos globais e locais ao mesmo tempo porque somos híbridos glocais’ (DUMONTT, 2007, p. 2).

Já Bauman (1999), ao discutir a cibercultura como o principal aspecto da hibridização, afirma que o ciberespaço é um lugar de incessante deslocamento virtual e de movimentação social, política e econômica. Nesse sentido, o sujeito contemporâneo vive um nomadismo ciberespacial: desloca-se ‘do lugar’ sem produzir uma movimentação no espaço geográfico, viajando pelas redes ciberespaciais da internet. Ressaltamos, entretanto, que o mais interessante é pensar as relações entre as práticas ciberespaciais e produção de subjetividade. Como é ainda possível que, na cibercultura, um grupo de ativistas do movimento social se denominem ‘enraizados’? Como ter ‘raiz’ cultural e estar na rede rizomática da internet? Será que é exatamente a estrutura não-hierárquica e não centralizada da rede mundial de computadores que cria as condições de possibilidade para que um grupo de hip hop da Baixada Fluminense se articule rizomaticamente com outros grupos? E qual a ‘raiz’ cultural de um grupo vinculado à produção de um estilo de música globalizada como o rap? Rizoma e raiz? ‘Faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades!’ (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 36).

Podemos pensar que se dizer ‘enraizado’ é situar-se como um grupo-sujeito minoritário: a minoridade política possibilita a invenção de linhas de fuga que escapam dos constrangimentos do poder. Por outro lado, significa não integrar a maioridade política e estar na margem; isto é, na ‘marginalidade’ enquanto a margem do centro político. Ou melhor: estar, não na periferia em relação a um centro político e/ou cultural, mas nas peripécias de um percurso que foge a todo e qualquer centro – o descentramento radical que produz o acontecimento, ou seja, a criação no sentido deleuziano. Dito de outra forma: a cultura ‘sub-urbana’ – transformada, com a internet, em pós-suburbana – é capaz de ficar à deriva, ao viver no paradoxo entre desterritorializar e reterritorializar. Isto é, entre o local – o localismo enquanto estrutura fundadora da comunidade – e o globalismo, dispositivo que induz a radicais transformações na cultura contemporânea. Na expressão de Robertson (2000): glocalização, processo que expõe a complementação e a unidade entre as pressões globalizantes e as locais. Enraizado na rede rizomática: simultaneamente, local e global – ação política local e produção cultural global. Movimento hip hop, aporte glocal para o ciberativismo político.

Movimento pendular: nunca permanecer onde se pensa estar na experiência coletiva. Tentar compreender o que pode ser enraizado-rizomático na sub-urbes desterritorializada é mapear um agenciamento coletivo de enunciação: as estratégias comunicacionais de um grupo-sujeito que não está disposto a qualquer assujeitamento cultural. Mas, como lidar com a dispersão criativa de um ‘bando sub’ e seu ‘novo modo de pensar através da prática artística’ (CAIAFA, 1985, p. 30) para discutir questões culturais pós-modernas e as possibilidades de apropriações das máquinas técnicas de informação e comunicação para a produção cultural? Adotar o método socioantropológico da observação participante para esquadrinhar as dimensões político-sociais das produções culturais da juventude que vive na Baixada Fluminense é como pedir a um determinado sujeito que apenas atue com o máximo de espontaneidade: frente a esta palavra-de-ordem, o paradoxo se implanta, pois obedecer à determinação para agir espontaneamente é deixar de lado toda e qualquer possibilidade de ação espontânea. Cabe, então, adotar o método da não-interpretação: tudo se dá por visível, nada a interpretar além daquilo que emerge na superfície das práticas discursivas. Nada também para ‘fotografar’ enquanto o máximo do real, nada para espelhar como realidade social: ‘A escritura é experimentação’ (CAIAFA, 1985, p. 18), fluxos delirantes das cartografias do desejo através de exercícios políticos concretos. Ou, como dizem Deleuze e Guattari (1995, p. 22): ‘Fazer o mapa, não o decalque’, pois o rizoma é mapa e não decalque. Movimento hip hop na Baixada Fluminense – intensidades rizomáticas dos grupos-sujeito, paixão das sensibilidades coletivas impulsionadas pelo protagonismo da juventude periférica.

Enraizados e rizomáticos

‘Eu sou dividido entre a militância e o lado artístico – não vivo sem militar e não vivo sem fazer rap: preciso de um para trabalhar o outro’ (DMA, 2006, p. 28). A afirmativa do rapper DMA, na revista Rap Brasil, serve não só para destacar a relação entre a cultura hip hop e a conscientização política como também para marcar o sentido da auto-estima de quem está, desde o primeiro momento, na articulação do Movimento Enraizados, criado em 1999, na localidade de Morro Agudo – nomeada, oficialmente, Comendador Soares –, distrito de Nova Iguaçu, um município localizado na Baixada Fluminense, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. O rapper DMA, também conhecido como Dudu de Morro Agudo ou Flávio Eduardo da Silva Assis, em sua coluna mantida na homepage institucional do Movimento Enraizados, recorre a uma citação do autor de Utopia (1516), o filósofo inglês Thomas Morus – ‘Sê o que quiseres, mas procura sê-lo totalmente’ – para discutir a dificuldade entre as ‘certezas ideológicas’ do movimento e a vida cotidiana tanto de militantes do hip hop quanto de moradores da comunidade. Observemos o que DMA aponta sobre esta contradição:

Vejo várias pessoas com ótimas ideias, com o espírito de guerreiro, querendo mudar o mundo, ajudar o próximo etc; porém, estas mesmas pessoas moram no último barraquinho da favela, no barraco mais humilde, têm filhos, esposa e muitas vezes não têm emprego. A partir daí, começa a viver o que quer ser pela metade, pois precisa dar de comer para a família, precisa correr contra o tempo… (MOVIMENTO ENRAIZADOS, 2009).

É possível perceber, nessa fala do rapper DMA, um sentido de atuação da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1977) impondo um determinado modo de subjetivação pelas injunções econômicas. As mais diferentes análises dos novos movimentos sociais – o Movimento Enraizados pertence a esse registro – demonstram a importância política dos grupos culturais periféricos nos embates contra a sobredeterminações econômicas que subestimaram o potencial transformador das manifestações culturais. Além de administrar diversos sites na internet, o Movimento Enraizados – que se autodefine como uma organização de base com o objetivo de formar e orientar militantes e grupos artísticos com foco no protagonismo juvenil – é também uma rede de militância e de articulação política que utiliza o espaço virtual para reunir diversos grupos de hip hop. Esses grupos encontram-se em 17 estados e no Distrito Federal, além de outros nove países [a relação completa dos principais grupos articulados pela Rede Enraizados, que também coordena o Movimento Organizado de Hip Hop Brasileiro (MOHHB), pode ser consultada no site www.enraizados.com.br. No exterior, o Enraizados articula-se com grupos de hip hop em Portugal, Espanha, França, Bélgica, Finlândia, Moçambique, Angola, Japão e Colômbia].

A análise que empreendemos aponta que o Movimento Enraizados visa construir campos específicos de disputas simbólicas que significam questionar como o poder se exerce e quais são as relações da produção de subjetividade com o poder através de estratégias comunicacionais. Essas estratégias já foram denominadas como ‘comunicação comunitária’, entendida enquanto um conjunto de meios de comunicação, tecnologias da informação e práticas discursivas que não se enquadram dentro dos esquemas econômicos e políticos da indústria cultural, conforme esse conceito foi formulado por Adorno e Horkheimer (2002). Preferimos, entretanto, a partir dos conceitos de autores como Foucault, Deleuze e Guattari, nomear as estratégias comunicacionais realizadas pelo Movimento Enraizados como ‘ecologia do virtual’ (GUATTARI, 1992), uma prática micropolítica de resistência ao exercício do poder que ressalta que os campos de luta contra as experiências fundamentais da dominação são as problematizações na ordem da subjetividade. Neste sentido, a dominação na ordem da subjetividade emerge como problema político central na cultura midiática contemporânea.

