Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Lições de Einstein para a universidade

A mais tradicional das universidades brasileiras, a Universidade de São Paulo (USP), pode estar fazendo uma de suas inovações mais interessantes ao criar um curso de graduação para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST, ainda que a iniciativa pareça incomodar distintos observadores.

A informação de que a USP possa criar um curso de graduação para integrantes do MST está na edição de domingo da Folha de S.Paulo (20/11, pág. C1) e, ao que parece, com desconforto para a autora do texto que quis saber da pro-reitora de graduação, Sonia Penin, se ela ‘considera viável a hipótese de a USP vir a promover um curso para filiados à União Democrática Ruralista (UDR), a exemplo do que se propõe para o MST’.

Qual o significado para a universidade/sociedade de um curso como este? Por que faz sentido que ele seja dirigido a membros do MST e porque não passa de despropósito sugerir que devesse ser estendido a associados da UDR?

A questão levantada pela repórter da Folha, além do simplismo que costuma caracterizar o princípio da contraposição no jornalismo, aponta na direção das limitações envolvendo o direito à educação, o papel da universidade e o espírito crítico combalido de parte dos jornalistas.

Crescimento das favelas

Oferecer cursos a integrantes do MST e de outros movimentos sociais, além de alternativa para experimentação no interior da universidade, é uma forma de a universidade envolver-se diretamente com problemas da sociedade, contribuindo com recursos intelectuais para a solução de impasses que se não forem encaminhados por esta via acabarão sendo enfrentados pelos punhos cerrados.

Ao que tudo indica, os acontecimentos das últimas semanas na França ainda não ecoaram suficientemente por aqui.

O fato de um curso estar sendo oferecido, em condições extraordinárias, a membros do MST e não da UDR deve-se à razão elementar de os extratos sociais que compõem o MST estarem excluídos, indesejavelmente da universidade, enquanto a UDR, formada por proprietários de terra, ao menos em termos econômicos comparativos, têm condições ou no mínimo melhores condições de acesso a cursos superiores.

Na verdade, a universidade já abrigou, até recentemente, não cursos extraordinários, mas expedientes extraordinários para beneficiar estudantes oriundos da oligarquia rural representada pela UDR. Chamava-se ‘Lei do Boi’. Foi sancionada em julho de 1968, na maturidade do governo militar, e revogada em 1985, com o início da redemocratização política. Garantia até 50% das vagas em estabelecimentos públicos de ensino agrícola, notadamente nos cursos de agronomia e veterinária, para filhos de proprietários de terras, sob o pretexto de ‘fixar o homem no campo’. Apesar do argumento, este período coincide com o processo de urbanização brasileira feito às custas de uma desenraização profunda e implicando, entre outros efeitos, a explosão de crescimento das favelas urbanas.

Educação e formação

Se há alguma inovação na decisão da universidade em abrigar um curso voltado para determinados extratos sociais, essa inovação está ligada ao fato de se referir a integrantes do MST e não da UDR.

Evidentemente que um curso com essas características envolve uma série de desafios. E o primeiro deles talvez seja repelir o preconceito de jornalistas. Um quarto de século do mais recente governo autoritário no Brasil levou parte da população, jornalistas incluídos, a acatar procedimentos absurdos como naturais, enquanto alternativas promissoras são interpretadas com suspeitas, sujeitas a certa comoção.

Joaquim Nabuco e José Bonifácio de Andrada e Silva, ambos abolicionistas, ironicamente continuam autores absolutamente atuais no Brasil – e essa atualidade certamente não é casual.

Nabuco é o autor do célebre achado dando conta de que acabar com a escravidão no Brasil não era das tarefas mais difíceis (entre outras razões pela pressão inglesa desejosa de abrir espaço para as máquinas que consolidavam a Revolução Industrial). Difícil, preveniu Nabuco (reeditado pela mesma Folha, por meio da editora Publifolha) seria retirar o entulho escravista que permeia a sociedade brasileira.

De outra maneira, como compreender que a distribuição de renda no Brasil (entre as 20 maiores economias do planeta) seja a segunda pior em todo o mundo, perdendo apenas para Serra Leoa, na África Ocidental?

O conceito desta distribuição absurdamente irracional, na raiz da violência urbana e rural, certamente está entranhado no imaginário de parte da mídia, especialmente da imprensa. Daí não haver maiores comoções neste sentido.

Proposto pelo próprio MST (que já tem convênios similares com outras 13 universidades federais e estaduais em todo o território nacional), o curso deve atender a 60 alunos capazes de preencher um conjunto de exigências: pertencer a um assentamento/acampamento de sem-terra, ter concluído o ensino médio e dispor de um atestado fornecido pelo MST de São Paulo comprovando experiência mínima de dois anos com educação ou formação popular no campo.

O curso, que ainda depende de trâmites burocrático no interior da USP (mas já existe na Unesp), é especial e sua continuidade dependerá dos resultados obtidos com esse grupo pioneiro.

Os destinos do homem

No seu 71º aniversário, um curso desta natureza é um verdadeiro laboratório para a USP e prova disso é que pelo menos 48 professores da Faculdade de Educação, segundo o texto da Folha, já se dispuseram a participar como voluntários para a experiência.

Uma das questões leva em conta a possibilidade de o Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) ter defesa oral, compensando carência de expressão escrita já diagnosticada por pesquisas realizadas pelo próprio MST.

Evidente que se trata de uma questão controvertida. Mas por isso mesmo promissora em termos de experimento capaz de reformular os métodos de educação, preparando minimamente um país com as condições do Brasil para a ‘sociedade do conhecimento’.

Também o ex-reitor da Unicamp, ministro da Educação do governo FHC, Paulo Renato Souza, considera, segundo a Folha ‘um erro a criação de cursos especiais de graduação voltados especificamente para os sem-terra’, sob o argumento de que ‘a ciência que vale para um cidadão comum deveria ser a mesma que vale para um trabalhador sem-terra, então, a graduação deveria ser a mesma’.

Aí está o exemplo da contraposição, o ‘ouvir o outro lado’, expresso numa pérola de sofismo sumário.

A questão, para retomar parte do argumento do ex-ministro, é que aos olhos de uma sociedade com mentalidade escravista como a brasileira, segmentos sociais como os representados pelo MST não são o ‘cidadão comum’, são um subcidadão, interpretado como indesejável até quando procura lapidar-se pela educação.

Quanto ao conceito de ‘ciência’ invocado pelo ex-ministro, talvez seja interessante ouvir o que Albert Einstein pensou sobre isso num curto texto ‘Educação em Vista de um Pensamento Livre’, reunido em Como Vejo o Mundo (Mein Weltbild), publicado originalmente em 1953, quando expunha preocupações com os rumos do mundo do pós-guerra.

Na percepção de Einstein ‘não basta ensinar ao homem uma especialidade, porque assim ele se tornará uma máquina utilizável, mas não uma personalidade’. É necessário, argumenta, ‘que um homem adquira sentimento, senso prático daquilo que vale a pena ser compreendido, daquilo que é belo, do que é moralmente correto’. É necessário compreender, considera Einstein, ‘as motivações dos homens, seus desejos e suas angústias para determinar seu lugar em relação aos seus próximos e à comunidade a que pertence’.

Essas reflexões, disse Einstein, ‘não se encontram escritas nos manuais, mas é assim que se expressa e se forma de início toda a cultura. Quando aconselho com ardor as Humanidades’, enfatizou, ‘quero recomendar esta cultura viva e não um saber fossilizado, sobretudo em História e Filosofia’.

Como se pode ver, ‘Educação em Vista de um Pensamento Livre’ é mais que uma recomendação a iniciativas como a que está sendo considerada pela USP. É uma exortação a iniciativas dessa natureza e com esse comprometimento.

É uma proposta de recriação da história por parte de um gênio que ficou conhecido não pela complexidade de suas teorias, mas pela abrangência com que partilhou preocupações com os destinos do homem.