Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo demanda qualificação

Vamos falar de diplomas. Ou melhor, muito melhor, de jornalismo.

É dado que o STF decidiu extinguir no dia 17/6, por 8 votos a 1 (do ministro Marco Aurélio), a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista. Atendeu ao pedido, assim, do Ministério Público Federal (?) e do Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (!) contra acórdão do TRF-3, que em tempos já longínquos reafirmou a necessidade do diploma.

O ponto central do voto do relator, Gilmar Mendes, foi a liberdade de expressão. Considerou, com seus colegas, que a exigência de diploma cerceia a liberdade de expressão.

‘O jornalismo e a liberdade de expressão são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensados e tratados de forma separada.’

Perfeito, mas falacioso. Há que se diferenciar liberdade de expressão de exercício profissional do jornalismo – reportagem diária, sete horas por dia (vá lá, no padrão legal), perguntando, escutando, tramando nexos e mediando vozes. Não há impedimento hoje à liberdade de expressão. Houve-o na ditadura. É falacioso propor que a impossibilidade de um cidadão qualquer de ganhar a vida como repórter é obstáculo à sua liberdade de expressão. Esta é garantida na Constituição, e o cidadão a exerce em todo tipo de foro – não só nos jornais – e, claro, é bem-vindo a exercê-la também nos meios impressos e eletrônicos, na forma de cartas, artigos, análises, resenhas, colunas de opinião, enquetes. Médicos, advogados e economistas, para ficar nas especialidades mais citadas, expressam diariamente suas opiniões na mídia. Arquitetos, ‘fashionistas’, paisagistas e cozinheiros também.

Inventividade metafórica

Comparar o Brasil de 1964 com o atual, sob o prisma do cerceamento à liberdade de expressão, torna-se ainda mais anacrônico em tempos de internet.

Mas prossigamos. O segundo argumento forte de Mendes diz respeito à qualificação. Cita o artigo 5º, inciso 13 da Constituição, que prega o livre exercício de qualquer profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais previstas em lei. Concordamos.

Porém, acrescenta que a qualificação – prestemos atenção – só pode ser exigida nos casos em que a falta do diploma é um risco de dano à sociedade. Exemplos citados? Medicina, Engenharia e Advocacia. (Médicos, engenheiros e advogados, durmam tranquilos.) E conclui, com chave de ouro (de tolo): ‘Um excelente chefe de cozinha certamente poderá ser formado numa faculdade de Culinária, o que não legitima o Estado a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área.’

Ora, o que diz Mendes é uma bobagem monumental. E nem só pela inventividade metafórica – bem ao gosto do atual governo –, quando compara jornalistas a cozinheiros, motoristas e outras atividades curiosas.

Fritar ovos e lapidar talentos

Erra no acerto. De fato, é a demanda por qualificação que resguarda profissões do livre-exercício, segundo a Constituição. Impossível concordar, contudo (embora outros ministros e olimpianos do jornalismo me desmintam), que o jornalismo é atividade em que a qualificação é desnecessária. Não há risco à sociedade, diz Mendes. Não há? Maria Aparecida Shimada discordaria.

Aqui tocamos noutro ponto vital da questão. O debate em torno da obrigatoriedade do diploma não é – ou pelo menos não deveria ser – pautado pelo não-argumento da reserva de mercado. É tolice pensar que maus profissionais terão um brilhante futuro pela frente porque são detentores de diplomas cintilantes. Nem bem as redações absorvem, hoje, o exército anual de graduados. Mas o ponto não é esse. Não é por isso que se pautam os razoáveis da discussão. O diploma é preciso sob o prisma justo da qualificação. É precisamente porque a Constituição salvaguarda profissões que oferecem risco à sociedade, como o jornalismo (sim!), que a qualificação se faz premente.

Daí derivamos por uma tangente até tocar noutra esfera. A universidade. Os olimpianos gostam de se pensar como self made men, ou self made journalists, numa versão risível do sonho americano. Podem até ser. Mas a universidade não é o zumbi cambaleante que se quer fazer crer nesta questão. Ela é, pelo contrário, viva, vivíssima. Há quarenta anos, no caso da USP, vem produzindo massa crítica na área de comunicação. Busca, sim, qualificar o profissional – e não para exercer a técnica de fritar ovos perfeitos nem para lapidar o talento que vem de berço – outra vilania dos detratores do diploma.

O ‘repórter capivara’

A universidade é o foro para a qualificação que todos deveríamos almejar para os mediadores sociais – formação humanística, profundo senso de responsabilidade, ética, abertura e, por que não, técnica também, em último lugar, como o tijolo final que se assenta sobre os jovens. A técnica de escrever bem, concatenar ideias, respeitar os vários lados de uma notícia, estabelecer conexões, captar tendências. Necessário arremate, mas ainda assim pátina da formação que a antecede: teoria da comunicação, filosofia, sociologia, língua portuguesa, antropologia. Comunicação Social, na ainda necessária redundância. Esquecem-se os ministros que a formação em Jornalismo não é composta apenas dos tradicionais ‘laboratórios’ de prática jornalística. Nem, aliás, centram-se neles.

Então com o que as faculdades de Comunicação se preocupam? Uma falha de todos nós, jornalistas profissionais e acadêmicos/pesquisadores, está em não estabelecer uma ponte de diálogo que permita esse entendimento. Para além do estereótipo do jornalista ‘manipulador de consciências’ ou do acadêmico despassarado ‘que nunca pisou em redação’. Produz-se conhecimento de ambos os lados, mas essas esferas já não se tocam hoje – de há muito, em realidade.

O STF incorre no erro da apologia à técnica. Direito e Medicina, ora, são também técnicas. Mas são mais do que isso, como o Jornalismo. Incorre o STF na visão de que jornalismo é difusão: repassar informações de A para ABCD. É a apologia ao que nas Redações de antanho se chamava ‘repórter capivara’, aquele que vai à coletiva de imprensa com o gravador ligado, retorna e decupa a fita, faz a matéria – ou melhor, transcreve citações. A analogia: bastaria então mandar à coletiva uma capivara com um gravador atado ao pescoço.

Argumento frágil

Mas jornalismo não é difusão. Nem hábitat das capivaras. É mediação social.

Outra questão me é soprada pelos mais veteranos. Experiências de radicalização liberal na década de 80, principalmente, naufragaram fragorosamente. Administradores, sociólogos, médicos lotavam as Redações em busca do glamour jornalístico. Não duravam mais de um trimestre. Para eles, o jornalismo era bico. Ou distração. Ou tentativa. A ideia de profissão ainda associada fortemente à formação acadêmica original. As Redações precisam de profissionais muito mais comprometidos com suas carreiras – sim, e por que não? – e, consequentemente, com a veracidade, profundidade e relevância de sua ação social. O jornalista diplomado – superemos a ideia de reserva de mercado, por favor – não tem plano B de vida. É jornalista. Mas não nasce jornalista, como se gabam alguns olimpianos, cujo sucesso a nada ou a ninguém parecem dever.

Por fim, uma vilania que deve ser gostosamente rebatida é a de que foi a ditadura que regulamentou o jornalismo. Deduz-se: para cercear a liberdade de imprensa. Distorção. Foi, sim, na ditadura que a profissão foi regulamentada, mas nada deve a ela. Não foram os militares a redigir o projeto ou hasteá-lo como bandeira. A luta dos jornalistas pela regulamentação da profissão data de décadas anteriores, já remonta a 1930, de modo incessante. Nunca foi completamente abandonada, e graças a esse esforço de gerações, incansável, culminamos, em 1969, com a regulamentação. É um argumento frágil o do ‘entulho ditatorial’. Usa a história, que desconhece, para desqualificar a categoria.

Uma imprensa sólida e responsável

Enfim, resta a esperança de que a regulamentação volte a tramitar, a partir da estaca zero, no Congresso – embora com rara chance de caminhar antes do término do governo já hipnotizado pelo vislumbre da sucessão. Um governo, aliás, marcado pela antipatia à imprensa, manifesta em Conselhos (este, sim, entulho ditatorial), raras entrevistas, ataque direto a jornalistas.

Os cursos de Jornalismo devem mudar? Sim. A qualificação deve ser debatida e aperfeiçoada? Sempre. Podemos prescindir de qualquer um dos dois? Não. A imprensa melhorará com a ‘democratização’ da labuta do repórter? Não. Profissionais de outras áreas podem se tornar bons jornalistas? Sem dúvidas. Mas não é na esquisita metonímia de tomar Nelson Rodrigues pelos Diários Associados que transformaremos o lide sumário brasileiro na jóia narrativa dos melhores periódicos do mundo. Não é, certamente, reiterando a impossibilidade de o jornalismo ferir a malha social, como quer Mendes, que incentivaremos as melhores práticas de comunicação. Extinguir a qualificação simplesmente não é o caminho certo para construir uma imprensa mais sólida e, principalmente, responsável.

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Jornalista e doutorando em Comunicação na USP, São Paulo, SP