Ecologia do virtual

Nesta seção do artigo, pretendemos conceituar essas estratégias comunicacionais que nomeamos como ecologia do virtual e discutir a prática política de apropriação das novas tecnologias de informação por grupos culturais minoritários pela perspectiva teórica dos autores e conceitos que criam as condições de possibilidade para pensar as questões que afetam a sociedade contemporânea, ultrapassando as análises voltadas para as relações sociais explícitas. Entendemos que a inovação teórica desses autores se dá exatamente por demonstrar que as disputas e tensões inerentes aos processos de construção de hegemonia e controle social se apresentam, em sua máxima abrangência, enquanto ‘crise dos modos de subjetivação, dos modos de organização e de sociabilidade, das formas de investimento coletivo de formações do inconsciente’ (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 191). Nessa perspectiva, a principal questão político-cultural da Pós-modernidade diz respeito aos modos de semiotização do capitalismo, que envolve as semióticas de modelização da produção de subjetividade indicadas para o controle social, superando o nível das semióticas econômicas. Isto significa que essas crises não conseguem mais ser explicadas por teorias tradicionais, sejam sociológicas ou econômicas. Por outro lado, a emergência da singularidade como processo semiótico tenta romper com determinadas categorias da tradição filosófica e científica, recusando tanto a privatização capitalista pressuposta pela noção de indivíduo quanto o papel constituinte da consciência, isto é, do sujeito como faculdade soberana de representação e simbolização.

Podemos afirmar, seguindo este caminho teórico, que os modos de produção do capitalismo extrapolam a ordem do capital e abrangem, principalmente, o modo de controle da produção de subjetivação. ‘O capital ocupa-se da sujeição econômica e a cultura, da sujeição subjetiva’ (idem 16). Assim, os termos ‘comunicação de massa’ ou ‘cultura de massa’ devem ser compreendidos como dispositivos que operam a compartimentação do modo de produção de subjetividades, fabricando individualidades serializadas: a ‘comunicação de massa’ é, portanto, o dispositivo fundamental da produção de subjetividade nos modelos capitalistas, fabricando indivíduos normalizados e articulados segundo sistemas de valores hierárquicos e de submissão. No capitalismo contemporâneo, a questão política central tornou-se os modos de produção de subjetividade social: uma produção de subjetividade encontrada em todos os níveis da produção e do consumo.

É neste quadro que a emergência dos novos movimentos sociais – dentre os quais, os grupos culturais situados nas periferias dos centros urbanos – implica na construção de linhas de fuga ao poder ubíquo dessa máquina capitalista de produção de subjetividade, enxergando – nas rupturas abertas pelos processos de singularização – uma recusa que visa construir novos modos de sensibilidade e criatividade, produtores de uma subjetividade singular. Tais processos de singularização, ao desenharem novas cartografias do desejo, irredutíveis ao controle centrado, criam condições de possibilidade para a emergência de revoluções moleculares, constituindo micropolíticas. ‘Toda problemática micropolítica consistiria, exatamente, em tentar agenciar os processos de singularidade no próprio nível de onde eles emergem’ (idem, 130).

Os processos de singularização abrem rupturas na individualidade serializada produzida pela ‘cultura de massa’, nesta subjetividade normalizada que é a de um sujeito-objeto da administração e da organização capitalistas. Nesta perspectiva, o devir liga-se à possibilidade ou não de um processo de singularização, no qual singularidades podem entrar em ruptura com as estratificações dominantes. Os novos movimentos sociais – especialmente aqueles voltados para as práticas discursivas do campo da comunicação e da produção cultural – sempre apostaram na multiplicidade e na pluralidade, rompendo com as propostas de proteção da identidade cultural, pois a noção de identidade significa o retorno ao Mesmo, ao Idêntico. Enquanto atuarem como processos de singularização, de autonomia ou de micropolítica em suas diferentes formas de resistência molecular, esses movimentos podem manter, em permanente questionamento, o projeto de controle social em escala planetária.

