Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O desafio de um curso de Jornalismo

O oportunismo de alguns empresários da educação e o questionamento judicial do diploma fizeram com que a simples notícia do surgimento de um novo curso de Jornalismo fosse vista com desconfiança por profissionais e estudiosos da comunicação. Algumas destas opiniões já enriqueceram as páginas do Observatório da Imprensa. Resta saber se, no entanto, não haveria lugar para iniciativas sérias.

As mesmas desconfianças que a reitoria e a direção do campus do Alto Araguaia da Universidade Estadual de Mato Grosso tiveram que enfrentar quando propuseram a mim e à lingüista e professora de Comunicação Jauranice Cavalcanti a elaboração de um projeto pedagógico para aquele que talvez seja um dos poucos cursos de Jornalismo em áreas semi-rurais do país.

Diante do convite, algumas questões teriam que ser pensadas para driblar a simples constatação de que quase tudo em mídia se faz em ambientes urbanos. E a primeira delas é o fato de que já se foi o tempo em que as redações eram o único local de trabalho do jornalista. Empreendedor, consultor, especialista em divulgação para campanhas de saúde e educacionais são algumas das novas possibilidades de aplicação jornalística.

O comunicador, aquele que comunica a partir da posição do outro e domina os meios discursivos e tecnológicos para que conteúdos adequados cheguem ao seu destino, aos poucos deverá ser reconhecido na sociedade como de fundamental importância para a engrenagem da administração pública e para a ação de corporações e empresas. Esta percepção obriga o novo jornalista a pensar a comunicação social de forma integrada, o que desfaz a tese tão nova quanto anacrônica de que seria necessário separar o Jornalismo do curso de Comunicação.

Mais viável

Um terceiro problema a ser pensado: como montar um curso que viria a formar alunos que não desempenhassem o papel de pura correia de transmissão dos modelos do Centro-Sul urbano, fonte de estereótipos tolos. A previsão de disciplinas teóricas como Estudos Culturais, a inserção de temas regionais na cadeira de História e a inclusão da sócio e da etnolingüística já nos primeiros períodos, da mesma forma que disciplinas práticas de jornalismo especializado (turismo, meio ambiente e jornalismo rural), mostram essa preocupação. Tudo entrelaçado a práticas laboratoriais nas comunidades.

Do ponto de vista das técnicas, um dos desafios era perceber as novas tecnologias não como lugar apenas de um novo saber-fazer, mas como espaço em que emergem novos posicionamentos sociais para os jornalistas e novos sentidos públicos de sua profissão.

Ora, embora novidades tecnológicas quase sempre se transformem em fetiches de mercado, é importante compreender, sem tecnofobia, que um curso como esse, em Alto Araguaia, se torne ainda mais viável por causa delas: caíram demasiadamente os custos da montagem, por exemplo, de um estúdio de tevê por causa dos equipamentos digitais. E, portanto, também o custo da aquisição de uma câmera, por exemplo, por parte do futuro jornalista – considerando que o videorrepórter já é uma realidade tanto para a mídia pública quanto para a corporativa.

Produto atraente

Além disso, a produção online permite que o jornalista, mesmo a longas distâncias, produza também para os grandes centros. A rede deslocou a percepção de centros produtores. E a descentralização da produção poderá mexer com a distribuição de conteúdos. Com isso, o curso vem atender a uma demanda fundamental, que é a de habilitar profissionais para a produção de conteúdo com a voz local, seus interesses, suas visões de mundo.

Uma atenção especial foi dada ao estudo das linguagens. Jornalistas, ademais, como todos os profissionais de mídia, trabalham com a matéria-prima da linguagem, entendida não como mero instrumento, mas como lugar de posições ideológicas do sujeito. Nesse aspecto, o curso da Unemat foi concebido com a preocupação de reequilibrar as bases teóricas da comunicação: ciências da linguagem e ciências sociais. Nesse curso, semiótica, as já citadas sócio e etnolingüística e a análise de discurso são disciplinas que darão subsídio às atividades do proposto laboratório de linguagens.

Não sabemos ao certo se esse grande potencial do campo jornalístico é que fundamentou tão boa procura. O vestibular para Comunicação do campus de Alto Araguaia atraiu mais que a soma dos cursos lá existentes. Talvez os meninos, quase crianças, não saibam o mundo novo que os espera. Talvez eles ainda pensem nas estrelas do jornalismo como seus guias, referências e modelos. Talvez sonhem (e devem sonhar sempre) com o lugar do William Bonner. Nada mal. Mas eles chegam em boa hora. Se os anos 90 foram promissores devido às novas tecnologias de comunicação, o novo século fez do jornalismo o produto mais atraente da mídia.

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Doutorando em Lingüística, subárea Análise de Discurso (Unicamp), mestre em Comunicação (UFF)