Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O espetáculo da vida real

Ao refletir sobre os textos de Umberto Eco sobre Semiótica e, especialmente, sobre alta e baixa cultura – de massa ou não –, torna-se interessante relacionar suas considerações com um dos programas sazonais de maior audiência da Rede Globo de Televisão: o Big Brother Brasil (que neste texto será citado por sua sigla, BBB). Em sua 11ª edição, o programa tem tradicionalmente duração de três meses, iniciando na segunda semana de janeiro e terminando no início de abril.

As críticas ao modelo do programa são as mais variadas. A principal, que trata da espetacularização da vida de um grupo de pessoas confinadas em uma casa, pode ser diretamente relacionada ao conceito de espetáculo de Guy Debord, para quem…

‘…toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. […] O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo. […] Não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas coisas. […] A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência’ (Debord, 2003, p. 13-17).

Assim, o BBB é mais uma forma de espetacularizar a vida comum, tornar a rotina de um grupo de pessoas um produto midiático que, ano após ano, repete uma fórmula de sucesso entre os telespectadores. O Big Brother Brasil é um exemplo da baixa cultura de massa, na qual as obras constituem uma paródia, uma depauperação completa da cultura, uma falsificação realizada para fins comerciais e de consumo, como define Umberto Eco (2004). E como isso ocorre?

A lei da oferta e da procura

Primeiro, considera-se que o elenco do programa, no qual as pessoas são chamadas de participantes, é uma representação do Brasil. Assim, espera-se que cada telespectador se reconheça em algum participante: o homem, a mulher, o homossexual, o intelectual, o ‘bobinho’, o malandro, o correto… Com isso, são criados ‘fã-clubes’ (principalmente virtuais) para os participantes, nos quais as pessoas que se identificaram torcem, trocam impressões e defendem seu BBB semelhante. Esta relação exemplifica o pensamento apocalíptico de Eco, quando acusa os mass media de tenderem a ‘provocar emoções intensas e não mediatas; em termos: ao invés de simbolizarem uma emoção, de representá-la, provocam-na; ao invés de a sugerirem, entregam-na já confeccionada’ (Eco, 2004, p.40).

Os participantes do reality show são como personagens de uma história. Eles vivem uma paródia da vida real, o que é chamado de ‘realidade dentro da casa’, que pode ser conferida ao vivo em canal pay-per-view ou pelo site do programa. Entretanto, a maioria da população assiste ao programa nos horários determinados pela emissora, que também é responsável pela edição da ‘realidade da casa’. Este público majoritário acompanha a história que a direção do programa deseja, criando uma significação dos personagens conforme a mensagem que recebe. Ou seja, a pessoa ‘real’ que participa do programa deixa de ser ela mesma e torna-se um signo, compreendido pelo receptor conforme sua bagagem cultural. Essa compreensão pode ocorrer de forma positiva, quando o receptor se reconhece no outro, ou de forma negativa, quando isso não acontece, pois ‘os mass media tendem a impor símbolos e mitos de fácil universalidade, criando tipos prontamente reconhecíveis e por isso reduzem ao mínimo a individualidade e o caráter concreto não só de nossas experiências como de nossas imagens’ (Eco, 2004, p.41-41).

Outra representação que relaciona a ‘vida na casa’ com a ‘vida real’ é a rotina. Os participantes têm atividades diárias que devem ser cumpridas, assim como nós temos em nosso dia-a-dia. E é nestas atividades que os patrocinadores do programa marcam presença. Nas segundas-feiras pela manhã, por exemplo, a rede de supermercados Carrefour instala, no pátio da casa, uma unidade onde os participantes fazem compras. O guaraná Antarctica é o refrigerante oficial da casa e a Kibon, em momentos especiais, disponibiliza freezers com seus lançamentos de verão. Estas ações, como afirma Eco, reforçam que ‘os mass media estão sujeitos à lei da oferta e da procura […], seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar’ (Eco, 2004, p.40-41).

Cultura e nivelação classista

É interessante frisar que Eco, no texto ‘Cultura de massa e níveis de cultura’, destaca que o consumo dos produtos de massa, em diferentes níveis, acontece por fruição, e não por classe social. Assim, uma pessoa de nível intelectual superior pode dar-se ao deleite de assistir a filmes trash, ler histórias em quadrinhos e conferir os programas televisivos matutinos (voltados a donas de casa) ou até o BBB. Para Eco, neste momento ele ‘aceita acanalhar-se e não formula exigências particulares ao produto que usa; assim fazendo, aceita descer de nível, diverte-se bancando o `normal´, igual à massa que, de coração, despreza, mas da qual sofre o fascínio, o apelo primordial’ (2004, p.59). É o caso dos ‘homens da cultura’ (como define Eco), que consomem o produto e somente enxergam nele características negativas.

Para o autor, o problema da relação entre os níveis de cultura está no caminho oposto: a necessidade de alcançar ao consumidor comum – que normalmente tem acesso a baixa cultura de massa – os conteúdos da alta cultura de massa ou até da alta cultura propriamente dita. Ao defender a cultura de massa e esclarecer que ela não quer substituir a cultura dita superior, ele cita que ‘o homem que assobia Beethoven porque o ouviu pelo rádio já é um homem que, embora ao simples nível da melodia, se aproximou de Beethoven’ (Eco, 2004, p.45).

Os ‘discursos de eliminação [em que o apresentador anuncia a eliminação de um participante acontece, normalmente, nas quintas-feiras; entretanto, conforme o andamento do programa, pode ocorrer duas vezes por semana, acontecendo também nos domingos]‘ do jornalista e apresentador do programa, Pedro Bial, parecem querer resolver este problema. Ao falar das características dos participantes, ele faz citações de autores consagrados, no Brasil e no exterior. Sempre credita os autores das frases que, se usarmos as classificações de nível de Eco, são no mínimo da média cultura de massa, quando não da alta cultura de massa ou da alta cultura propriamente dita. Estas citações comprovam que os níveis culturais não correspondem a uma nivelação classista nem representam graus de complexidade. Por acompanhar os ‘personagens dessa história da vida real’, o telespectador consegue significar, dentro da sua realidade, pensamentos que normalmente recaem do homem de cultura.

A fórmula do sucesso

O entretenimento gratuito oferecido pelo programa existe, conforme Eco (2004), desde que o mundo é mundo: as mesmas multidões que se regozijavam ao ver a luta entre gladiadores e as decapitações na Idade Antiga hoje divertem-se em frente à televisão assistindo a eliminação de um brother (participante) – o que, como afirma semanalmente Pedro Bial, significa a morte na ‘realidade da casa’. Neste caso, morrer ganha uma nova significação: deixa de ser perder a vida real, concreta, e passa a ser ‘deixar de participar do jogo’.

Sejam personagens ou pessoas reais, seja o BBB a ‘vida real’ ou a ‘realidade dentro da casa’; independente da significação que o receptor dá aos fatos e aos participantes, o programa pode ser considerado um exemplo de produto de baixa cultura de massa que é consumível a nível disperso. E que, por ter enredo construído conforme a aceitação do público e produção digna das mais caras telenovelas brasileiras, acaba chamando a atenção também do ‘homem de cultura’, que busca compreender a fórmula do sucesso do programa.

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Jornalista, especialista em História, Comunicação e Memória do Brasil Contemporâneo, mestranda no mestrado acadêmico em Processos e Manifestações Culturais