Por outro lado, a micropolítica também implica, para Guattari e Rolnik, na invenção da autonomia que não se circunscreve apenas às práticas alternativas, aos movimentos das ‘minorias’ organizadas ou às ações de revolta, resistência e contestação. Partindo desses territórios de existência, esta cartografia os ultrapassa e desenha novos campos de ação e de vida, produzindo autonomias que podem alterar a relação de poder na sociedade. Apesar da possibilidade de rupturas, os novos movimentos sociais correm o risco da reiteração do que combatem, aprisionando os novos territórios vitais nas antigas territorialidades do já pensado e do já desejado. A percepção de Dudu de Morro Agudo, conforme artigo publicado no site do Enraizados, aponta para este risco:

Muitas vezes, principalmente nós do hip hop, pregamos determinadas coisas em nossas músicas que não vivemos em nosso dia a dia. Um exemplo disso são os milhares de Guinas – o personagem bandido da música dos Racionais Mcs – que, quando são roubados e/ou agredidos por outros Guinas, sentem ódio. Ué, isso não é contraditório? O cara acha maneiro ser bandido, mas quando sente na própria pele já não acha tão maneiro assim. Ou então o cara que não deixa a mulher/namorada dele olhar para o lado da rua, não deixa a mulher ter amigos, não perdoa traição, mas por baixo dos panos ele tem diversas ‘amigas’, trai e se sente a versão africana do Don Juan de Marco’. Ou até mesmo aquele que é ‘Preto Tipo A’, mas não cola com preta de tipo nenhum, sacaneia com piadinhas os obesos e nordestinos e tem pavor dos homossexuais (MOVIMENTO ENRAIZADOS, 2006).

Assumir, entretanto, que os processos históricos também são finitos e falíveis, não significa que esta constatação acarrete em perda de importância para um acontecimento emergente. Se um campo das estratégias comunicacionais apresente-se como um domínio capaz de provocar rupturas nas significações dominantes, é porque nos novos grupos culturais periféricos se encontram os núcleos de resistência ‘ao rolo compressor da subjetividade capitalística, da unidimensionalidade, do equivaler generalizado, da segregação, da surdez para a alteridade’ (GUATTARI, 1992, p.115).

Trata-se, portanto, de uma aposta teórica e política: grupos periféricos – como o Movimento Enraizado – estão dotados de uma potência para a construção de uma ecologia do virtual que vise promover paradigmas ético-estéticos para o campo social, apontando para a dimensão da criatividade nas práticas sociais da comunicação. Mas, cabe destacar que, além do campo da micropolítica, outros domínios como a arte, a filosofia e a ciência, também podem ser constituir em lugares de resistência às redes de significações dominantes:

‘A potência estética de sentir, embora em igual direito às outras – potências de pensar filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente – talvez esteja em vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de enunciação de nossa época’ (GUATTARI, 1992, p. 130).

Para Guattari, o paradigma de referência de novas práticas sociais pode ser denominado como ecologia do virtual e sua proposta é funcionar como um dispositivo de criação de novos modos de subjetivação. Esta ecologia do virtual – tal como exercido em suas práticas discursivas pelo Movimento Enraizados – tem por tarefa preservar ‘as espécies ameaçadas da vida cultural cotidiana’ e ainda engendrar ‘as condições de criação e de desenvolvimento deformações de subjetividade inusitadas’ (idem, p. 116). Dito de uma maneira explícita: se assumir como produção de subjetividade.

A instauração de um novo momento revolucionário, estabelecendo processos que permitiram a tomada de consciência da transformação da qualidade social da produção e dos processos de trabalhos emerge a partir dos acontecimentos políticos da década de 60; entretanto, conforme aponta Guattari, foram exatamente os partidos comunistas e socialistas tradicionais que não perceberam a força dos novos modos de produção social emergentes com o capitalismo mundial integrado. Essa nova forma do capital como força transformadora do social tornou-se capacitada para traduzir qualquer sequência da vida em termos de troca e de sobredeterminação com a urgência e a necessidade das operações de quantificação econômica e de comando político. A integração mundial veio possibilitar ao capital um controle de todos os tempos singulares da vida: ‘a família, a vida pessoal, o tempo livre e talvez os fantasmas e o sonho, tudo está a partir de então sujeito às semióticas do capital’ (GUATTARI e NEGRI, 1987, p. 15). Este contexto de assimilação progressiva da sociedade à lógica do capital e de desterritorialização dos processos produtivos acabou por converter as classes operárias em ‘massa’ de consumo.

