Uma parte expressiva das nações periféricas do capitalismo, após quase três décadas de implantação de profundas reformas associadas à abertura e à integração de suas economias ao mercado global, apresenta aumento na concentração de renda e na exclusão social de grandes contingentes populacionais urbanos, com o crescimento do desemprego e do trabalho informal. Conseqüentemente, modificações radicais atingem o modo de vida de boa parte dos cidadãos, alterando comportamentos, relações de emprego e rotinas de trabalho. Na tentativa de se traçar o cenário da sociedade contemporânea, pode-se acrescentar a estes problemas a interferência de uma mídia global sustentada por corporações e transnacionais, que valoriza e estimula padrões de consumo que poucos podem ter, contribuindo para estimular revolta e violência nos bairros periféricos das grandes metrópoles, o que tem mantido as sociedades acuadas, diante do aumento da criminalidade. Por outro lado, quando a esfera do econômico supera a política, Estados e instituições civis perdem legitimidade e capacidade de mediar estas tensões, como ocorre atualmente no Brasil, que convive com a descontrolada criminalidade urbana.
Para se encontrar explicações para o atual contexto, pode-se lançar mão das análises feitas pelo teórico Gilberto Dupas [DUPAS, Gilberto. Economia Global e Exclusão Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p.142-148.], para quem o capitalismo atual convive com duas dialéticas centrais: ‘concentração versus fragmentação’ e ‘exclusão versus inclusão’. De um lado, ‘a enorme escala de investimentos necessários à liderança tecnológica de produtos e processos continuará forçando um processo de concentração‘, que habilitará apenas a um conjunto restrito de centenas de empresas gigantes, líderes das principais cadeias de produção, decidir o que, como, quando, quanto e onde produzir os bens e os serviços (marcas e redes globais) utilizados pela sociedade contemporânea. ‘Ao mesmo tempo, elas estarão competindo por redução de preços e aumento da qualidade, em um jogo feroz por market share e acumulação’. Simultaneamente, explica Dupas, este processo radical em busca de eficiência e conquista de mercados força a criação de uma onda de fragmentação – terceirizações, franquias e informalização –, abrindo espaço para uma grande quantidade de empresas menores que alimentam a cadeia produtiva central, com custos mais baixos.
A outra contradição que alimenta o capitalismo contemporâneo, segundo Dupas, é a dialética ‘exclusão versus inclusão’. Diz o teórico que, apesar do desemprego estrutural crescente, isto é, a incapacidade progressiva de geração de empregos formais em quantidade ou qualidade adequadas, …
‘…. o capitalismo atual tem garantido sua dinâmica, também, porque a queda do preço dos produtos globais incorpora continuamente mercados (inclusão) que estavam à margem do consumo por falta de renda. É por isso que alguns dos maiores crescimentos de várias empresas globais de bens de consumo têm sido registrados nos países periféricos da Ásia e da América Latina, onde se concentra grande parte do mercado dos mais pobres.’
Simultaneamente, aqueles que não têm potencial de consumo (que acaba por superar a idéia de cidadania), acabam alijados do processo. Dentro deste novo contexto criado pela globalização é que se pretende refletir sobre comunicação popular e a importância dos movimentos sociais na conquista da cidadania. Entretanto, torna-se necessário, primeiro, redefinir conceitos como desenvolvimento e participação, dentro deste contexto globalizado. Jesus Martin-Barbero, em suas reflexões sobre o tema, deixa claro que ‘para se redefinir o conceito de desenvolvimento, é preciso, antes, centralizar a discussão ‘no fundamental, nas questões de fundo’, ou seja, é preciso que se analise as crises que transpassam as sociedades latino-americanas em duas direções: ‘a da economia (globalizada), que tem absorvido há décadas toda a dinâmica do desenvolvimento social, e a da cultura, pois só com esta conexão entre desenvolvimento e cultura pode-se buscar uma identidade cultural capaz de enfrentar a globalização.’ [BARBERO, Jesus Martin. A comunicação no projeto de uma nova cultura política. In:MELO, José Marques de. (org). Comunicação na América Latina – Desenvolvimento e Crise. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 83-98.]
