Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Lula: de sindicalista a presidente

‘Eu não sou o resultado de uma eleição. Eu sou o resultado de uma história.’ (Lula, 1º/1/2003).

Depois da cerimônia de posse, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou o que pude comprovar na tese de doutorado ‘As mudanças nos discursos de Lula, sob o prisma da temática emprego’, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP. Para compreender o resultado dessa história precisei percorrer os mais de 30 anos de vida pública do presidente, resultando numa tese com 350 páginas. Minha opção para a observação foi o discurso. Isso se refere não apenas à superfície textual, mas à relação entre língua, ideologia e contexto.

Nesse sentido, a pesquisa se ocupou em articular esses elementos a fim de assinalar, efetivamente, quais foram as mudanças. Analisei, por amostragem, discursos correspondentes ao sindicalismo, fundação do Partido dos Trabalhadores, enquanto Deputado federal, candidato em quatro eleições presidenciais e pronunciamentos durante o primeiro ano no Palácio do Planalto. Com isso, indiquei a presença de três fases distintas nos discursos de Lula: a primeira, de extrema esquerda, a segunda, de transição, e a terceira, de centro-esquerda.

O estudo, entretanto, não teve a pretensão de julgar as ações governamentais, nem avaliar o seu desempenho, mas analisar o discurso político de Lula no decorrer dos períodos citados. Para exemplificar as prováveis alterações no discurso de Lula, escolhi a temática emprego porque ela é fundamental na caracterização da sociedade contemporânea. Além disso, também corresponde a uma das principais questões abordadas pelo Presidente eleito desde o sindicalismo.

Lula na extrema esquerda – décadas de 70 e 80

Esse período durou pouco mais de 20 anos, o que explica a imagem predominante de Lula no imaginário coletivo. O contexto do Brasil na época influenciou as falas do sindicalista, marcadas pela contestação ao regime militar. Os discursos pediam liberdade de expressão, o que ampliou o auditório, propiciando as reflexões para a criação de um partido político. Nesse momento, Lula, contestador, consagrou-se como uma liderança popular, abrindo a possibilidade de organização das massas.

A ideologia que perpassava os discursos era baseada em princípios marxistas trazendo questionamentos a respeito do planejamento econômico executado pelo governo. Lula contestava as relações entre capital e trabalho, defendendo a igualdade e um mundo sem dominantes e dominados. Durante o sindicalismo, a questão emprego se relacionava com as lutas pelos direitos trabalhistas e pela melhoria das condições de trabalho para o operariado.

Com a criação do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 80, os discursos articulavam questões mais abrangentes, como a organização política e as decisões na área econômica. Nesse momento, Lula inseriu em sua fala a necessidade de geração de empregos cobrando ações das esferas governamentais. As condições de produção correspondiam ao início da abertura democrática no Brasil e à organização das classes populares e o PT foi o primeiro partido a se manifestar na campanha pelas Diretas Já!, em 1984.

O mercado e suas leis eram tidos como injustos e passíveis de modificações estruturais com a proposta de dissolução do sistema vigente para implantação de um modelo socialista. ‘(…) sentimos na própria carne, e queremos, com todas as forças, uma sociedade que, como diz o nosso programa, terá que ser uma sociedade sem explorados e sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista?’ (Lula,1981). A força da expressão retórica manifesta-se na ênfase em ‘sentimos na própria carne’ (argumento de superação e requisito fundamental para a construção da figura do herói), ‘com todas as forças’ e a pergunta final – típica do modelo retórico para introduzir as respostas articuladas. O discurso socialista interpela esse sujeito ao afirmar o desejo de uma sociedade sem explorados e sem exploradores.

‘Queremos mudar a relação entre capital e trabalho. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho. E isso só se consegue com a política.’ (Lula,1981). Afirmações assim podem ter influenciado na construção equivocada da imagem do PT como se fosse um partido comunista porque demonstram a organização ideológica de uma classe emergente buscando a substituição da classe dominante.

É necessário retomar o tom pejorativo que reinava no imaginário brasileiro ao se referir à expressão ‘comunista’. O mundo, devido à Guerra Fria, dividia-se entre as ideologias dos Estados Unidos (capitalismo) e da União Soviética (comunismo). Ambos os sistemas ainda buscavam um rumo de crescimento, conforme a ideologia de cada um. Entretanto, o regime de exceção que dominava o Brasil criava o inimigo comunismo, distribuindo preconceitos e inverdades. Esse pensamento ficou extremamente enraizado no brasileiro, tanto por pressões internas, bem como pelas informações recortadas vindas do exterior através dos produtos midiáticos.

Com a retomada da democracia no Brasil, vieram as eleições diretas à presidência da República, todas apresentando a candidatura de Lula. As estratégias petistas nas campanhas eleitorais apresentaram modificações com o passar dos pleitos. Na primeira eleição direta para a presidência, depois do regime militar, Lula disputou o segundo turno contra Fernando Collor, representando o pensamento da esquerda brasileira. Ele ainda mantinha características do perfil operário, tanto por sua postura ideológica como pelo visual. Os aspectos remanescentes do período sindical correspondiam a um discurso coloquial e crítico, eliminando o diálogo com as classes dominantes e os acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional.

O período de transição – meados década de 90

Nas eleições de 1994, o PT considerava a vitória de Lula quase certa devido à falência do governo Collor e à liderança do Partido no processo de impeachment. Entretanto, em julho daquele ano, o então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, lançava o Plano Real. Com a moeda estabilizada, o país preferiu permanecer com FHC já no primeiro turno. A sua reeleição em 1998, foi fruto de articulações políticas com os governadores e o Congresso Nacional e Lula sequer chegou ao 2o. turno.

Mas foi nessas duas eleições que o PT se abriu para acordos com outros partidos de esquerda, ao contrário da primeira disputa. O período é considerado de transição apontando para o amadurecimento político do PT, que conseguiu projeção nacional, conquistando prefeituras e vagas nas câmaras municipais e no Congresso nacional. No discurso, permaneciam traços discursivos, como as comparações e Lula começou a citar trechos de sua história, consolidando o símbolo de esperança de que se apossou.

Especialmente na plataforma de 1998, observa-se a explanação de propostas mais próximas do pensamento social-democrata como estimular a criação de bancos do povo; incentivar a geração de novas vagas no mercado de trabalho em um programa emergencial para os jovens; abrir linhas de crédito para estudantes com juros baixos; adotar um programa de renda mínima que garantiria um complemento para quem recebe menos de um salário mínimo; desonerar a produção, promovendo a reforma tributária e retomando a capacidade de investimento do Estado brasileiro. Nesse momento, há uma reformulação da imagem do candidato, passando a apresentar um perfil mais conciliador, moderno e plural.

Lula e o discurso centro-esquerda – período atual

A consagração da lógica que rege o governo Lula manifestou-se em junho de 2002, com a Carta ao Povo Brasileiro. O documento apresenta as diretrizes que seriam adotadas no caso da vitória petista, especialmente em relação às medidas econômicas. Por exemplo, enquanto nas campanhas de 1989 e 1994 o Partido não cogitava o cumprimento dos acordos com os credores internacionais e em 1998 se propunha a analisá-los, na Carta comprometeu-se a cumpri-los.

A campanha vitoriosa seguiu aquele raciocínio, mostrando um candidato ponderado e estadista. O slogan ‘a esperança venceu o medo’ reforçou o caráter simbólico de Lula, que se colocava como a esperança do país. A adesão de um novo público à sua candidatura explica-se, entre outros fatores, por sua postura de rompimento com os velhos dogmas do PT, sua mudança em relação às propostas econômicas e à vice-presidência preenchida por um partido de direita, o PL.

A questão do emprego mereceu destaque com a promessa da criação de 10 milhões de vagas em quatro anos [Até o fim do primeiro ano de mandato, verificou-se que menos de 1% do total dos 10 milhões de empregos prometidos foi concretizado.]. De acordo com a pesquisa realizada anualmente pelo IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva herdou 7,9 milhões de desempregados. O levantamento mostrou, também, que o rendimento do trabalhador brasileiro caiu pela quinta vez consecutiva desde 1996, acumulando 12,3% de perdas.

A preocupação popular com o tema também pôde ser verificada na pesquisa de opinião [O universo pesquisado correspondeu à população com idade a partir dos 16 anos, totalizando 2416 entrevistas aplicadas em 137 municípios distribuídos em 23 estados. A equipe responsável previu, com esta metodologia, um intervalo de 95% de confiança.] realizada pela Criterium que apontou a questão do emprego como prioritária para o governo a curto e médio prazo. Os números levantados superam, inclusive, a proposta original apresentada pelo PT durante a campanha de lançar um programa de combate à fome no país. Nas respostas espontâneas, para o primeiro ano, a criação de postos de trabalho ficou com 33% da preferência, contra 24% de um projeto de combate à fome. Já para o mandato, a diferença ainda foi maior: 32% avaliaram a solução do problema como imprescindível, contra 19% a favor do Programa Fome Zero. Portanto, a questão se configura mais do que uma característica contemporânea. Ela pode ser considerada o grande desafio do governo petista.

Na Presidência da República, o programa mais enfatizado, especialmente no primeiro semestre de 2003, foi o Primeiro Emprego, destinado à juventude, entre 16 e 24 anos, realizado em parceria com a iniciativa privada. Buscou-se o resultado dessa ação e verificou-se que um ano após sua implantação, em outubro de 2003, tinham sido ofertadas aproximadamente, duas mil vagas. Das mais de 750 mil empresas convidadas a participar, pouco mais de quatro mil se inscreveram, segundo o próprio Ministério do Trabalho.

Durante o lançamento do Programa, em 30 de junho de 2003, Lula divide o compromisso com outros segmentos da sociedade, ao contrário da primeira fase quando a geração de empregos era atribuída somente ao governo.

Eu diria que, hoje, nós estamos dando um passo excepcional, para resolver um dos problemas mais graves que o Brasil vive hoje. E a verdade é que não é um compromisso só do presidente da República ou do ministro do Trabalho, ou, individualmente, de qualquer pessoa. Gerar empregos passa a ser uma responsabilidade coletiva. E gerar empregos para jovens é mais do que uma responsabilidade coletiva: é a gente plantar, hoje, o futuro que precisamos colher amanhã (Lula, 30/6/2003)

Os discursos de Lula incitavam a participação social na discussão das propostas, como por exemplo, a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e também distribuíam responsabilidades, especialmente, para a iniciativa privada. No segundo semestre, a ênfase ficou para as Parcerias Público-Privadas, que o governo esperava implementar, para que auxiliassem a sanar questões, como infraestrutura e emprego. A geração de emprego e de renda parece se enquadrar na classificação das ‘frases feitas da política’, tamanha sua utilização e obviedade.

Entendo que a única e definitiva resposta ao desafio da inclusão social é o desenvolvimento sustentado, com geração de emprego e renda. Sei, também, que este salto de qualidade não vai acontecer pela simples vontade do governo e da população.Por isso, estamos criando os instrumentos e regulamentos capazes de reconstruir a poupança interna e atrair os investimentos produtivos de empresas nacionais e estrangeiras. (Lula, 18/12/2003).

A justificativa de aceitar ‘investimentos produtivos de empresas nacionais e estrangeiras’ encontra-se na inclusão social que, por outro lado, apresenta uma relação de dependência com aquele capital mencionado ‘este salto de qualidade não vai acontecer pela simples vontade do governo e da população’. A admissão disso, contraria a prerrogativa do socialismo democrático pregado pelo PT. Mas como lembra Singer [Singer, André. O PT. São Paulo: Publifolha, 2001, p. 86.] ‘desde 1991, o partido rejeita a ditadura do proletariado e defende a alternância no poder, e o socialismo petista admite a convivência com o mercado e a propriedade privada’. Portanto, favorecer a entrada de capital estrangeiro e dividir responsabilidades de infra-estrutura com o setor privado pode indicar que a mutação ideológica do Partido continua a levá-lo às decisões de centro-esquerda.

Com a pesquisa, verificou-se que a geração de empregos foi elemento legitimador de ações, muitas vezes vistas com restrições pela sociedade, como as reformas previdenciária, agrária e tributária. Entretanto, elementos retóricos também se destacaram, como por exemplo, a fundamentação desses discursos através de valores universais como justiça social, compromisso e responsabilidade. Uma das marcas lingüísticas predominantes no tratamento do emprego foi a palavra ‘obsessão’. Dos 22 pronunciamentos nos quais o presidente utiliza a expressão, 24 inserções estão relacionadas à temática, com inclusive, diversas citações por discurso, numa evidente estratégia de reforço da idéia. Apenas cinco delas estão relacionam-se com outras questões.

Conforme afirma Chauí (1984) [Chauí, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984], ao apresentar as três fases de consolidação da ideologia, num primeiro momento, líderes da classe em ascensão criam um sistema de idéias, que, em uma segunda instância, passam a ser compartilhadas pelo grupo como as soluções nas relações de dominação, para, por último, após a vitória da classe emergente, manter-se a ideologia sedimentada, mesmo com a consciência dos novos dominantes e dominados, de haver uma repetição do sistema anterior.

Isto significa que, mesmo quando os interesses anteriores, que eram interesses de todos os não dominantes, são negados pela realidade da nova dominação – isto é, a nova dominação converte os interesses da classe emergente em interesses particulares da classe dominante e, portanto, nega a possibilidade de que se realizem como interesses de toda a sociedade – , tal negação não impede que as idéias e valores anteriores à dominação permaneçam como algo verdadeiro para os dominados. (Chauí, 1984:109)

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Jornalista, professora universitária e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo