Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia trata situações de violência como guerra

Nos últimos três anos, o número de jornalistas mortos em situações de violência e de conflito cresceu. Segundo dados do International News Safety Institute (INSI), em 2005 o número foi de 146; já em 2007 subiu para 172 o número de mortes. O relatório do instituto também mostra, que dentre 1.000 mortes nos últimos dez anos, 731 aconteceram em situações de paz. A causa das mortes, em parte, está relacionada à falta de conhecimento não apenas da situação de violência ou conflito, mas de como se comportar como imprensa no local.

A preocupação com o aumento das mortes e com uma cobertura jornalística que seja completa e segura tem se refletido em projetos como o que aconteceu no mês de setembro e outubro – o VII Curso de Jornalismo em Situações de Conflito Armado e outras Situações. O curso foi organizado pelas instituições Oboré, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), visando a instruir estudantes de Jornalismo para que haja uma maior e melhor cobertura dessas situações, tanto no plano nacional quanto internacional.

Rapidez gera desconfiança

As situações de conflitos são definidas como Conflito Armado Internacional, que ocorre entre dois ou mais Estados, e Conflito Armado Interno, no território de um Estado, entre um ou mais grupos armados ou entre esses grupos e o Estado. ‘O ambiente é totalmente inseguro’, disse João Paulo Charleaux, jornalista que foi responsável até meados de setembro pela comunicação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.

Segundo Charleaux, há uma discussão na imprensa pelo fato de alguns jornalistas cobrirem as situações de violência de forma a querer transformá-las em uma guerra. ‘Do ponto de vista de alguns, querendo dar glamour à situação, o que acaba agravando as conseqüências humanitárias da situação, por um uso irresponsável de termos e parâmetros para a cobertura’, disse. O jornal O Globo, do Rio de Janeiro, por exemplo, trata a violência nas favelas como ‘guerra’. Um exemplo disso é a manchete do jornal on-line ‘Guerra do Rio faz mais vítimas inocentes: Agora no Alemão’, em 2007.

A falta de entendimento da situação de violência faz com que a imprensa apresente erros diante dos fatos e com isso entende-se a importância da orientação diante da cobertura ‘instantânea’. Conhecidos pela velocidade com que as informações do mundo todo chegam aos internautas, nos últimos anos os portais de notícias têm ganhado força perante os jornais impressos, mas essa mesma rapidez que vem junto com a internet gera nos leitores uma desconfiança.

‘Sair do superficial sem errar’

O jornalista e repórter especial Lourival Sant´anna, do jornal O Estado de S. Paulo aborda isso em seu livro O Destino do Jornal, lançado este ano, e diz que o jornalismo impresso precisa se adaptar: ‘Aquilo que o jornal pode fazer melhor são histórias bem contadas, com contextualização, interpretação, análise e opinião.’ Ou seja, a nova concepção do jornalismo passou a exigir mais qualificação dos profissionais do mercado. Hoje, além de dominar dois ou três idiomas, o jornalista precisa dar mais atenção ao que ocorre no mundo todo, seja no âmbito social, da política ou da economia.

O jornalista Marcelo Beraba, que nos últimos anos passou pelos cargos de ombudsman e repórter especial do jornal Folha de S.Paulo, foi editor-executivo do Jornal do Brasil e do Jornal da Globo e atualmente é chefe da sucursal do jornal O Estado de S.Paulo no Rio de Janeiro, acredita que as redações vivem hoje um grande dilema: ‘Somos cada vez mais exigidos em aprofundamento e a fronteira do aprofundamento é a especialização. E ao mesmo tempo, os meios não possuem recursos para especializar todo mundo’, explica.

Os meios de comunicação têm como base a idéia de contribuição na construção de uma sociedade mais justa e democrática e, portanto, uma cobertura mais profunda, elaborada e ética diante das situações de conflito precisa ser entendida como prioridade pela imprensa. No curso, Beraba trabalhou alguns fundamentos da reportagem como observação, entrevista, pesquisa, documentos e rechecagem. Segundo ele, o objetivo é melhorar o trabalho jornalístico: ‘É preciso ter indignação, duvidar das coisas para que o jornalismo aconteça’, disse. O jornalista deve ter domínio do assunto para conseguir transmitir todas as informações ao seu leitor, para que consiga entender a notícia da mesma forma como se estivesse presente no local. ‘Uma apuração boa consiste em sair do superficial sem errar no entendimento’, afirmou Beraba.

Lema é ‘servir e proteger’

Ao chamar a violência urbana de guerra, a mídia faz as partes se sentirem como se estivessem num conflito e, portanto, mais provavelmente a polícia pode se comportar de forma perversa. ‘De certa forma, é uma aberração, mas para grande parte da população é um sonho que a polícia atue como `Rambo´ e bote pra quebrar para resolver de uma vez o problema. Como se a solução do problema fosse mais porrada. Se fosse isso, tudo já teria sido resolvido’, disse Charleaux.

‘Mesmo as situações de violência e os conflitos têm limites legais’, explica Charleaux. O direito é dividido em dois ramos: conflitos armados ou guerras e situações de violência. Os conflitos armados ou guerras são regidos pelo Direito Internacional Humanitário (DIH), Direito Internacional de Conflitos Armados e o Direito da Guerra. Essas legislações regulam os meios e os métodos do conflito, ou seja, tipo de armas e munições que podem ser usadas e as formas como as operações serão conduzidas, respectivamente. Na guerra, por exemplo, as armas precisam fazer distinção entre combatentes e civis, não podem causar danos supérfluos em que a pessoa não morre mas precisa conviver com uma doença para o resto da vida.

Nos casos em que há situações de violência, as leis mudam. As operações são regidas e julgadas através dos Direitos Humanos, que se aplicam em todo tempo. No Brasil, as situações de violência, ao serem tratadas como ‘guerras’, podem confundir esses parâmetros do uso legal da força, já que algumas determinações podem ser substituídas em situações de conflito. O papel da imprensa é fiscalizar questões como o uso de força necessária, o objetivo da intervenção, a gravidade do delito, a posição da polícia diante do fato, o nível de força usada, questionar e ver se os policiais souberam quando parar, se prestaram socorro. ‘A polícia arrebenta e vai embora e o `cara´ muitas vezes morre por falta de socorro. O lema policial é `servir e proteger´ e servir vem antes de proteger. A maioria não oferece serviço’, explica Charleaux.

Medidas para maior segurança

A mentalidade da ‘guerra’ está associada à idéia de um teatro de operações, onde no campo de batalha está o inimigo. ‘É comum às pessoas que não estão envolvidas nas situações de violência achar que não há problema em entrar no morro e acabar com tudo. Elas não moram lá’, disse Charleaux. No Rio de Janeiro, por exemplo, a consciência de que o inimigo é o pobre que mora na favela cresce cada vez mais. Os jornalistas, quando precisam subir nos morros do Rio para cobrir um fato, normalmente sobem com escolta policial, o que, às vezes, gera a percepção que a imprensa tem, de que denúncia e punição são os únicos instrumentos para resolver os conflitos. Como diz Caco Barcellos: ‘Se os jornalistas deixassem de subir o morro com a polícia e passassem a esperar a operação policial dentro do barraco, a cobertura seria muito diferente.’

O International News Safety Institute (INSI) sugere 24 medidas que deveriam ser tomadas para uma maior segurança nas situações de violência. Duas dentre elas, são: as forças armadas e de segurança precisariam deixar claro que jornalista não é um militar e criar um código de conduta que fale do jornalista em situações de violência; e os próprios jornalistas precisam aprender e se preparar antes de cobrir um conflito.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo