Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Lula e a dívida com as rádios comunitárias

Durante entrevista coletiva concedida antes da cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural na quarta-feira (7/11), em Belo Horizonte, o ministro Gilberto Gil reconheceu a necessidade do governo buscar uma solução mais justa para o problema das rádios comunitárias do país.

Logo após a cerimônia, ocorreu a abertura da Teia 2007. Durante o intervalo entre estas atividades, as autoridades permaneceram presentes no palco, quando Roberto Emanuel, da Rádio Constelação, ajudado por alguns amigos, conseguiu entregar ao ministro duas cópias de um documento sobre a emissora, perseguida e fechada pela Anatel como milhares de outras.

‘Conforme informação do professor Valdir de Castro Oliveira, da Escola de Comunicação da UFMG e do próprio responsável pela emissora, Roberto, fiscais da agência estiveram no dia 13/03/2003, na Rádio Constelação, a qual é operada por deficientes visuais, agredindo-os física e moralmente.’ [http://www.midiaindependente.org/pt/red/2003/03/249674.shtml]

Promessas esquecidas

O ministro, que havia, muito gentilmente, se deslocado de sua cadeira para a extremidade do palco, abaixo da qual se encontrava nosso anônimo herói, entregou uma cópia ao presidente Lula, a seu pedido. Cego, negro e condenado pelo ‘Estado oligárquico e autoritário’ (Marilena Chauí) em que vivemos, Roberto Emanuel cumpriu dois anos de pena pelo delito de usar seu direito de ouvir e ser ouvido. Tinha de comparecer a cada bimestre à Justiça Federal. Estava também em prisão municipal, não podendo se ausentar de Belo Horizonte por mais de 15 dias sem se comunicar com este órgão. Presidente da Aliança Nacional dos Deficientes Físicos (Anadefi), ele coordenava a única emissora de que se tem conhecimento no planeta operada por portadores de deficiências, ou melhor, portadores de talentos especiais.

Ao discursar, no final da abertura, Lula confessou que tem uma grande dívida para com as emissoras verdadeiramente comunitárias. Manifestou sua estranheza pelo fato de que somente se divulga que elas derrubam avião, como se as outras (comerciais, educativas, legislativas…) fossem imunes a esta possibilidade. O presidente também afirmou que criou um Grupo de Trabalho para resolver este problema. Foi efusivamente aplaudido.

Há uma gravação na qual o presidente insiste, durante a campanha, ser ‘o defensor número 1 das rádios comunitárias’, coisa em que acreditávamos e não nos esquecemos de suas promessas, conforme áudio disponível aqui.

Mas, lamentavelmente, para um grande número de petistas e militantes de partidos mais à esquerda, comprometidos com a luta pela democratização, a impressão atual é que o poder o fez esquecer delas até o dia de ontem, agindo de forma totalmente adversa ao que se dizia ser.

Esperança se transforma em medo

O que o presidente não disse foi que este Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) foi criado por ele em 2005 e encerrado naquele mesmo ano, mas o relatório final permaneceu engavetado por meses entre o jogo de empurra do Palácio do Planalto e o Ministério das Comunicações – um colocando a culpa no outro pelo atraso. O FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação registrou essa embromação:

‘O movimento das rádios comunitárias formado pelo FNDC, Abraço, Amarc, Abccom, Farc, SJPDF e MNDH protocolou no Palácio do Planalto, dia 24/01/2006, o relatório produzido pelo Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Radiodifusão Comunitária. O texto foi concluído em agosto de 2005 para ser entregue ao presidente Luís Inácio Lula da Silva. Sob diversos argumentos, entretanto, continua retido no Ministério das Comunicações (Minicom). Passados cinco meses, o movimento cansou de esperar que o documento chegasse oficialmente à Presidência da República e o levou até lá. O relatório, segundo as entidades, precisa ser tornado público para dar início ao debate entre o governo e a sociedade civil.’ [http://www.fndc.com.br/internas.php?p=noticias&cont_key=8942]

O presidente também não disse que houve um outro Grupo de Trabalho coordenado pelo Ministério das Comunicações, em 2003, cujo relatório também foi negligenciado. Também houve um grupo trabalhando para a preparação da I Conferência Nacional de Radiodifusão Comunitária, morrendo de esperança e frustração na praia do Palácio do Planalto.

Muitos de nós já têm dificuldade em acreditar que essa dívida será realmente paga… Não que não o queiramos, conscientes de que contribuímos substancialmente para sua eleição e reeleição. Como é difícil constatar que nossa esperança vem se transformando em medo e nos cansando de tanto esperar, como afirma a direita.

‘Progresso depende dos loucos’

Reconhecemos os méritos relativos deste governo em relação aos anteriores, mas o setor de comunicações parece ter sido entregue de porteira fechada para o inconstitucional oligopólio da mídia. Agradecemos a gentileza da atenção que nos é dispensada, sem qualquer resultado concreto que nos assegure não termos sido usados e abusados por nossa boa-fé.

A dívida que Lula tem para conosco implica em dívidas pessoais para dezenas de milhares de pessoas. Dívidas materiais e morais. Seria faltar com o respeito omitir, não a dívida, mas a vida perdida pela companheira Maria da Conceição Oliveira, graças à truculência da Polícia Federal contra uma pobre dona de casa. Seu crime foi ousar ir além de ser mero receptáculo da mídia mercenária e tornar-se agente da comunicação, transmitindo ao seu mundo local, o que pensava das coisas. Deu, como muitos de nós temos dado, a vida por uma rádio livre, por nossa particular Rádio Utopia que, mais dia, menos dia, transformaremos em realidade. [http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/08/327717.shtml]

Para pagar esta dívida, o Estado teria de pagar a dívida de todos que somos prejudicados por esta injustiça, a exemplo de Clementino dos Santos Lopes, um dos coordenadores-gerais da Abraço – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, e José Guilherme Castro, coordenador nacional de Comunicação da entidade e secretário-geral do FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, os quais, como tantos outros, preferiram arriscar tudo para se dedicar a esta luta insana contra o oligopólio existente no setor, para o qual trabalha a Anatel – Agência Nacional de Telecomunicação e o Ministério das Comunicações.

‘O homem sensato se adapta ao mundo; o insensato insiste em fazer exatamente o contrário. Portanto, todo o progresso depende dos loucos’ (George Bernard Shaw).

Sistema público gerido pelo público

Muito pouco vai adiantar para estes insensatos, loucos, subversivos, revolucionários, heroicamente irresponsáveis, com interesses particulares e absolutamente engajados na conquista de um bem maior, que seus filhos e netos venham a receber uma homenagem póstuma da Ordem do Mérito Cultural, como a que merecem os descendentes de dona Maria da Conceição Oliveira, ironicamente esquecida, nesta quarta-feira.

Apesar de tudo, ainda temos fôlego para insistir na possibilidade que Lula nos acena com o reconhecimento desta dívida. Mas precisamos de ações concretas neste sentido, especialmente o reconhecimento do valor destas dezenas de milhares que sacrificaram sua poupança popular, seu tempo, sua vida familiar, sua estrutura mental etc. para combater um Estado a serviço de uma minoria privilegiada.

Temos interesse em, mais uma vez, buscar uma solução para este problema. Quando se fala muito em um sistema público de comunicação gerido pelo Estado e pelo governo, as rádios comunitárias, com todas suas deficiências naturais, por sua origem no seio dos excluídos, vivenciam esta experiência. Sistema público gerido pelo público… Não em todas, mas naquelas que já conseguem perceber outra forma de existir fora do compromisso político-partidário, religioso ou comercial. E não seria também culpa dos governos que as demais sofram deste problema, já que vem sendo negada, peremptoriamente, a autorização para que elas existam legalmente?

Anistia para os condenados

Da mesma forma que a miséria contribui para que o adolescente busque seu primeiro emprego no tráfico de drogas (e talvez o último), a falta de dignidade em que o Estado coloca aquele que quer operar uma rádio comunitária promove a deturpação do sentido ético destas emissoras e ele é impedido de conhecer os princípios registrados no Código de Ética da Abraço.

Portanto, mesmo as rádios que não ‘sejam verdadeiramente comunitárias’, prestam um serviço social inestimável, afrontando um Estado opressor quando praticam a desobediência civil, consciente ou não, porque acabam fortalecendo o movimento em geral e ajudam a dispersar a perseguição.

Assim, Lula poderia dar uma demonstração inequívoca de que está realmente falando sério, concedendo, imediatamente, anistia para os condenados, com a devolução dos equipamentos apreendidos. Isto não depende de mais ninguém. Apenas dele.

Cultura de ponta

Depois, deveria estabelecer um convênio com a Abraço e outras entidades do setor, iniciando um processo de formação para cada emissora em funcionamento, sem exceção, qualificando-a para que cumpra o Código de Ética da entidade, bem como demais demandas para o bom desempenho desta atividade. E então, somente após um ano dado para adaptação, com acompanhamento destas organizações, iniciaria um justo processo de repressão àquelas que se recusarem a respeitar tal padrão de qualidade.

Recursos econômicos devem ser destinados para o melhor aparelhamento das que atingirem a qualificação mínima a ser estabelecida em comum acordo com o governo, bem como para conseguirem entrar pela porta da frente na era digital.

Em paralelo, a legislação deve ser mudada, compreendendo-se comunidade num sentido mais amplo, aumentando a potência do transmissor e, assim, seu alcance. Quem sabe, até transferindo o cuidado com as rádios comunitárias para o Ministério da Cultura… E não se deve esquecer de colocar as televisões comunitárias em sinal aberto, submetendo-as também a um processo análogo, conforme resultado do I Fórum de Televisões Públicas.

Tudo de todos. E não apenas de alguns…

O que queremos é apenas o mesmo tratamento dado aos capitalistas do setor, onde impera a pirataria, a impunidade e a complacência da agência que deveria agir com transparência, eqüidade e probidade. [http://redeabraco.org/rede/nt240407/anatelacoita.html]

Queremos um gordo quinhão das verbas publicitárias dos três níveis do Estado para veículos comunitários como rádio, TV, jornais e outros que atuam fora do padrão industrial e pasteurizado dos grandes.

Lula tem o privilégio de poder realizar o sonho de muitos Pontos de Cultura: ter uma emissora de rádio e uma de TV em sinal aberto… E, certamente, há uma correspondência, no sentido em que cada rádio e TV verdadeiramente comunitária deverá ser também um Ponto de Cultura produzindo cultura de ponta!

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Engenheiro civil, militante do movimento pela democratização da comunicação e integrante do Conselho Consultivo do Câmara Multidisciplinar de Qualidade de Vida