O cerne da questão para Barbero está exatamente no desencontro, na falta de articulação entre desenvolvimento e participação popular. Ou seja, o desenvolvimento dos países latino-americanos se processa à margem dos sujeitos sociais e de sua variedade cultural, quando, ao contrário, o desenvolvimento deveria se processar em termos de ‘aprimoramento da qualidade de vida, da participação popular, da democratização cultural e da afirmação da soberania nacional’. [Ibidem, p. 88.]
Dentro da mesma temática, as reflexões da professora Cicília Peruzzo expõem, de forma clara, a desarticulação existente entre desenvolvimento e sociedade, quando ela afirma que ‘o povo não é convocado para participar no planejamento ou na tomada de decisões de seu país, ele só participa como contribuinte, por meio do pagamento dos vários impostos’, que lhe são impingidos. No projeto atual de desenvolvimento do país, ‘o homem é excluído, não participa do planejamento, nem da tomada de decisões e não é suficientemente informado’, ou seja, o homem se sujeita, abdica de seus direitos e perde a cidadania. É alienado do processo de desenvolvimento de seu país [PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Participação Popular: dos ‘fiscais de Sarney’ aos movimentos sociais. In:MELO, José Marques de (org). Comunicação na América Latina – Desenvolvimento e Crise. Campinas, SP: Papirus, p.131-138.].
Para se desenvolver melhor a reflexão de Peruzzo sobre o processo de alienação do povo brasileiro, pode-se recorrer a Marx [MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, E. Conceito marxista do homem. Rio: Zahar, 1970, p. 93.], para quem a alienação, que tem sua origem no processo de trabalho capitalista, se reproduz também em nível mais amplo, como no processo de cessão de direitos, manifestado, por exemplo, na participação das decisões e na gestão delas e no conjunto da sociedade. Para Marx, o processo de alienação se desenvolve em três fases: primeiro, na relação do trabalhador com o produto do seu trabalho como algo exterior a ele, como um objeto estranho que o domina. O trabalhador não dispõe do produto do seu trabalho: fabrica o carro, mas não tem carro; constrói o prédio, mas nele não mora. Segundo, na relação do trabalhador com sua própria atividade. O trabalho é exteriorizado dele porque não trabalha para si, mas para outro, porque no trabalho ele não se pertence, mas pertence a outro, enquanto mercadoria. Terceiro, a transformação do caráter da espécie humana, que, de atividade livre e consciente, passa a ser atividade como meio de subsistência física e individual. O homem se submete, cede o produto do seu trabalho, cede a si mesmo e cede o caráter de sua espécie, o que enfraquece o desenvolvimento do homem e da espécie humana.
Interpretando as palavras de Marx, Peruzzo acrescenta que ‘embora impregnado da alienação, ou seja, envolto na cessão de si mesmo e do caráter de sua espécie, o homem vive carências (fome, perda da saúde), mas vê a opulência de alguns e outras contradições’. E é esta alienação, diz a autora, que faz germinar, no trabalhador, a sua negação à participação. Assim, torna-se visível a não participação da classe trabalhadora na riqueza produzida pela sociedade. Entretanto, como afirma Peruzzo em seus estudos sobre movimentos populares, obstruídos os canais tradicionais de participação, o povo inventa outros e é dessa dinâmica de superação da negação que emergem os movimentos sociais. São movimentos dinâmicos, criativos, que visam superar a passividade: é a resistência popular, mesmo diante da globalização. ‘Submetido a um processo de pobreza, o povo se agrupa para denunciar, resistir, pressionar e reivindicar o acesso à riqueza através de melhores condições de vida e o direito de participação política’. É nos movimentos sociais, que se espalham cada vez mais pelo Brasil, que a classe subalterna se supera, para praticar a cidadania. Os movimentos sociais tornam-se, assim, a ponte para que a resistência popular se consagre, e a comunicação construída e orquestrada pelas classes menos favorecidas é um fator primordial.
