Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Liberdade até para os estúpidos

A liberdade de imprensa se aprimora pela liberdade de errar. Jornalista não é policial, alcaguete, meganha de quartel nem delator. Sua função na sociedade é a de vigilante dos princípios éticos que sustentam as instituições.

É possível que algumas vezes, do alto da gávea, possa se ouvir um ‘terra à vista’ sem que haja terra ou a vista esteja embaçada. Entretanto, com certeza há gaivotas no céu. Em 40 anos de profissão, já cometi muitos erros e vi muitas imprecisões serem cometidas por minha geração de jornalistas. A imprensa pode ser imprecisa, mas jamais, cega, surda ou idiota. Quando comete um erro, corre porque atrás da meia verdade dorme a verdade inteira.

O jornalismo é um vigilante de seu tempo. Cabe a ele escarafunchar o cheiro do ilícito para que a polícia, o Ministério Público e a justiça cheguem à verdade da transgressão. Não exijam que uma reportagem seja perfeita. Ela foi feita para aceitar imprecisões. Aos poderes públicos, pertence a função de corretor de ortografia da verdade. Todos os grandes escândalos comprovados nos últimos tempos, quando denunciados, continham erros que quase desmereciam a denúncia.

Para mentes lúcidas ou idiotas

Entretanto, a partir da imprecisão, a justiça lavou a roupa e encontrou as nódoas que envergonhavam a sociedade. Assim foi com Collor: a cascata da Casa da Dinda era uma cascatinha de jardim e, portanto, a capa da revista era cascata. Desse erro, chegou-se à quadrilha de extorsão. Da mesma forma foram as denúncias de Carlos Lacerda contra o bando liderado por Getúlio. O fato inicial não era verdade, mas chegou-se a Gregório Fortunato e a história mudou de rumo. Aparentemente, os aloprados de São Paulo que pretendiam comprar um dossiê que incriminava seus adversários, era uma malvada invenção da imprensa. Entretanto, uma foto retratando uma colina de dinheiro ilustrou a primeira página dos jornais e jogou uma eleição presidencial para o segundo turno.

Assim é a imprensa: se nutre do erro para cevar a verdade. Aos tiranos ocorre o pavor à liberdade de errar para que, pelo silêncio, manipulem a verdade. Na penúltima semana de setembro, a revista Veja publica um artigo do sociólogo Demétrio Magnoli que é aula a quem pretende exercer, eleger, entender ou criticar o poder.

O título, ‘A Liberdade Enriquece’, mostra a conservadores, revolucionários, mentes lúcidas ou idiotas em particular que a liberdade de expressão transita por qualquer regime que realmente procure a justiça das sociedades.

Nos porões da estupidez

Rosa Luxemburgo, a Passionária polonesa que tanto inspirou as esquerdas do século 20, é citada para reproduzir um mantra que define a liberdade. ‘Liberdade somente para os partidários do governo não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente.’

Como se não bastasse tamanho soco que nos faz acordar para a responsabilidade social, o artigo nos premia com a pérola de uma frase que, se bem pensada, nos leva à emoção: ‘Liberdade não é um artigo de luxo, um bem etéreo, desconectado da economia. Liberdade funciona, pois a criatividade é filha da crítica.’

Enquanto isso, nos porões da estupidez e na catacumba da inteligência há quem continue a afirmar que há excesso de liberdade de expressão no Brasil e que aqueles que estão no poder são a opinião pública. Pobres tolos, leiam, estudem, pois ainda há tempo. A liberdade também foi feita para os estúpidos.

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Jornalista