Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O controle da internet é necessário?

Em tempos de web participativa e de propagação de informações em rede sociais, o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei (PLC 89/03), que pretende regular algumas práticas comuns para quem navega na internet. O responsável pelo texto é o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT). Segundo ele, a intenção é criar um ambiente mais seguro para os usuários e que o projeto atende o interesse público. Porém, entusiastas dos softwares livres e participantes ativos de redes sociais e blogueiros não receberam muito bem a proposta do senador.

Em 24 de junho de 2008, o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira postou em seu blog que o ‘projeto de lei aprovado em comissão do senado coloca em risco a liberdade na rede e cria o provedor dedo-duro‘. A postagem alertava sobre armadilhas nas entrelinhas e problemas com interpretações legais. A partir disso, vários outros blogueiros concordaram com a análise e juntaram-se em um movimento, que agregou seguidores justamente no ambiente em que a lei pretende vigiar. O resultado foi uma petição online pelo veto ao projeto de cibercrimes – que, em um mês, ultrapassou as 100 mil assinaturas.

Graduado em Ciências Sociais (1989), mestre (2000) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2005), Sérgio Amadeu acompanha o andamento do projeto agora na Câmara e discute os impactos da lei na sociedade. Atualmente, ele pesquisa as relações entre comunicação e tecnologia, práticas colaborativas na internet e a teoria da propriedade dos bens imateriais. Seus estudos geraram dois livros: Exclusão Digital: a miséria na era da informação e Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento.

Nesta edição, o Monitor de Mídia questionou Sérgio Amadeu sobre a necessidade do controle das redes, opinião sobre o projeto de lei do senador Azeredo e a nova forma de lidar com a informação e o conhecimento na internet.

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O Senado brasileiro aprovou no dia 9 de julho o projeto de lei (PLC 89/03) que transforma em crime várias atividades maliciosas cometidas pela internet. Agora, o projeto segue para aprovação na Câmara dos Deputados. O texto, entre outras coisas, condena a invasão de bancos de dados, a disseminação de vírus, a pirataria e a pedofilia. O senhor, no seu blog em 25 de julho, afirmou que ‘o resultado será um estado de vigilantismo’. Por quê?

Sérgio Amadeu – Os artigos do substitutivo aprovado pelo Senador Azeredo que dizem respeito ao roubo de senhas, spam, vírus e pedofilia não estão sendo questionados por ninguém. Estão mal escritos, mas não abrem espaço para criminalizar indiscriminadamente milhares de internautas. O problema está exatamente nos artigos 285-A e 285-B que buscam coibir o compartilhamento de arquivos pelas redes P2P (pessoa a pessoa), que querem impedir a cópia e o uso justo de obras cerceadas pelo copyright por violarem a seguranças de dispositivos de comunicação e redes restritas. Já o artigo 22 pretende privatizar parte das tarefas típicas do Estado, tornando provedores responsáveis pela vigilância de seus usuários. Além disso, criará um clima de incerteza e desconfiança em redes abertas, pois exige que todo o provimento de acesso guarde os ‘logs’ (registros da navegação) de seus usuários por três anos. Para que servem ‘logs’ sem a identificação de quem usava um determinado IP (endereço de computador ligado à internet)? Para quase nada, por isso, a lei de Azeredo exigirá uma regulamentação por parte da Polícia Federal, que poderá gerar o fim da comunicação livre e a navegação anônima na rede. O senador Azeredo quer impor um estado de vigilância permanente, o que é incompatível com o anonimato. Assim como estados totalitários não admitiam que máquinas de escrever fossem vendidas sem a identificação de seus compradores, o senador quer que toda vez que alguém entre na rede esteja plenamente identificado. Isso é inadmissível. Eu não quero que a Polícia, os crackers e nem as corporações saibam que horas eu vi sito o Youtube, faço compras na Amazon, abro meu Twitter ou faço uma determinada busca no Yahoo. Nem por isso, sou criminoso.

Em outra postagem foi afirmado que ‘os exageros que constam do projeto podem colocar em risco a liberdade de expressão, impedir as redes abertas wireless, além de aumentar os custos da manutenção de redes informacionais’. De que forma isso ocorreria? Quais as conseqüências diretas aos usuários comuns da internet?

