Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nas ruas, longe dos dicionários

‘O topiqueiro acha que escrevendo assim ele vai se dar bem’, disse, irritado o taxista que me pegou na Avenida Presidente Vargas, no Rio.

Nesse mesmo lugar, o número 642, há exatos 33 anos eu conheci o escritor Rubem Fonseca, então diretor da Light, coisa que somente vim a descobrir quando já estava dentro de sua sala.

Até então, ele era para mim, jovem estudante de Letras, apenas o autor de O Caso Morel, romance sobre o qual eu tinha feito um trabalho na disciplina de Literatura Brasileira.

Achei que ‘topiqueiro’ estivesse circunscrito ao sudeste, mas o jornal O Povo (Ceará) trazia a seguinte notícia em janeiro deste ano, em matéria assinada por Nicolau Araújo:

‘O topiqueiro se apresentou ontem à Polícia e disse que não sabia que uma criança havia morrido no acidente da última sexta-feira, no Centro. Ao O POVO, ele afirmou que completou o itinerário da linha, mesmo após o ocorrido’.

Olhem só como a matéria continua:

‘Na companhia do advogado Rafael Machado, 30, o topiqueiro confessou que era o motorista da topique da linha Goiabeiras-Barra do Ceará, que na noite da última sexta-feira atropelou uma criança e um adolescente, no cruzamento das ruas São Paulo e Agapito dos Santos. Jonatan Rocha Lima, 7, morreu no local após o pneu traseiro do veículo passar por cima de sua cabeça. Já o adolescente de 13 anos de idade continua internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), no Instituto Doutor José Frota (IJF)’.

Grafia adequada

Consideremos o absurdo de nossas leis: se o topiqueiro tivesse atropelado e matado uma capivara, estaria preso, mas como o morto é um ser humano, o matador continuou solto. E, claro, assim voltará a matar, contando com o apoio irrestrito dos passageiros, seus semelhantes e iguais: ‘Eu ainda parei para tentar socorrer o menino, mas foram os próprios passageiros que disseram para eu ir embora’.

Provavelmente, ele também escrevia no trânsito quando atropelou as crianças. O verbo escrever, com o sentido de dirigir mal o veículo, já está registrado no Aurélio, um de nossos dicionários mais consultados, na 19ª acepção, entre as 21 recolhidas:

‘Dirigir veículo dando guinadas, por imperícia, nervosismo, ou embriaguez’.

Entretanto, nenhum dicionário registra ‘topique’ como sinônimo de ‘van’, neologismo provindo do inglês, para o qual ainda não foi encontrada forma adequada de grafia, mas que o Houaiss diz ser ‘veículo automóvel para transporte coletivo de um número limitado de passageiros (…) caminhonete, perua’. Outro dia uma foto de O Globo dizia muito mais do que o verbete, tal era força da imagem de uma perua com mais do que o dobro dos passageiros, não em pé, mas agachados!

Diminutivo impróprio

O topiqueiro dirige a topique. Da reportagem de O Povo apreciei também os nomes Agapito e Jonatan, o primeiro de origem grega (amado) e o segundo de origem hebraica (dado por Deus), segundo nos informa José Pedro Machado em seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte).

Adiante, um cidadão precisou negociar com o topiqueiro: estava sem um tostão, pois sofrera um ‘seqüestro-relâmpago’ um ‘minutinho’ antes. Minuto não pode ter diminutivo, pois nenhum dos sessenta segundos pode ser surrupiado. E ‘seqüestro-relâmpago’, há anos vitimando os cidadãos, ainda não chegou aos dicionários.

Cidadão já chegou ao dicionário, mas seus direitos parecem ter sofrido seqüestro-relâmpago também.