Para Brunner [BRUNNER, José Joaquín. La cultura como objeto de políticas. Santiago: Flacso, 1985, p. 3-37.], que pesquisa as relações entre desenvolvimento, cultura e comunicação, as barreiras começaram a ser quebradas, na América Latina, no final dos anos 1970. O teórico enumera três fatos determinantes que levaram às primeiras conquistas alcançadas na área da comunicação popular: primeiro, a experiência por que passaram países sob regimes autoritários, experiência esta que levou à busca de espaços alternativos, como núcleos de resistência e oposição, para driblar a censura e o arbítrio, e cita como novos espaços as comunidades cristãs, os movimentos populares e os grupos de direitos humanos; segundo, de que mesmo o autoritarismo mais brutal não se esgota nas medidas de força, nem responde unicamente aos interesses do capital, mas há sempre o intento de trocar o sentido da convivência social, modificando o imaginário e os sistemas de símbolos. E, terceiro, o fato de que a cultura, diante da dinâmica da escolarização e dos meios massivos, coloca-se no centro do cenário político e social.
Para Brunner, portanto, estes fatos redefinem tanto o sentido da cultura como o da política, onde a problemática da comunicação entra não somente a título temático e quantitativo (interesses econômicos que movem as empresas de comunicação), como também qualitativo. É no cruzamento dessas linhas de renovação – a que vem inscrever a questão cultural no interior do político e a comunicação no interior da cultura – ‘que aparece, em toda sua especificidade, o desafio que representa a indústria cultural’.
Para Brunner não faz sentido políticas que prescindam do que se passa na cultura, daquilo que se passa nas massas, na indústria e nos meios massivos de comunicação. ‘Não podem ser políticas à parte, posto que aquilo que se passa culturalmente com as massas é fundamental para a democracia, se é que democracia tem ainda algo que ver com o povo’.
Cotidiano e consumo, sob novos prismas
Barbero propõe uma nova relação entre desenvolvimento e participação a partir de mediações entre cultura e política em dois âmbitos: primeiro, o do cotidiano e o do consumo, como espaços de atividade social não meramente apolítica, nem reprodutiva; segundo, o dos movimentos urbanos como lugar de uma profunda transformação da política e da cultura. Na mesma linha de pensamento, Nestor Garcia Canclini [CANCLINI, Nestor Garcia. Gramsci com Bourdieu: hegemonia, consumo y nuevas formas de organización popular. Nueva Sociedad, n.71, p. 74] construiu uma análise integral do consumo (saindo do terreno das pesquisas de mercado e da compulsão consumista), que é visto pelo teórico como o conjunto dos processos sociais e de apropriação dos produtos. Nesta afirmativa, Canclini vai de encontro à reclassificação de desenvolvimento dada por Barbero (Barbero redefine desenvolvimento, em termos de aprimoramento da qualidade de vida e participação popular). Para Canclini, o espaço da reflexão sobre consumo é o espaço das práticas cotidianas enquanto lugar de interiorização muda da desigualdade social:
‘o consumo não é somente reprodução de forças, mas produção de sentido; o lugar de uma luta não se esgota na possessão de objetos, mas passa ainda decisivamente pelos usos que lhe dão forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação, que provêm das diferentes competências culturais.’ [Ibidem, p. 79.]
Para complementar a reflexão de Canclini, pode-se utilizar a afirmação de Barbero, quando este diz que a prova de significação social desse novo terreno que se abre, a partir da cotidianidade, é a relevância política que têm hoje os novos conflitos sociais, contra as formas de poder que, discriminando ou reprimindo, atravessam a vida cotidiana e as lutas pela apropriação de bens e serviços. Afirma, ainda, que a articulação entre cotidiano e consumo se faz clara nos movimentos sociais urbanos. ‘O espaço social é onde melhor se expressa o sentido da dinâmica cultural, desde o popular da forma aos processos coletivos de comunicação, principalmente com relação aos movimentos que partem dos bairros’. Pois é a partir do quarteirão do bairro que se vislumbra ‘o trajeto que atravessa e enlaça hoje o campo da comunicação com a história cultural e com o surgimento de um senso novo no modo de articular política e cultura’.
Barbero posiciona-se, claramente, no campo teórico, quando afirma que a cultura política feita nos bairros não é a dos ‘trabalhadores’, ou seja, estes movimentos não têm a visão de mundo questionadora dos anarquistas ou socialistas, mas ‘uma cultura mais reformista que olha a sociedade como algo que poderia ser melhorado’, uma sociedade que, sem ser radicalmente distinta da existente, pode chegar a ser ‘melhor organizada, mais justa.’ Donde conclui-se que ele rejeita uma revolução da classe trabalhadora visando a mudança social, mas propõe uma ‘uma organização mais justa’ na sociedade existente. Ele cita, ainda, exemplificando suas tese, como palco desta nova situação, a corrente migratória que atinge as grandes cidades latino-americanas, descaracterizando as cidades em ‘sua geografia e sua moral’.
‘As situações de fato, ou seja, invasões de terreno na periferia para morar, e das ruas do centro para fazer algo que permita sobreviver geram novas fontes de direito reconhecidas ou permitidas por um estado, por sua vez, descaracterizado’. [Op. cit., p. 83-98.]
Nas situações vividas pelos imigrantes, a solidariedade cria laços sociais no novo meio, que são transformados em centros, sociedades e núcleos, que oferecem clima capaz de congregá-los ao dar-lhes um mínimo de representação frente às autoridades, frente ao Estado. ‘São associações que não se esgotam no bairro e que, em muitos casos, articulam a percepção e a solução dos problemas do bairro a um projeto mais amplo e global.’ Para o autor, a luta das populações por habitação, serviços de energia elétrica e de água, transporte mínimo e saúde ‘se inscrevem em uma realidade mais integral, a da luta pela identidade cultural’.
Para o teórico, em uma sociedade tão pouco institucionalizada, as associações populares, desde organizações até centros de educação e comunicação, ‘vão construindo um tecido social que vai desenvolvendo uma institucionalidade nova, fortalecendo a sociedade civil e, com isso, cria novas relações sociais e de sujeitos coletivos ativos na vida do país’.
Diante de um mercado de trabalho rotativo e provisório, que dificulta a criação de laços permanentes, é no bairro que as classes populares podem estabelecer solidariedade duradoura e personalizada.
‘Nesse espaço, ficar sem trabalho não significa perder a identidade, isto é, deixar de ser filho de fulano ou pai de beltrano. E frente ao que sucede nos bairros residenciais de classes altas e médias altas, onde as relações se estabelecem mais na base dos laços profissionais do que de vizinhança, pertencer ao bairro para as classes populares significa poder ser reconhecido em qualquer circunstância.’ [Op. Cit.,83-98.]
O bairro é, ainda, na visão de Barbeiro, ‘o lugar de reconhecimento, que põe à mostra a produção simbólica dos setores populares da cidade, não só na religiosidade festiva, mas também na expressividade estética’. Pode-se considerar boa mostra disso os grafites, as decorações dos ônibus, o arremate das fachadas, a cenografia das vitrines nos armazéns populares, que expressam a arte popular urbana não só nas periferias da cidade, mas também, no caso de São Paulo, no área central. Outro exemplo da expressão estética popular pode ser encontrado na música, em processo de reelaboração, que se torna referencialmente tão política quanto os grafites.
Em busca de conceitos
A discussão sobre a importância e o papel social que podem ser cumpridos pelo jornalismo comunitário exige também um esforço acadêmico capaz de encontrar conceitos que possam auxiliar na árdua tarefa de oferecer elementos definidores do segmento e da prática. É fundamental que saibamos, afinal, de quem exatamente estamos falando, já que, não raro, o jornalismo comunitário acaba sendo confundido com o popular, o de serviços, o ligado a movimentos sociais, o alternativo, o de bairro. De certa forma, ele dialoga com todas essas outras instâncias – mas, é importante destacar, trilha também caminhos próprios e específicos, principalmente quando o contexto histórico que se impõe hegemonicamente é o da globalização neoliberal e o das grandes corporações midiáticas, como já vimos acima. O que se pretende neste trabalho é atualizar a discussão e identificar algumas características que possam ser consideradas marcadoras do jornalismo comunitário, sem, no entanto, apresentar como objetivo a imposição de fórmulas engessadas ou definitivas. Não é nossa intenção sacar coelhos mágicos da cartola, muito menos esgotar o assunto.
Nesse esforço conceitual, contribuições de grande valia são oferecidas por três autores: Felipe Pena, José Marques de Melo e Pedro Celso Campos. Para o primeiro,
‘O jornalismo comunitário atende às demandas da cidadania e serve como instrumento de mobilização social. (…) Outra característica importante é o completo afastamento do ranço etnocêntrico. O jornalista de um veículo comunitário deve enxergar com os olhos da comunidade. Mesmo que já pertença a ela, deve fazer um esforço no sentido de verificar uma real apropriação dos processos de mediação pelo grupo’. [PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo. São Paulo, Contexto, 2005. p. 185/187]
Em obra recentemente lançada, Marques de Melo complementa esse raciocínio ao afirmar que
‘(…) uma imprensa só pode ser considerada comunitária quando se estrutura e funciona como meio de comunicação autêntico de uma comunidade. Isto significa dizer: produzido pela e para a comunidade’. [DE MELO, José Marques. Teoria do Jornalismo – identidades brasileiras. São Paulo, Paulus, 2006. p. 126]
Entrevistado pelos autores deste trabalho, Campos afirma que as novas tecnologias podem alterar os rumos e a ação, mas não têm o poder de eliminar os interesses comunitários. Portanto, a comunicação que dá vazão a essas demandas continua a existir, como instrumento de organização e de resistência, impondo-se como garantia de espaço e de voz para os excluídos.
‘a proximidade entre as pessoas é a principal característica do meio comunitário. As pessoas se conhecem e se reconhecem (como dizia Paulo Freire) nos seus problemas, angústias, alegrias e ritos cotidianos. Essa reconhecibilidade também exige uma linguagem referenciada aos costumes do grupo social. É uma linguagem coloquial, de fácil entendimento, reconhecível em suas gírias e modismos. Hoje, ou em qualquer época, jornalismo comunitário é uma atividade de comunicação originada na comunidade, administrada pela comunidade e dirigida à comunidade’. [CAMPOS, Pedro Celso. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em entrevista aos autores.]
As três referências teóricas nos dão as pistas para identificar pelo menos cinco características marcadoras do jornalismo comunitário, responsáveis por garantir ao segmento personalidade, autenticidade e registros muito nítidos de uma carga genética (‘DNA’) exclusiva: a) valorização da realidade local; b) participação da comunidade durante todo o processo de produção; c) consagração das idéias da mobilização e da transformação; d) resgate de um viés pedagógico e educativo; e) articulação com a produção independente e de resistência. Vale a pena pensar com um pouco mais de profundidade sobre cada um dos itens.
No jornalismo comunitário, o local é quem dá as cartas – ou melhor, as pautas. Ele assume com ênfase e sem constrangimentos o fato de procurar dar conta de uma área restrita e, nesse sentido, e em comparação com os chamados veículos da grande imprensa, não se importa em ser pequeno, de conversar com grupos limitados, em termos quantitativos. Essa, aliás, é vista como uma de suas grandes virtudes qualitativas, pois o fato de aproximar-se de seu público permite que dialogue com ele mais com profundidade e intensidade. Essa relação de proximidade, embora se manifeste essencialmente no plano geográfico – assuntos que estão mais perto da região onde vive a comunidade tendem a ter prioridade no noticiário –, pode também se revelar por meio daquilo que chamamos de ‘proximidade por demandas ou expectativas’. Exemplificando: projetos culturais e sociais desenvolvidos na comunidade terão destaque nos veículos por ela produzidos; o mesmo raciocínio vale para cenários de violência e exclusão, para problemas como o desemprego e a falta de escolas ou de postos de saúde.
Aqui, prevalece a lógica geográfica – e, sem dúvidas, ela ocupa a maior parte do noticiário. Na outra ponta, no entanto, é aceitável – e desejável – a publicação de uma reportagem que discuta, por exemplo, a nacionalização das reservas de gás na Bolívia, desde que se consiga estabelecer relações claras entre o tema mais amplo e os impactos específicos que terá sobre aquela comunidade em particular (nesse caso, o possível aumento do gás de cozinha, por exemplo). Dessa forma, o geral funciona como força de atração e estimula o debate, que deve sempre estar focado nos desdobramentos, conseqüências e repercussões sobre o local. A narrativa precisa viabilizar estratégias capazes de criar vínculos, identidades e o sentimento do pertence, permitindo que o público, ao travar contato com a notícia te aspecto mais amplo, possa afirmar ‘eu me reconheço nessa notícia, ela faz parte de meu cotidiano, ainda que não tenha acontecido aqui onde moro’.
Uma caracterização importante é o acentuado uso didático, diferindo bastante da concepção usual que se tem de notícia, por exemplo. O destaque aos assuntos é dado em função da sua importância para o grupo social, numa relação direta com o cotidiano das pessoas. [PAIVA, Raquel. O espírito comum – Comunidade, mídia e globalismo. Rio de Janeiro, Mauad, 2003. p. 139]
A grande mídia chega para todo mundo, mas ela não tem a mobilidade de chegar falando a linguagem local, ela não sabe o nome das pessoas, ela não conhece os costumes. Ela apenas faz um recorte da realidade, mas não dá conta de passar toda a realidade com sua cor local. Só o comunitário pode fazer isso, porque está inserido fortemente na comunidade. [CAMPOS, Pedro Celso. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em entrevista aos autores.]
Em relação ao processo de produção, o jornalismo comunitário de certa forma quebra a lógica que garante aos pequenos e poderosos grupos o privilégio da emissão, e às grandes massas a tarefa da recepção. De forma direta e participativa, ou por meio de conselhos e de representantes, a comunidade tem o dever e a prerrogativa de atuar durante todo o fluxo produtivo, da discussão das pautas à distribuição ou veiculação das notícias, responsabilizando-se inclusive por estimular o debate sobre aquilo que já foi feito, para que se possa apontar erros e virtudes e melhorar em oportunidades seguintes. O público deixa de ser visto como mero depositário de informações escolhidas e traduzidas por um grupo de iluminados e esclarecidos, e passa, democraticamente, a ser encarado como cidadão protagonista, ativo, pensante e atuante. A hierarquia de certa forma se rompe, e o diálogo se manifesta no sentido horizontal (com) e não na direção diagonal, de cima para baixo (para). Efetiva-se de forma mais significativa, portanto, o fenômeno da comunicação. O jogo do ‘eu falo, vocês escutam’ é substituído pelo do ‘nós falamos, nós escutamos’. As ações são compartilhadas – bem como as responsabilidades.
Como a participação das pessoas comuns está garantida, o jornalismo produzido passa a ser encarado como um patrimônio da comunidade, estimulando mobilizações e lutas coletivas capazes de produzir transformações. Note-se: não estamos falando de uma prática sectária e seduzida por palanques e holofotes, mas de discursos e narrativas competentes o suficiente para estimular a reflexão crítica sobre os mais diversos assuntos, transformando informação em conhecimento e garantindo ao cidadão – e não ao consumidor – o direito de ampliar seu repertório intelectual e de participar com consistência dos debates que se estabelecem na arena pública. Trata-se de um jornalismo que se propõe a dialogar e a formar a cidadania, para que esta, ciente de seus direitos, possa lutar por eles.
Para evitar confusões ou incompreensões: não encaramos ou imaginamos o jornalismo como a única ferramenta capaz de agir nesse sentido, uma espécie de milagreiro salvador da pátria, de dono absoluto das verdades, nem pretendemos que a atividade deva se responsabilizar por tentar preencher todas as lacunas de formação das comunidades. Mas defendemos que a prática tem uma função social importantíssima a cumprir: democratizar a informação e incentivar as ações da cidadania. Ao realçar o seu valor de uso, em detrimento do valor de troca (como em geral agem as grandes empresas jornalísticas), o jornalismo comunitário resgata as origens modernas da profissão, nascida justamente para romper os diques de segredos da Idade Média, como bem aponta Ciro Marcondes Filho, em ‘A Saga dos Cães Perdidos’. Trata-se de uma situação infelizmente esquecida e/ou colocada de lado pelos conglomerados midiáticos contemporâneos, ávidos pelo lucro e pelo ‘furo’. Sem pretender inventar a roda, o comunitário estreita seus laços de identidade com a educação e, ao criar espaços para que o conhecimento seja socializado e compartilhado, contribui pedagogicamente com a formação de sujeitos críticos e livres, capazes de fazer opções e de decidir seus destinos. E esse conhecimento não é estanque ou passivo – pelo contrário, consagra-se como motivador e mobilizador, como defendia Paulo Freire.
‘É possível considerar, em relação ao tratamento dado à informação, o desenho de um esquema que remeta o jornalismo aos seus primórdios, quando seu exercício tentava ser sinônimo de justiça social. (…) O que permite conceituar um veículo como comunitário não é sua capacidade de prestação de serviço, e sim sua proposta social, seu objetivo claro de mobilização vinculado ao exercício da cidadania’. [PAIVA, Raquel. Obra citada. p. 140]
Finalmente, o jornalismo comunitário pode ser inscrito na galeria das práticas alternativas, entendida aqui como uma aE…ÐñëGEThttp://images.ig.com.br/homev8/v2/hrdo Kucinski em ‘Jornalistas e Revolucionários’. Significa dizer que abre espaço para temas não costumeiramente tratados pela grande imprensa (uma outra agenda pública de discussões); significa ainda dizer que, mesmo que os assuntos sejam também abordados pelos chamados jornalões, certamente receberão, dos veículos comunitários, outros enfoques e tratamentos, voltados para as demandas e realidades das populações menos favorecidas (um olhar ‘dos de baixo’). Cria-se, assim, a resistência e o contraponto, elementos de garantia da pluralidade, e tão necessários em uma sociedade que se pretende democrática. Como reforça Campos, ‘a principal virtude é dar voz a quem geralmente não tem voz’.
Para finalizar essa breve busca conceitual, é fundamental lembrar que, para o jornalista, descortina-se, no segmento comunitário,
a função do comunicador social, como profissional que pode estar habilitado a trabalhar com esse novo desenho social. Muito mais que um publicitário, jornalista ou radialista, esse profissional deve ser alertado para o seu papel de agente social, aquele que primeiramente é capaz de promover e de potencializar a articulação comunitária, seja via instituições (desde prefeituras, órgãos municipais e organismos não-governamentais) ou por meio da evocação de uma comunidade determinada. A função desse profissional, considerado freqüentemente como agente externo, é provocar a participação. [PAIVA, Raquel. Obra citada. p. 143]
Os desafios
Apesar da existência das organizações populares constituídas hoje no Brasil, Peruzzo lembra que as classes subalternas não têm ainda o seu projeto de sociedade, ‘mas vislumbra-se que este pode vir a ser construído’. Para ela, uma nova situação vem sendo criada: por um lado, organizações populares interferem, provocam mudanças nas condições de vida das classes subalternas (associações de moradores, grupos de mulheres); por outro, está sendo desenvolvida uma prática participativa. Nem todas essas dimensões do participar se dão em todas organizações populares e ao mesmo tempo, nem de forma cristalina. ‘Às vezes, apesar de todo um processo decisório democrático, certas atitudes de lideranças as contradizem’. Ela dá o exemplo, que afirma ser comum nas periferias das grandes cidades, das lideranças populares que depois de muita discussão com os moradores decidem agir sozinhas, procurando diretores ou assessores das Prefeituras para resolver os problemas locais, ao invés de contar com a participação de todo grupo. ‘O agir sozinho, além de impedir a ação coletiva, que é educadora (acesso a informações, tomada de consciência, favorece a organização, a mobilização), contribui para o controle das informações, podendo gerar processos de dependência e até de cooptação’.
Para Peruzzo, a comunicação popular participativa se desenvolve no conjunto do processo de consciência, organização e ação, de acordo com as necessidades dos movimentos, respeitada sua própria dinâmica. ‘A comunicação popular deixa de se caracterizar simplesmente como atividade fim, ou seja, informar e mobilizar, e adquire características também de atividade meio, isto é, a produção e difusão enquanto processo educativo e de criação coletiva.’ Isto porque implica o conhecimento de técnicas, conhecimento dos fatos que ocorrem e suas implicações, partilha do poder de expressar o conteúdo, além de toda uma metodologia de trabalho participativo, entre vários outros aspectos. O fazer um jornalzinho, por exemplo, desenvolve o domínio de conhecimentos antes reservados a uns poucos, ocorrendo, portanto, a socialização de conhecimentos. ‘Isto diz respeito a uma nova metodologia da comunicação popular, que tem como objetivo que o outro se torne independente’.
Essas são demonstrações de que um novo projeto de sociedade pode estar sendo gestado. Entretanto, os desafios são muitos e dentre eles estes são os três principais, na visão de Peruzzo: primeiro, o desafio de disseminar por todos os movimentos sociais a prática participativa da comunicação, que possibilita um processo educativo, que poderá desembocar na gestão dos grandes meios de comunicação, cuja socialização já é defendida no conjunto da sociedade; o segundo desafio é o transcender da comunicação popular de exclusiva da organização tópica para outros movimentos sociais e o conjunto da sociedade, construindo assim a articulação e nova hegemonia. E, terceiro, que a prática participativa em nível do micro, ou seja, nas organizações populares, transcenda para o macro, para que haja a participação na gestão em nível municipal, estadual e nacional de todas as coisas que afetam a sociedade, da fábrica ao sistema escolar e à sociedade côo um todo.
‘É a prática nova da democracia que gera novo homem e nova sociedade. É o homem com o mundo e não no mundo, no dizer de Paulo Freire. O desenvolvimento comunitário irá se constituindo no bojo da gestação e da plenitude de um novo projeto de sociedade: projeto popular desalienante e superador da divisão em classes’. [Op.Cit., p.131-138]
Que assim seja!
Referências bibliográficas
BARBERO, Jesus Martin. A Comunicação no projeto de uma nova cultura política. In: MELLO, José Marques de (org. Comunicação na América Latina – Desenvolvimento e Crise). Campinas, SP: Papirus, 1989.
BRUNNER, José Joaquin. La cultura como objeto de políticas. Santiago: Flacso, 1985.
CAMPOS, Pedro Celso. Professor do curso de Jornalismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru). Entrevista aos autores. Dia 20 de setembro de 2006. Por e-mail.
CANCLINI, Nestor Garcia. Gramsci com Bourdieu: hegemonia, consumo y nuevas formas de organización popular. Nueva Sociedad, n. 71, p. 74.
DE MELO, José Marques. Teoria do jornalismo – Identidades brasileiras. São Paulo, Paulus, 2006.
DUPAS, Gilberto. Economia Global e Exclusão Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: Fromm, E. Conceito marxista do homem. Rio: Zahar, 1970.
PAIVA, Raquel. O espírito comum – Comunidade, mídia e globalismo. Rio de Janeiro, Mauad, 2003.
PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo, Contexto, 2005.
PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Participação Popular: dos ‘fiscais de Sarney’ aos movimentos sociais. In: MELO, José Marques de (org.) Comunicação na América Latina – Desenvolvimento e Crise. Campinas, SP: Papirus, 1989.