É também a partir da década de 60 que os novos modos de subjetivação deslocam os antigos cenários de luta de classes, instaurando-se no imaginário e no campo cognitivo da pós-modernidade. A manifestação do singular como multiplicidade vem afirmar que só as singularidades são capazes de movimentos criadores das diferenças e de romperem com a lógica redutora da dominação capitalista. Este é o contexto de produção das novas subjetividades, que devem ser pensadas a partir das noções de micropolítica e revolução molecular, relacionadas com as concepções inovadoras da noção de poder. Isto é, pensar as singularidades significa criar condições de possibilidades para a construção das subjetividades coletivas, tomando como ponto de partida os universos dos desejos. Se o poder emerge e sustenta-se por uma rede múltipla e dispersa que abarca todos os estratos da vida, a luta política deve procurar também múltiplos pontos de rupturas. O campo da política não pode mais ser reduzido à luta de classes: uma ‘micropolítica do desejo’ deve investir em uma multiplicidade de objetos ao alcance imediato dos mais diversos conjuntos sociais. O acúmulo de lutas parciais pode ou não desencadear lutas coletivas gerais.

É nesta analítica das formações do desejo no campo social – a micropolítica – que realiza o cruzamento entre o nível das diferenças sociais mais amplas – o nível molar – com o nível molecular, pois as lutas sociais são, simultaneamente, molares e moleculares, não existindo entre eles dois níveis uma distinção opositiva. No nível molecular, o poder lança sua estratégia, faz agenciamentos e modeliza o desejo; no nível molar, o que se tem é o efeito global do poder, a partir dessa captura ao nível molecular.

A ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de referência; a ordem molecular é a dos fluxos, dos devires, das transições de fases, das intensidades (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 321).

Em síntese: a partir dos marcos teóricos de Foucault, Deleuze e Guattari, uma análise dos novos grupos culturais periféricos e de suas estratégias comunicacionais denominadas ecologia do virtual apresenta-se em dois eixos. Primeiro, reconhece que o processo de produção de subjetividades se realiza através dos dispositivos de comunicação de massa enquanto uma modalidade de ‘indústria de base’ do capitalismo mundial integrado; e, segundo, destaca os pontos de ruptura nos modos de subjetivação hegemônicos, linhas de fugas nas quais podem emergir uma multiplicidade de singularizações.

Esses marcos teóricos também nos permitem entender que as estratégias do poder passam pela captura dos investimentos desejantes: é no nível do desejo que se dá o funcionamento do poder, pois administrar o desejo é fundamental para um sistema totalizante. Por ser uma força capaz de dar sentido ao mundo, capturar o desejo torna-se uma condição indispensável para o funcionamento do poder da máquina capitalista. O capital aparece como o pressuposto natural do trabalho, mas não é o produto do trabalho; além de se opor às forças produtivas, o capital rebate-se sobre toda a produção e constitui uma superfície onde se distribuem as forças e os agentes de produção, que se tornam o seu poder.

O inconsciente, o desejo não tem complexos, ele produz. O quê? Sujeito? Algumas vezes, em determinadas conjunturas, mas não necessariamente. O inconsciente maquínico produz tudo: a terra, os homens sobre a terra, suas relações, territórios com múltiplos derives possíveis (EWALD, 1991, p. 90).

Como um operador semiótico a serviço de formações sociais determinadas, o capital assume a regulagem e a sobrecodificação das relações de poder próprias às sociedades contemporâneas. Para manter sua reprodução, o capitalismo é obrigado a construir e impor seus próprios modelos de desejo, produzindo um ‘inconsciente maquínico’ (GUATTARI, 1988) que se expande muito além dos limites do inconsciente psicanalítico como dispositivo intrapsíquico. A mídia, a publicidade e os equipamentos coletivos reportam-se incessantemente às técnicas de recentralização do inconsciente no sujeito individuado, mas produzem, de fato, um ‘inconsciente maquínico’ que, além de abranger as individualidades, também produz intensamente as forças sociais e as realidades históricas. Na mesma perspectiva teórica, é o que aponta Pasqualino Magnavita ao discutir – no trabalho coletivo Comunicação e Produção da Diferença [‘Comunicação e Produção da Diferença’ é o título do trabalho coletivo apresentado no III Colóquio Multitemático em Comunicação (Multicom), evento componente do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação por AGUIAR, ELHAJJI, MAGNAVITA e SCHAUN (2008)] – como os processos midiáticos são dominantes e responsáveis pela construção de subjetividades de multidões e países, sob o império do marketing.

