Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O dia depois de ontem

Às 6h23 (7h23 no horário de Brasília) do domingo, 11 de setembro de 2011, o voo 120, da Delta Airlines, vindo de São Paulo, aterrissou com segurança no aeroporto John Fitzgerald Kennedy, em Nova York, Estados Unidos. Enquanto a aeronave percorria a pista, cumprindo ritual de desembarque, ouvi a primeira referência ao 11 de setembro, aos atentados terroristas levados a cabo com aviões comerciais transformados em mísseis. “Numa manhã como essa, dez anos atrás, terroristas…”, começou a recordar em voz límpida, ao alto-falante, um dos integrantes da tripulação. “Dez anos depois, ainda está viva a dor pelas vidas perdidas. Mas não, não pedirei um minuto de silêncio. Pedirei uma salva de palmas aos heróis, bombeiros, policiais, que se sacrificaram voluntariamente naquele dia. Junte-se a mim numa salva de palmas”, pediu. E os mais de 300 passageiros bateram palmas. Uma salva que durou menos de trinta segundos.

A TV do serviço de imigração, sintonizada na CNN, exibe imagens ao vivo diretamente do Marco Zero, onde despontava o complexo do World Trade Center e seu símbolo de grandeza maior, as Torres Gêmeas, alvos dos ataques de 11 de setembro de 2001. O presidente Barack Obama, assim como seu antecessor, George W. Bush, chega para as cerimônias dos dez anos do 11 de setembro. Rezará, ao lado de Bush, por aqueles que estiveram um dia ali.

Inaugura-se neste domingo, oficialmente, no mesmo local dos ataques às torres, o Museu e Memorial Nacional do 11 de Setembro (veja aqui), em homenagem aos quase três mil mortos nos atentados daquele dia às torres do WTC, ao Pentágono (sede do Departamento de Defesa norte-americano) e na queda de um quarto avião comercial na Pensilvânia cujo objetivo era atingir o Capitólio (sede do Congresso Nacional dos Estados Unidos). O memorial reúne iconografia de todos os mortos, objetos que resistiram aos escombros e também homenageia as seis vítimas do atentado à bomba no estacionamento do mesmo WTC, em 26 de fevereiro de 1993. O alto-falante do aeroporto pede agora um recesso nas atividades, entre 8h46, a hora do choque do primeiro avião, contra a Torre Norte; e 9h03, o horário da colisão do segundo avião, contra a Torre Sul do World Trade Center.

As águas do rio East, em Roosevelt Island, Manhattan, são silenciosas na manhã parcialmente ensolarada deste domingo. No jardim à beira-rio, um homem brinca com seu beagle, atirando-lhe um graveto. Duas moças bem branquinhas passam correndo, no exercício. Dois jovens de origem filipina brincam de bola, num largo gramado ao lado da imponente ponte Queensboro. Chamam-se Chris, 18, e Regina, 17. Do 11 de setembro e de suas consequências ambos têm memórias antigas e recentes: segundo Chris, um amigo de sua mãe era terrorista na época. “Deve estar morto.” Regina tem um namorado de origem brasileira que está, desde junho, lutando pelos Estados Unidos na Guerra do Afeganistão. O início do embate norte-americano contra o regime do Talibã no Afeganistão foi a primeira das muitas reações bélicas aos atentados terroristas de 2001, com o lançamento da propalada Guerra ao Terror, declarada pelo governo Bush. Regina resume a saudade do namorado em bom português aprendido com ele: “Eu sinto sua falta.” Os dois se comunicam por e-mail e por carta. Para a jovem mulher, a guerra, que se prolonga desde outubro de 2001, já poderia ter terminado. “Mas eles [os governantes e militares] não querem parar.”

Bandeirinhas por dois dólares

Estação Lexington do metrô, linha E. Tyione Cooper, natural do Bronx, bairro tradicionalmente negro e pobre de Nova York, integrante da igreja The Deliverance Church, prega aos passageiros na plataforma de embarque, em alta e grave voz. Ninguém parece ouvi-lo, mas ele não se importa. “God is love! God is good!” Tyione, um clown shakespeareano do circuito off-Broadway, loucamente divertido, garante que Deus faz maravilhas na vida de qualquer um que o aceite e exemplifica com a sua: deixou de jogar, de beber e de fumar.

Ele profetiza que Deus agirá contra os Estados Unidos com grande fúria, gerando destruição, uma vez que os homens só se preocupam com o valor do dinheiro. Neste 11 de setembro, este homem só acredita num único caminho para o seu país e para o mundo: “Paz, amor e união”.

“Flags! American flags! White, red and blue! Flags! American flags!”, é Randy Johnson anunciando o pregão de sua mercadoria tremulante para os milhares de norte-americanos e turistas estrangeiros que circulam neste domingo nas cercanias de onde emerge, dia a dia, o novo complexo do World Trade Center. Haverá uma torre, já em construção avançada, chamada Freedom Tower (Torre da Liberdade), com os mesmos 417 metros das Torres Gêmeas, mas com uma antena mais espichada, que a lançará à condição de edifício mais alto do país, com 541 metros de altura. As bandeirinhas do país custam dois dólares (tarde da noite sairão por um dólar) e Randy diz já ter vendido quatro dúzias delas. “Flags! American flags!”, Randy estimulando o espírito cívico.

“Verdade, justiça, perdão”

Depois de ter voluntariamente ajudado e orientado quem veio assistir à cerimônia de inauguração do Museu e Memorial do 11 de setembro, sobre como ir, como vir, o que fazer, o que não fazer, Nelly Vazquez, natural da República Dominicana, há 25 anos vivendo nos Estados Unidos, está pronta para voltar a casa. Mission accomplished. Nelly, de olhos negros largos e doces, explica, com voz suave e calma, tranquilizadora, que não se pode levar a vida adiante alimentando o ódio. “Senão, não se vive.” Reconhece que, durante muito tempo, desconfiou do próximo, quando o próximo esteve mais próximo. Reflexo da violência e do discurso onipresente do medo, em toda a parte e mídia. Era tempo de assombro, de dúvida, de estima baixa. Hoje, mudou e recobrou a confiança no ser humano.

De toda a negatividade do 11 de setembro, Nelly, que é viúva e mãe de dois filhos, pôde testemunhar a retirada do bem mais valioso dos escombros: a valorização da vida e da solidariedade. “Isso veio dos atentados. Nós precisamos amar a nós mesmos e a nossos vizinhos. E não digo o vizinho de casa, digo o do mundo inteiro.” As palavras de Nelly emocionam; eu a abraço filialmente, olhos de rio, quando nos despedimos.

A avenida Broadway, que ladeia o complexo do WTC, no centro cívico de Manhattan, regurgita. Há centenas de policiais de campana em todos os cantos e esquinas. Até parece filme policial norte-americano. O acesso a algumas ruas é interditado. Com mochilas, entrar, nem pensar. As grades negras da capela de St. Paul, a mais antiga de Nova York, onde George Washington, um dos pais da nação, discursou após tomar posse, em 1789, como primeiro presidente da história dos Estados Unidos, estão recobertas de centenas de fitas brancas. Em cada uma delas, mensagens de pesar pelos mortos nos ataques e, sobretudo, de esperança aos vivos. Numa fita entregue a mim, escrevo, à caneta azul: “Verdade, justiça, perdão”. E a amarro na ponta superior da grade negra, com um laço só.

Invectivas por igualdade e verdade

As cerimônias pelos dez anos do 11 de setembro atraem todo tipo de gente, de todos os espectros sociais, políticos e religiosos. Se é o dia de lembrar os mortos, de chorar e orar por eles, é também o dia de lutar por um outro país. Por um outro mundo. Melhor. A solução pode ser aceitar Jesus, ou Maomé, ou Buda, ou mesmo Karl Marx e Che Guevara.

Um homem ao melhor estilo “Jamaica no problem” faz oferta curiosa e indica que os problemas do mundo podem bem se resolver com uma boa audição personalizada e atenta, estão aí os psicoterapeutas para endossar a petição: “Eu ouço seus problemas por 5 dólares”, em letras grandes no cartaz. É serviço raro, o de se dispor a ouvir o outro e, como indica, os Estados Unidos padecem do mal. Mas por que importa ouvir o outro? “Porque todo mundo tem problemas”, sintetiza o homem, sorrindo por detrás dos óculos escuros, e pedindo, bem-humoradamente, um dólar pela foto. Também sorrindo e cumprimentando-o, na malícia, desavergonhadamente ignoro seu pedido.

Outro homem, este já de longa vida, taciturno, está debruçado sobre um dos cavaletes de proteção metálica que se espraiam a perder de vista; e não está para conversa, não. Apenas range, entre dentes, enquanto ostenta o estandarte em comemoração à morte de Osama bin Laden, o líder da rede terrorista Al-Qaida, mentor e financiador dos ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, morto pelo Exército norte-americano em maio último: “Meu nome não é relevante, o relevante é que o homem que nos causou tudo isso está morto”.

No outro lado da avenida Broadway, no quarteirão imediatamente anterior à capela e diante dela, concentram-se os protestos antiamericanos, organizados pelos próprios norte-americanos. Muitos deles descendentes de estrangeiros que se fixaram no país. São os homens e mulheres que lutam por um outro posicionamento para a “América”, mais generoso, mais consequente. Há cartazes e faixas contra a era Bush, cartazes e faixas que dizem que o 11 de setembro foi uma farsa engendrada pelos próprios norte-americanos. Há cartazes e faixas por empregos, por liberdade de expressão, por liberdade de culto. Homens bradam, em número pequeno, e se fazem ouvir pela persistência. Serão horas consecutivas de invectivas por igualdade e verdade.

A morte transformada em símbolo

Gavriela Gemma e Heathercottin trabalham para a International Act Center (Centro de Ação Internacional), uma organização civil que organizou mobilização neste domingo, até com carro de som. As duas montaram uma barraca onde distribuem panfletos contra as intervenções dos Estados Unidos na Líbia, pelo respeito aos direitos humanos de cidadãos norte-americanos de origem árabe, como os dos palestinos, que reclamam de ser constantemente espionados e humilhados. Pedem mais empregos. “Nós não estamos nos manifestando aqui contra as cerimônias do 11 de setembro. Estamos aqui contra o racismo, contra a perseguição a cidadãos”, explica Gavriela. “Desde 2000 já perdemos 30 milhões de empregos no país. Estamos aqui por empregos, pelo futuro, pela boa educação dos nossos filhos”, completa Heathercottin.

O veterano de guerra Bill Steyert serviu na Marinha em 1966 e 1967, durante a Guerra do Vietnã (1959-75). Hoje é um soldado às avessas, servindo na organização Veteranos pela Paz. “Tinha escolhido a Marinha só por causa das viagens, não porque gostasse de guerra”, diverte-se. Bill, que é casado pela segunda vez e tem uma neta, conta não ser mais tão ingênuo quanto foi, mas diz ainda acreditar na força do presidente Barack Obama de mudar o país. Elogia as conquistas sociais na área da saúde, que garantiram o atendimento gratuito e amplo à população mais pobre do país. “Se colocarmos um pouco mais de pressão sobre Obama, ele vai conseguir fazer mais coisas. Esta é a parte mais importante da democracia, a participação da população.”

A noite vem chegando a Nova York. Acedem-se as luzes da cidade. Ela vai se transformando pouco a pouco, parece mais íntima. As luzes na futura Freedom Tower estão acesas e ela se destaca no ar. Uma banda toca músicas de sonoridades agudas e extravagantes, devem ser gaitas de fole, a distância não permite que as distinga, em homenagem aos “heróis” do 11 de setembro. A bandeira do Corpo de Bombeiros está estendida ao lado da bandeira dos Estados Unidos, na parede à minha direita. Nos atentados ao WTC, contabilizaram-se 343 bombeiros mortos ou desaparecidos. Às minhas costas, descubro, assombrado, o facho duplo paralelo de luz projetado no céu, a alma insone das torres mortas. É uma luz branca e estranha, leitosa, que se mistura e dilui no céu parcialmente encoberto. Há algo de fantasmagórico, admito. Há algo que se precisa deixar ir, peço. A mulher, quando por ela passo, fala em bolas de fogo, com o genuíno entusiasmo de testemunha ocular da história.

Com a morte paulatinamente transformada em símbolo, em história bem narrada e documentada, o luto vai se convertendo em luta; é tempo de tocar em frente. Ontem mesmo sonhei com duas grandes torres em formato de bebedouro de beija-flor.

***

[Guilherme Azevedo é jornalista, de Nova York (EUA)]