S.A. – Por exemplo, no Artigo 285-B do projeto, está escrito que será crime ‘obter ou transferir, sem autorização ou em desconformidade com autorização do legítimo titular da rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso, dado ou informação neles disponível’. Com essa redação, pode ser considerado crime baixar um vídeo, uma música, copiar uma foto, sem a autorização do que será considerado legítimo titular. Práticas comuns de fanfics, jovens que modificam histórias conhecidas e as distribuem gratuitamente na rede, poderão ser consideradas transferência de informações em desconformidade com a autorização do legítimo titular da rede. Pegar um anime (animação japonesa) e traduzi-lo sem autorização, prática comum de milhares de fansubbers, também poderá ser criminalizada pela redação do Azeredo. A indústria do copyright sabe que para copiar um arquivo digital, antes é preciso acessá-lo e depois transferi-lo. Por isso, a Lei de Azeredo não atua sobre o direito de cópia e sim sobre o acesso e a transferência.

Este projeto reúne os interesses da comunidade de vigilância, dos banqueiros e da indústria de copyright, principalmente da Motion Picture Association of America (MPAA) e da Recording Industry Association of América (RIAA). Tem a clara intenção de substituir a cultura da liberdade, que prolifera na rede, pela cultura da permissão. Para isto, trabalha o artigo 22 que deverá ser regulamentado pelo Poder Executivo, provavelmente pela Polícia Federal. No parágrafo 1º desse artigo, está dito que haverá um regulamento e a necessidade de auditoria sobre os provedores de acesso. Repare que inúmeras empresas dão o acesso à internet para seus funcionários. Centenas de escolas e faculdades também garantem que seus alunos acessem a rede. Assim, essas empresas, escolas, cibercafés, telecentros, além dos grandes provedores, deverão estar em conformidade com a guarda de dados que o regulamento irá detalhar e a auditoria irá verificar. Quem fará tal auditoria? A Polícia Federal? Claro que não. Ela não tem efetivo suficiente, ela mal consegue vigiar nossas fronteiras, combater os corruptos e impedir a odiosa devastação da Amazônia. Tudo indica que a PF repassará esta atividade para empresas privadas que cobrarão pelos laudos. Quanto? Ninguém sabe. Se esse artigo da proposta do Azeredo for aprovado ele alavancará uma nova atividade lucrativa para os mercadores do controle.

Note ainda que o artigo 22 exige a guarda de dados da navegação dos usuários por três anos, mas ele não diz que será necessário que todos os usuários sejam identificados para acessar a rede. Não diz porque o regulamento irá exigir isto. Como já afirmei, não há nenhum sentido em guardar dados de um usuário anônimo, que entrou na rede e o provedor não tem como saber quem é. Por isso, a Lei do Azeredo dependendo de como for regulamentada ou será inócua e desnecessária ou inviabilizará as redes abertas de conexão, sejam com fio ou sem fio.

Existe uma forma de atuação das autoridades na internet que não fira os direitos de propagação de idéias, ou isso não é necessário?

S.A. – Para que as autoridades não destruam a comunicação livre que conquistamos com a internet é necessário que seja construída um marco de direitos de navegação, um estatuto da cidadania digital. O direito que tenho de ir e vir, deve ser garantido no ciberespaço. O direito de acesso às obras cerceadas pelo copyright que tenho ao freqüentar uma biblioteca pública, deve existir também na rede. A defesa da privacidade e a intimidade que temos em nossas casas não podem ser destruídas quando nos conectamos. Assim como o Poder Judiciário só pode permitir a invasão de uma residência dentro de condições muito delimitadas, os agentes do poder de estado ou as grandes corporações não podem invadir e rastrear os computadores das pessoas. Enfim, temos que discutir direitos. O modo de garantir direitos humanos e sociais básicos e que permitem ter maior clareza para criar novos tipos penais em defesa da sociedade.

O PLC 89/03 foi intensamente criticado na blogosfera, principalmente por entusiastas dos softwares livres e dos chamados ‘creative commons‘. Esse movimento na web pode significar um princípio ‘anárquico’ da propriedade intelectual na internet?

S.A. – A propriedade sobre idéias é completamente diferente da propriedade sobre bens materiais. Veja o exemplo da Internet. Por que ela rapidamente se espalhou e recobriu o mundo? Principalmente porque ela permitia que todos os interessados copiassem e aplicassem em suas redes o conjunto de protocolos TCP/IP. Por que o termo PC durante muitos anos passou a ser sinônimo de computador? Porque a sua arquitetura aberta permitia que todos o copiassem sem violação de patentes e copyright. Isso permitiu a expansão dos microcomputadores por todo o planeta. No mundo das redes, em que os fluxos são imateriais, copiar não destrói, não desgasta, não danifica o arquivo copiado. Trata-se de um cenário distinto do mundo industrial que vive do controle da escassez. A informação não é escassa e quanto mais você a utiliza mais ela pode ser aperfeiçoada. No mundo das redes colaborar pode ser mais eficiente que competir e controlar. Ocorre que a velha Indústria Cultural, que enriqueceu intermediando e controlando, ao ver as possibilidades de autores e artistas se comunicarem diretamente com seus públicos, e vice-versa, percebeu que sua atividade de intermediação está sendo afetada. Desse modo, quer impedir que as qualidades das redes digitais se manifestem integralmente. Por isso, ela quer enrijecer o instituto do copyright, quer confundir autoria com propriedade e disseminar metáforas como verdades objetivas. Veja o absurdo: para impedir que Mickey Mouse caísse em domínio público, a lei norte-americana elevou o prazo de cerceamento das obras para 95 anos depois da morte do autor. Quando o copyright surgiu era para incentivar o criador. Que incentivo é esse que protege a obra 95 anos depois que ele morreu? A lei de propriedade intelectual precisa ser repensada para voltar a ser razoável. É preciso voltar a incentivar os criadores ao invés dos intermediários, incentivar o autor e não o defunto-autor. Brás Cubas iria gostar das aberrações que sofremos hoje.

A Fundação Getúlio Vargas fez uma análise minuciosa nos artigos da PL 89/03 e as conseqüências que isso poderá trazer. Na conclusão consta que ‘a imprecisão do texto e suas conseqüências imprevisíveis (algumas das quais listadas acima) demandam que sejam vetados no mínimo os artigos 285-A, 285-B, 163-A, parágrafo primeiro, Art. 6º, inciso VII, Artigo 22, III. Caso os artigos persistam, condutas triviais na rede serão passíveis de punição com penas de até 4 anos de reclusão’. Isso quer dizer que pode ter havido despreparo ou falta de conhecimento específico por parte dos redatores?

S.A. – Pode ser despreparo. Pode ser concepção. Pode ser despreparo de uns e concepção autoritária de outros. Não sei. Só sei que criaram figuras inusitadas como ‘titular de rede’. Inseriram penas descabidas. Alguns certamente não pensaram no alcance da criminalização que sua redação irá abranger. O senador Azeredo disse em uma entrevista que os cidadãos de bem poderiam ficar tranqüilos, pois somente os criminosos é que teriam que se preocupar. O problema está exatamente na concepção do que deve ser considerado ‘cidadão de bem’ e ‘criminoso’.

No final de 2006, no artigo ‘Em defesa da liberdade na internet‘, você afirmou que a ‘internet corre perigo (…) tudo porque as gigantescas empresas que controlam a conexão física das telecomunicações estão se sentido ameaçadas’. Recentemente, a Viacom pediu informações como parte de um processo bilionário contra o Youtube. Pode-se dizer que há uma nova forma de lidar com a propriedade imaterial e as grandes empresas não estão sabendo lidar com isso?

S.A. – Sim. As grandes empresas querem manter o cenário de controle, típico do mundo industrial e da comunicação broadcasting. Na internet, até o momento, qualquer pessoa pode criar conteúdos, novos formatos e novas tecnologias. Esta liberdade incomoda a indústria. Um jovem pode criar um novo protocolo que em menos de um ano é capaz de retirar a lucratividade de um negócio de intermediação. Obviamente, a indústria não vê com bons olhos a criatividade fora de controle. Por exemplo, a criação da Voz sobre IP retirou renda das operadoras. Essa liberdade de invenção está sendo combatida pelas velhas corporações que acumularam bilhões no mundo industrial.

Por fim, é possível que os interesses de governos e grandes corporações convivam em harmonia com a prática da livre propagação de idéias? Como isso pode acontecer?

S.A. – É possível desde que a sociedade reconfigure seus governos e que a liberdade de acesso aos bens comuns avance. Em um cenário de economia informacional, a igualdade de oportunidades se garante primeiramente com a liberdade de acesso. A liberdade de conhecimento e a diversidade cultural são vitais para que as Corporações não se tornem os novos Leviatãs.

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Monitor de Mídia faz sete anos

Esta edição de nº 141 marca os sete anos do Monitor de Mídia. Desde agosto de 2001, alunos e professores do curso de Jornalismo da Univali lançam um olhar atento e preocupado para a mídia catarinense. Um olhar que se encarrega não apenas de salientar possíveis falhas, mas que também destaca acertos e iniciativas elogiosas do jornalismo local. A crítica de mídia empreendida pelo Monitor não se resume ao julgamento, mas conjuga também aprendizado, pesquisa, análise e intensa reflexão.

Nestes sete anos, vimos a mídia catarinense mudar, evoluindo em muitos aspectos e retrocedendo em outros. Observamos os principais movimentos do mercado e suas implicações na qualidade dos produtos que chegam ao público. Ajudamos a fundar a Renoi, a Rede Nacional de Observatórios de Imprensa. Contribuímos para a formação de novos jornalistas. Produzimos muitos materiais que auxiliam numa leitura mais crítica da mídia no estado. Fomentamos a discussão sobre a qualidade no jornalismo.

É claro que um projeto como este tem suas limitações e, portanto, não soluciona todos os problemas da mídia catarinense. O Monitor é um conjunto de esforços de caráter acadêmico que tenta contribuir para o aperfeiçoamento do jornalismo. Por conseqüência, trabalhamos para difundir uma cultura de consumo crítico das informações. O Monitor de Mídia é, então, um instrumento social de educação.

Por isso, passados sete anos, evoluímos também. Já renovamos nossa equipe diversas vezes, modificamos o visual do site, alteramos a periodicidade de atualização de nossos conteúdos e redefinimos o foco de nossas análises. Só não abandonamos o compromisso de continuar lançando um olhar atento e preocupado para a mídia. Acreditamos que ela possa melhorar e que podemos participar desse processo de evolução.

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Com quantas medalhas de ouro se faz um país?

Saiba como os Jogos Olímpicos mudaram as faces da China

Você é brasileiro? Por quê? Porque nasci no Brasil, deve ter sido sua resposta. Em nosso país a nacionalidade é atribuída por jus soli – direito de solo – e por isso nos dizemos brasileiros se efetivamente nascemos no Brasil. Mas, o que nos faz nos identificarmos com a idéia de sermos brasileiros, para além da questão de nascimento? Essa idéia de pertencimento é o que definimos como identidade nacional. Muitos são os elementos ou símbolos que caracterizam nossa idéia de nação, entre eles, o idioma, os hábitos alimentares, vestimenta, comportamento social. Stuart Hall (2004), afirma que não há de fato uma construção de identidade, mas de identificações. Em nosso caso, por exemplo, sabemos que nem todo brasileiro ama futebol, mas todo brasileiro considera o Brasil a pátria mãe desse esporte.

E como se dá esse processo de construção de identidades? A partir dos grupos sociais e das instituições nas quais somos inseridos ao longo de toda a nossa vida. Formamos uma idéia de nação não apenas de nosso país, mas também das diversas nações além de nossas fronteiras. Nossas impressões sobre o outro (o que inclui outros países) se dá a partir das informações que recebemos e assim vamos formando uma representação sobre o distante. A mídia é a principal instituição articuladora dessas representações, justamente por tornar próximo o distante. Mesmo sendo parte intrínseca de nossa existência, a identidade nacional ou seus símbolos ‘não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação.’ (HALL, 2005, P. 48)

E o que são, afinal de contas, as representações? Abric (2001, p. 156) define a representação como ‘um conjunto organizado de opiniões, de atitudes, de crenças e informações referentes a um objeto ou a uma situação.’ Ele reforça que a representação tanto é determinada pelo próprio sujeito, ou seja, sua história, suas vivências pessoais, suas atitudes e comportamentos, como pelo meio social e ideológico ao qual pertence, além da ‘natureza dos vínculos que ele mantém com esse sistema social’. Moscovici (2003) atribui às representações duas funções básicas:

a) os objetos, pessoas ou acontecimentos: isto quer dizer que através da representação atribuímos uma classificação, um local de existência, não apenas aos objetos e acontecimentos à nossa volta, mas também às pessoas e grupos com quem nos relacionamos.

b) As representações são prescritivas, ‘se impõem sobre nós com uma força irresistível’. Conforme Moscovici (2003), essa força é anterior a nós, está presente no meio social ao qual pertencemos antes mesmo de começarmos a pensar e está instaurada numa tradição que decreta até mesmo o que deve ser pensado.

Os meios de comunicação de massa exercem papel importante neste ‘corporificação de idéias’ e nas transformações não apenas da sociedade, mas das representações referentes a esta sociedade. Um momento como o dos jogos olímpicos propicia um cenário importante e diferenciado para analisar a construção de representações sociais sobre o outro. Assim, este Monitor de Mídia se propôs a analisar quais as representações sociais construídas pela mídia impressa brasileira em relação a um dos países mais presentes nos noticiários internacionais nos últimos anos, devido ao seu crescimento econômico e um país que, por conta de seu sistema de governo e suas práticas culturais, sempre exerceu fascínio no ocidente (seja este positivo ou negativo). Optamos por analisar a cobertura que antecedeu os jogos olímpicos de modo a nos focarmos em conteúdos e representações diretamente relacionados ao país e não necessariamente aos jogos.

Discurso do sujeito coletivo

Para analisar como a China está sendo socialmente representada pelos meios de comunicação brasileiros, o Monitor de Mídia elegeu as edições do mês de julho das três revistas semanais de maior circulação no Brasil: Veja, Época e Isto É, como um recorte analítico para verificar como nossa mídia impressa constrói a China para os brasileiros. Foram consideradas apenas as matérias que abordaram o país sede das Olimpíadas em algum aspecto de sua cultura: gêneros, população, cultura, arquitetura e demais perfis sociais.

Esta análise pretende verificar quais são as representações sobre o país encontradas nas revistas. Tomando como ponto de partida a concepção de que os meios de comunicação são construtores da realidade, portanto responsáveis pela construção de perfis e pelo reforço de possíveis estereótipos, os assuntos priorizados por eles influenciam e atingem diretamente o imaginário popular.

Como procedimento de análise foi utilizado o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) proposto por Lefévre e Lefévre (2003) que parte dos discursos em estado bruto, submetidos a um trabalho analítico de decomposição que consiste basicamente em quatro figuras metodológicas que ajudam a organizar e tabular os depoimentos: a ancoragem, a idéia central, as expressões-chave e o discurso do sujeito coletivo. O DSC, segundo os próprios autores, é uma ferramenta a ser utilizada na ‘organização dos dados em pesquisas que se servem de metodologia qualitativa’.

O conceito do Discurso do Sujeito Coletivo utiliza este método de pesquisa para, entre outros objetivos, ter acesso mais aprofundado acerca das representações sociais. Ainda de acordo com os autores, ‘quando se quer conhecer o pensamento de uma comunidade sobre um dado tema, é preciso realizar, antes de mais nada, uma pesquisa qualitativa já que, para serem acessados, os pensamentos, na qualidade de expressão da subjetividade humana, precisam passar, previamente, pela consciência humana.’ Para Lefévre (2002), utilizar o DSC como ferramenta de análise de resultados que envolvem representações sociais é uma forma de ‘dar luz ou recompor’ o pensamento que, embora seja expressado individualmente, existe exteriormente ao indivíduo.

O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) é construído, como já mencionado, a partir de quatro figuras metodológicas:

** Ancoragem: é o que forma ou alicerça nossos pressupostos, conceitos ou hipóteses sobre o assunto tratado.

** Idéia Central: são afirmações-chave que apresentam o conteúdo discursivo explícito nos depoimentos (ou nos textos, como é o caso).

** Expressões-chave: são as transcrições literais ou palavras-chave que permitem recuperar o essencial do conteúdo discursivo, dos segmentos em que se divide a fala (ou texto).

** Discurso do Sujeito Coletivo: é a incorporação de vários discursos semelhantes ou complementares em um ou vários discursos-síntese, a partir do enunciado das expressões-chave que contenham idéias centrais ou ancoragem semelhantes.

Nesta análise optamos por trabalhar apenas com as expressões-chave e idéias centrais de modo a nos atermos o máximo à preservação dos discursos literais das três publicações analisadas. De cada matéria analisada, foram coletadas as expressões-chave que designam uma idéia central sobre determinado tema. Em outras palavras, em todas as reportagens são utilizados termos que podem ser interpretados, facilitando, então, a compreensão da mensagem transmitida pelos meios de comunicação.

Após a seleção dos veículos, constatou-se que a revista Isto É não trouxe, no período proposto, reportagens pautadas em representações sobre país, embora em todas as edições pudessem ser encontradas notícias sobre as competições e os atletas envolvidos. Já nas revistas Época e Veja, o conteúdo foi mais abrangente, destacando, em sua maioria, características da nação oriental que organizou o evento mais importante do esporte mundial.

Foi acrescentada à análise a primeira edição do mês de agosto da revista Veja, por trazer a China como o tema de capa.

A China como ela é

A revista Veja, a maior em circulação do Brasil – e a quarta deste quesito no mundo -, apresentou quatro edições durante o período proposto. Além dessas, foi considerada a primeira publicação do mês de agosto. Duas dessas edições, do dia 9 e do dia 16 de julho, não abordaram temas diretamente ligados à China, mas, em contrapartida, as demais pautaram o país sede das Olimpíadas quase que em sua totalidade.

A maioria das matérias foi desenvolvida sob o ponto de vista comportamental dos chineses. A revista veiculou, ainda, um encarte especial sobre os jogos e lançou uma série especial de notas sobre o país, nos exemplares dos dias 30 de julho e 06 de agosto. As reportagens utilizadas na análise totalizaram 40 páginas, com 42 fotos.

Veja a tabela da revista Veja

Na primeira publicação de julho, dia 02, Veja trouxe uma matéria sobre as mudanças de hábitos e comportamentos impostos aos chineses para que possam recepcionar melhor os atletas e convidados de outras nações. As aulas compreendiam desde técnicas de torcida à distribuição de ‘sacos higiênicos’, para que as pessoas corrijam o costume de cuspir nas ruas. A matéria ‘Uma revolução, um bilhão de histórias’, publicada no dia 23, destacou a influência da Revolução Chinesa na literatura do país e como os escritores se inspiram no acontecimento para escrever.

Entre as reportagens presentes na Edição Especial sobre as Olimpíadas, a revista apresentou duas pequenas matérias diretamente ligadas ao país: a primeira foi sobre os preparativos para os jogos e citou a precaução chinesa com o meio ambiente – incluindo a colaboração do exército chinês. Com vasta variedade de fotos, os leitores puderam conferir instalações como o Estádio Nacional de Pequim (em forma de ninho), o Centro Aquático Nacional, o novo terminal do Aeroporto Internacional de Pequim. A segunda reportagem, intitulada ‘Bem vindos, atletas do mundo’, mostrou as características e transformações da Vila Olímpica. Entre elas, a redução de poluentes nas áreas próximas e a adaptação do tamanho das camas para os atletas.

O destaque, entretanto, coube à edição do dia 06 de agosto, quando a China apareceu, além da capa, em mais de 15 páginas da revista. A reportagem especial ‘A Nova Revolução Cultural’, descreve, de maneira detalhada, todas as modificações que a população se submeteu a fim de sediar as Olimpíadas. O enfoque coube ao espírito de adaptação da maioria dos chineses para ‘maquiar’ hábitos e costumes, visando o bom andamento dos jogos, sem que precisassem aos menos ser persuadidos para tal. O país enfrentou uma severa reeducação e grande parte das ações privilegia o público de fora, sem que os chineses ficassem incomodados. Na realidade, tudo o que se vincula ao evento esportivo é encarado como prioritário. Mais do que uma obrigação, trabalhar pelo bem os Jogos Olímpicos é visto pelos chineses como uma honra.

A matéria procura explicar, ainda, as razões para tamanho cuidado e entusiasmo diante das Olimpíadas. Pela primeira vez na História, os chineses vivenciam a chance de uma aproximação direta com o resto do planeta, e, com ela, a possibilidade de usufruir de tecnologias que antes lhe eram restritas. Geograficamente perto, embora ideologicamente distante do mundo globalizado, o país agora tem uma chance de interagir com as outras nações.

Mas não é só Pequim que preenche as páginas da Veja com informações e ilustrações de grande importância. A matéria, também da edição de 06 de agosto, com título ‘As catedrais de Xangai’, aborda quase que exclusivamente a cidade, se não fossem algumas pequenas comparações com Pequim e com o próprio Brasil. A arquitetura local, no que diz respeito aos arranha-céus, é elogiada, assim como a tecnologia que permite a construção dos prédios mais altos do mundo em tempo recorde. Xangai concentra hoje dez dos 100 maiores edifícios do mundo.

A partir desta edição, durante os 17 dias de evento, a revista veiculará a série especial ‘Cenas da China’, um conjunto que pequenas notas que contêm curiosidades e informações peculiares sobre o país e os Jogos Olímpicos. A principal avenida comercial de Xangai, as aulas de mandarim da Vila Olímpica, o monitoramento expressivo na Praça da Paz Celestial e o casamento chinês foram assuntos abordados na primeira publicação da série.

Em época de Olimpíada

Época, a segunda revista semanal mais vendida no Brasil, apresentou, nas quatro edições do período de análise, matérias diretamente ligadas à China, assim como trouxe um especial sobre o país. Além disso, contou com uma série de quatro fascículos – três deles no período proposto – sobre as competições. No total foram 25 páginas de conteúdo relacionado ao país, incluindo 41 fotos referentes ao mesmo assunto.

Veja a tabela da revista Época

A primeira edição do mês de julho, publicada no dia 7, veiculou uma reportagem sobre a nova arquitetura da China. O artigo realça que, através desta área da engenharia, o país quer se mostrar como uma nação inventiva, sofisticada e aberta para o mundo. A China utilizou três quesitos fundamentais para erguer as construções em tempo recorde: energia, dinheiro e batalhões de operários nacionalistas. Foram gastos US$ 34 bi no projeto dos jogos durante os cinco anos de obras.

O exemplar do dia 14 de julho enfatizou os campos da China e suas características: a colheita do arroz e de outros produtos agrícolas e os problemas que as populações pobres do país enfrentam – como a falta de apoio do governo, a poluição da região e as minorias étnicas. Em síntese, relatou as dificuldades que os chineses dessas localidades têm em termos de trabalho, condições de vida e cultura.

A terceira edição abordou a nova geração da China e trouxe um encarte apresentando a cidade sede das Olimpíadas. A primeira matéria retratou os adolescentes chineses como uma juventude extremamente patriota, competitiva, vaidosa e ambiciosa. Os jovens buscam celulares com câmeras, computadores, roupas de grife; têm fome e sede de tecnologia. Já o fascículo se propôs a mostrar o potencial da China nesses jogos. O país conta com quase um quinto da população mundial e pela primeira vez os chineses ameaçam, de fato, a supremacia norte-americana na competição. Outro assunto que a revista veiculou foi a polêmica na escolha da China como sede das Olimpíadas, já que a política governamental desrespeita os direitos humanos.

A quarta e última publicação de julho trouxe uma matéria sobre o desafio da China em desfazer a imagem de maior poluidor do planeta. A poluição é tamanha que o câncer pulmonar e o intestinal são as maiores causas de mortes no país. A reportagem apresentou os seis maiores problemas ambientais, o que vem sendo feito até agora para contornar a situação e outras possíveis soluções a serem tomadas.

Uma nação em metamorfose

Desde 2001, quando se decretou que a China seria o país sede dos Jogos Olímpicos de 2008, iniciou-se uma discussão sobre até que ponto a nação era – ou não – merecedora da missão. Desde então, o país assumiu um sério compromisso para que o evento tivesse o melhor resultado possível e empenhou-se, como nunca, em transmitir uma imagem cada vez melhor ao mundo inteiro.

Na verdade, já faz algumas décadas que a China enfrenta uma série de transformações, e talvez seja possível afirmar que o país modificou-se mais nesses últimos anos do que em toda uma trajetória de séculos. As Olimpíadas, no entanto, proporcionam um determinado ar de vitória em meio a tantas mudanças em decorrência de um passado trágico. Não se pouparam esforços para elevar o evento esportivo à condição de espetáculo e isso, combinado à abrangência das próprias competições, faz com que o país seja agendado pela mídia como poucas vezes na História.

É possível afirmar que, de um modo geral, a cobertura pré-olimpíada foi equilibrada: ao mesmo tempo em que se abordaram graves problemas chineses, foram apontadas as medidas tomadas com o propósito de revertê-las e os resultados alcançados pelo governo até então. Os julgamentos ou representações mais diretos sobre o país ficaram restritos às afirmações há muito tempo generalizadas: o fato de a China ser o país que mais polui o ecossistema e de o governo não respeitar os direitos humanos. Apesar disto, inúmeras peculiaridades e características culturais, que fazem da China uma nação singular, foram mencionadas de maneira positiva.

As publicações deixaram claro o fascínio que os chineses têm pelos Jogos Olímpicos, ou, mais precisamente, pela oportunidade de poder organizá-los. Diante do sistema político que, desde 1949 governa os chineses, e do modelo de vida adotado, as mudanças que as Olimpíadas trouxeram ao país são muito bem recebidas pela população. Esta nova realidade foi o mais importante tema retratado pela mídia impressa brasileira no recorte aqui analisado, que, simultaneamente, não deixou os receptores esquecerem detalhes históricos como, por exemplo, a repressão vivida durante o governo de Mao Tsé-tung. Desta maneira, as revistas fizeram um paralelo entre os dias atuais e as décadas anteriores, construindo uma representação de que tais transformações vêm, de fato, em benefício dos habitantes locais.

A questão ambiental foi também retratada; a abordagem deveu-se ao fato de a China ser a maior poluidora mundial e da grande quantidade de medidas tomadas para reverter este quadro. É válido acrescentar que as revistas questionaram se tamanha conscientização não seria apenas em virtude dos jogos. Ou seja, permanece a dúvida de qual seria o comportamento adotado em relação ao meio ambiente caso a China não sediasse o evento neste ano.

É evidente que, até então, o desafio assumido pela nação em 2001 foi cumprido com êxito. E, mesmo com o fim das competições, este desafio pode ser a grande chance de a China modernizar-se em diversos aspectos, desde que saiba redirecionar-se para tal. Talvez o esforço chinês em transmitir uma postura patriota e responsável instigue mais o público do que as realizações em si. O que ninguém pode negar é que, independente do número de ouros, pratas e bronzes, o país já pode se considerar um vencedor, ao menos esta é a principal representação construída nas publicações analisadas.

Referências

ABRIC, Jean-Claude. O estudo experimental das representações sociais. In: JODELET, Denise. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

LEFÉVRE, Fernando; LEFÉVRE, Ana Maria Cavalcanti. O Discurso do Sujeito Coletivo – Uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: EDUCS, 2003.

LEFÉVRE, F. O discurso do sujeito coletivo – breve apresentação da proposta. Disponível em http://hygeia.fsp.usp.br/~flefevre/resumo.html. Acesso em 25/11/02.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.

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Do Monitor de Mídia