Os referidos conceituadores do marketing, com as ilusões e as alegrias que acreditam criarem voltadas para mercado, insistem em evidenciar, numa apropriação indevida, o conceito de Diferença dos produtos, e isso, contando com o potencial da informação e da comunicação nos processos midiáticos. Estes funcionam como catalizadores e promotores do consumo e vêm contribuindo e estimulando um ‘diferente’ e sutil processo de dominação social, dificultando, assim, a emergência de uma nova visão de mundo, uma nova ética, um devir-outro, uma Diferença de natureza nos processos sociais (MAGNAVITA, 2008, p. 4).

De outro modo, o ‘inconsciente maquínico’ também pode reterritorializar novas formas de singularidades. São ‘fluxos esquizo’ que abrem as possibilidades de novos agenciamentos de enunciação: simultaneidade de sujeito, objeto e meio de expressão, ruptura da tripartição entre o campo da realidade, campo da representação e o campo da subjetividade. Os agenciamentos coletivos de enunciação produzem seus próprios meios de expressão, pois trabalham simultaneamente os fluxos semióticos, os fluxos materiais e os fluxos sociais. Por não coincidirem com as individualidades biológicas, os agenciamentos coletivos de enunciação possuem um caráter diferente de uma enunciação individuada, instância reificadora da significação dominante. A enunciação maquínica circunscreve grupos-sujeitos que atravessam ordens diferentes, possibilitando a proliferação de um conjunto de máquinas desejantes, produções singulares e heterogêneas: os novos movimentos sociais. ‘Só um grupo-sujeito pode trabalhar fluxos semióticos, quebrar as significações, abrir a linguagem para outros desejos e forjar outras realidades’ (GUATTARI, 1981, p. 179).

A emergência das lutas pela afirmação das novas subjetividades e o fim dos projetos totalizantes revolucionários são alguns dos sintomas da perda dos pressupostos éticos-políticos referenciais das democracias tipicamente modernas. A pós-modernidade defronta-se com a construção do processo histórico no plano da imanência, no qual não há mais origem ou finalidade que possam dar conta do tempo presente – de responder às nossas questões do presente.

Considerações finais

O processo de globalização veio consolidar o capitalismo mundial integrado, que tende cada vez mais a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade, especialmente pelo controle que exerce sobre a mídia, a publicidade e as sondagens de opinião. Na pós-modernidade, o capitalismo se sustenta sobre diversos instrumentos, agrupados principalmente em quatro regimes semióticos: econômico, jurídico, técnico-científico e de subjetivação, sendo esse centralizado nas máquinas midiáticas e, os demais, em outras máquinas, tais como aquelas relativas à arquitetura, ao urbanismo e aos equipamentos coletivos.

A articulação ético-estético promovida pelo dispositivo da ecologia do virtual, que tem entre suas estratégias a comunicação ciberativista e a apropriação das máquinas técnicas pelos grupos-sujeitos, nos permite pensar as implicações de uma perspectiva ecosófica sobre a concepção da subjetividade. Se, por um lado, a comunicação de massa consolidou-se como campo político hegemônico da Modernidade, por funcionar como máquina de produção de subjetividades moduladas pelo capitalismo, por outro, uma das tarefas do dispositivo da ecologia do virtual consiste em fazer atravessar a sociedade capitalista da era da mídia para uma era pós-mídia, na qual os grupos-sujeito serão capazes de uma reapropriação das novas tecnologias de informação e comunicação para geri-las em um processo de singularização. Tarefa para o pensamento no século 21: produzir linhas de rupturas no projeto de uniformização midiática, reinventando a relação com o corpo, o tempo e os espaços da vida cotidiana.

As problemáticas produzidas pelos grupos culturais periféricos – dentre os quais, a questão das estratégias comunicacionais voltadas para uma ecologia do virtual – resultam da ultrapassagem dos antagonismos de classe do século 19 com seus campos homogêneos e bipolarizados de subjetividade para o contexto contemporâneo das multiplicidades, de proliferação de antagonismos, dos paradoxos, de rupturas, descentramentos e processos de singularização. Coube às primeiras formas de sociedade industrial serializar a subjetividade das classes trabalhadoras. A solidez da consciência de classe do operariado desmanchou-se no decorrer da segunda metade do século 20, quando a sedução da máquina midiática diluiu as resistências aos valores unidimensionalizantes do capital e produziu um difuso sentimento de pertinência social, que acabou descontraindo as polarizações modernas. Já na pós-modernidade, o capitalismo global potencializa a produção de subjetividades para serem colocadas a serviço da nova ordem social: depois do mapeamento apontado por Guattari (1990) – uma subjetividade serial para as classes assalariadas; uma outra subjetividade do padrão elitista, às classes dirigentes – podemos seguir Barber (2003) e visualizar, entre tantos, mais um antagonismo (o autor denomina bipolarização) pós-moderna. De um lado, as forças reterritorializadas de um tribalismo desagregador e arcaico – o processo de jihadização das identidades locais; do outro, as forças desterritorializadas da homogeneização das tecno-corporações – o processo mcdonização das identidades globais. O ponto de convergência entre ambas é a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação, mas com modulações e objetivos diferenciados.

O ciberativismo político dos grupos periféricos, que se apropriam das novas tecnologias de informação para construir comunidades virtuais no ciberespaço da rede mundial de computadores e para produzir objetos culturais com softwares livres e kits multimídia, aponta para a emergência de inovadoras potências na cibercultura. Entretanto, é preciso fazer a distinção entre os agregados imaginários de massa dos agenciamentos coletivos de enunciação, opondo os mecanismos de repetição vazia aos mecanismos vivos ‘autopoiéticos’ (VARELA, 1989). A perspectiva de uma ecologia do virtual pode engendrar novos territórios existenciais – uma galáxia dos híbridos glocais, dentre os quais, podemos exemplificar com o Movimento Enraizados –, que rompe com a visão reducionista correlativa ao primado da informação como trânsito incessante nos sistemas midiáticos e informáticos globais.

Ao discutir as alternativas dentro do Império e a constituição política do presente, Hardt e Negri destacam que um discurso político – em qualquer forma de manifestação – deve se propor a preencher a função de um ‘desejo imanente que organize a multidão’ (HARDT e NEGRI, 2001, p. 84). Não há, nesta proposta, qualquer determinismo ou utopia, pois o importante é estabelecer um contrapoder radical que esteja derivado das práticas discursivas das multidões [embora Hardt e Negri utilizem o termo ‘multidão’, na perspectiva teórica discutida nesse texto, decidimos introduzir a expressão ‘as multidões’, pois se coaduna mais com os conceitos de multiplicidades, heterogêneses e singularidades]; ou seja, na criação, na produção e no poder das multidões. A esta perspectiva, denominam de teleologia materialista, resgatando a noção spinoziana de que o desejo profético se torna mais poderoso se enraizado na multidão. Ressaltam que o discurso político revolucionário pode ser reativado na pós-modernidade se ganhar uma nova consistência: a potência das multidões para destruir, com sua própria força produtiva, a ‘ordem parasitária de comando pós-moderno’ (idem).

A alternativa dentro do Império é a multidão de subjetividades plurais – isto é, as multidões – que se modulam em processos de hibridização e através de acontecimentos insurrecionais, como a apropriação das máquinas técnicas de informação e a expropriação criativa de domínios tecnológicos. No dispositivo comunicacional da ecologia do virtual, a internet, os softwares [para autores como Lev Manovich (2008), a cultura digital é comandada pelos softwares] e os kits multimídias emergem como condição de possibilidade para a inovação política através da produção de vídeos e CD musicais pelos movimentos culturais que se deslocam pela periferia da indústria cultural global.

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Respectivamente, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e coordenador do curso de Jornalismo do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professora adjunta e coordenadora de Pesquisa do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie