Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O personagem em destaque

Há muitas maneiras de escrever uma história, mas nenhuma pode existir sem personagens. Também são inúmeras as formas de apresentá-los e caracterizá-los. Em todo texto noticioso, existe sempre um momento da narrativa em que a ação se interrompe para dar lugar à descrição (interior ou exterior) de um personagem. É quando o narrador faz o que, em jornalismo, convencionou-se chamar de perfil.

Neste texto, o objetivo é conceituar o que é a reportagem-perfil, apresentar os modos de fazê-la e seus tipos. Para isso, buscamos o que autores brasileiros falam sobre o assunto.

Perfil ou reportagem-perfil faz parte do gênero jornalístico informativo. E, dentro dessa classificação, podemos inseri-lo na categoria dos textos noticiosos chamados de feature, ou seja, uma notícia apresentada em dimensões que vão além do seu caráter factual e imediato, em estilo mais criativo e menos formal. Nessa categoria estão incluídos os perfis e as histórias de interesse humano.

Momentos da vida

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, no livro Técnica de reportagem – notas sobre a narrativa jornalística (1986), explicam que perfil, em jornalismo, “significa dar enfoque na pessoa – seja uma celebridade, seja um tipo popular, mas sempre o focalizado é protagonista da história: sua própria vida”.

O perfil pode ser leitura saborosa quando consegue contar passagens relevantes da vida e carreira do entrevistado, colher suas opiniões em assuntos importantes, ouvir o que dizem dele os amigos e os inimigos, mostrar como faz o que faz.

Sérgio Vilas Boas, no livro Perfis – e como escrevê-los (2003), diz que, diferentemente das biografias em livro, em que os autores têm de enfrentar os pormenores da história do biografado, os perfis podem focalizar apenas alguns momentos da vida da pessoa. É uma narrativa curta tanto na extensão (no tamanho do texto) quanto no tempo de validade de algumas informações e interpretações do repórter.

O filão mais rico

Em geral, no jornalismo brasileiro, segundo registra Daniel Piza, no livro Jornalismo Cultural (2003), os perfis terminam sempre glamourizando o personagem (detalhando alguns de seus gestos elogiáveis, por exemplo) ou desancando-o (dando corda para seus detratores), dois erros semelhantes pelo fato de que põem o autor à frente da obra.

O bom perfil, ressalta Piza, nunca esquece que aquele criador está em destaque pelo que fez ou pela reputação que ganhou fazendo o que fez. “É intimista, sem ser invasivo; e interpretativo, sem ser analítico.”

Para o jornalista Ricardo Kotscho, no livro A prática da reportagem (1995), o perfil é o “filão mais rico das matérias chamadas humanas”, pois dá ao repórter a chance de fazer um texto mais trabalhado – seja sobre um personagem, um prédio ou uma cidade.

Sem preconceito

Um bom perfil, segundo ele, pode ser feito em apenas algumas horas, se for um assunto do dia, que exija urgência. Ou levar mais de um mês para ser concluído, como acontecia na revista Realidade, que ia ouvir dezenas de pessoas que pudessem fornecer mais elementos sobre o personagem central.

Para fazer um perfil é necessário que o repórter se municie previamente sobre o tema de que vai tratar. O motivo é simples: para ir fundo na vida de uma pessoa ou de um lugar é preciso, antes de mais nada, conhecê-lo bem. Estas informações prévias podem ser conseguidas no arquivo do jornal, em pesquisa na internet ou com pessoas ligadas ao assunto.

Preparar perguntas e levantar os pontos polêmicos que serão tratados na matéria é o início do trabalho. “Mas o repórter deve estar sempre livre de qualquer preconceito, qualquer idéia pré-fixada pela pauta ou por ele mesmo. É a sua sensibilidade que via determinar o enfoque da matéria”, ressalta Ricardo Kotscho.

O ideal e o possível

No perfil, ao contrário das matérias investigativas, Kotscho recomenda que é bom deixar claro, logo de cara, qual é o objetivo da matéria. O repórter tem que ganhar a confiança do entrevistado para poder conseguir arrancar tudo dele.

Sempre é bom conversar um pouco antes de começar a matéria propriamente dita – sentir, estudar o outro, observá-lo. É interessante também observar o ambiente em que ele se encontra, no caso do repórter ir se encontrar com o entrevistado em sua casa ou no seu local de trabalho. Essa observação é interessante porque os objetos pessoais do entrevistado mostram um pouco da personalidade dele.

O ideal, ao fazer um perfil, é que o repórter encontre o entrevistado pessoalmente. O contato pessoal proporciona detalhes que podem ser fundamentais para a apuração. Mas, às vezes, por problemas de tempo ou de estrutura (nem sempre o repórter tem um carro à disposição para ir encontrar o entrevistado ou tem muitas pautas para cumprir naquele dia), a opção acaba sendo fazer a entrevista por telefone ou por escrito (por e-mail).

Mil maneiras

Diante do “perfilado”, que pode ser um herói ou um anti-herói, Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari afirmam que o repórter tem, via de regra, dois tipos de comportamento: ou mantém-se distante, deixando que o focalizado se pronuncie, ou compartilha com ele um determinado momento e passa ao leitor essa experiência.

No primeiro caso, o repórter deixa que o personagem se apresente, ou seja, valoriza suas declarações e o que ele diz sobre ele. No segundo caso de construção de perfil, o narrador (o repórter) relata a experiência do encontro no momento em que ele se dá e, a partir daí, vai apresentando o perfilado. O repórter, nesse segundo caso, traz a experiência para o presente, o texto intensifica a impressão da realidade, ao mesmo tempo em que compartilha com o leitor a descoberta do caráter do entrevistado.

Ricardo Kotscho diz que há “mil maneiras de se fazer um perfil”, e, uma delas, é acompanhar um dia na vida do personagem ou do lugar. Outra dica do experiente jornalista: há personagens transparentes, que revelam seu perfil na hora, vão falando sem esperar perguntas; outros, exigem muita paciência do repórter, que não deve ficar aflito quando a conversa foge do seu roteiro.

Narradores e objeto

Muniz Sodré e Maria Helena Ferraria apresentam uma tipologia da reportagem-perfil:

** Personagem indivíduo – O retrato que o repórter faz do perfilado é mais psicológico que referencial. O interesse recai sobre a atitude do entrevistado diante da vida, seu comportamento, a peculiaridade de seu modo de atuação. O narrador, logicamente, acentua o lado de maior destaque do perfilado.

** Personagem tipo – Nem sempre estamos diante de personalidade tão surpreendentes. É o caso, por exemplo, de celebridades que se inscrevem em categorias: esportistas, cantores, milionários, princesas etc. O normal, nesse caso, é enfatizar, no perfil, justamente aquilo que lhes deu fama: habilidade, talento, dinheiro, beleza ou qualquer outro atributo típico de suas classes ou profissões.

** Personagem caricatura – São os sujeitos estranhos, grotescos, de atitudes mirabolantes, com acentuada tendência para a exibição, que podem gerar um perfil tipo caricatura.

** Miniperfil – É o que eventualmente é inserido na reportagem. Nesse caso, o destaque é dado aos fatos, à ação, e os personagens são secundários. O relato de um fato é interrompido para dar um enfoque rápido sobre personagens, sob a forma de narrativa ou curta entrevista.

** Multiperfil – Há pessoas tão significativas que merecem uma cobertura maior que a do perfil. Exemplo: quando Carlos Drummond fez 80 anos ou quando Jonh Lennon foi assassinado, quase todos os jornais organizaram cadernos especiais exclusivos sobre eles.

Nessas ocasiões, publicam-se inúmeras matérias, de diversos tipos (artigos, crônicas, poemas, entrevistas), que testemunham vida e obra da pessoa focalizada. O conjunto forma uma grande reportagem e, naturalmente, seu grande multiperfil, já que são vários narradores e um só objeto da narração.

Em primeira pessoa

Os perfis jornalísticos aprecem ocasionalmente em periódicos há pelo menos dois séculos. Mas foi a partir da década de 1930 que jornais e revistas começaram a apostar mais na idéia de retratar figuras humanas jornalística e literariamente, conforme registra Sérgio Vilas Boas em seu livro.

O importante era a própria pessoa, especialmente alguma celebridade do mundo das artes, da política, dos esportes e dos negócios. Esperava-se que a matéria lançasse luzes sobre o comportamento, os valores, a visão de mundo e os episódios da história da pessoa, para que suas ações pudessem ser compreendidas num contexto maior que o de uma simples notícia descartável.

Com esse espírito, segundo Vilas Boas, os perfis se tornaram marca registrada de revistas como Esquire, Vanity Fair, The New Yorker, Life e Harper’s. Talvez pelo espaço que reservava aos perfis, a revista The New Yorker, fundada em 1925, tenha ficado com o crédito de precursora do gênero.

No Brasil, O Cruzeiro e Realidade também valorizaram esse tipo de jornalismo em suas épocas áureas. Mas a excelência em perfis ficou impressa mais pela revista Realidade no seu auge (1966-1968). Vilas Boas chama atenção para as características dos textos biográficos dessa publicação: imersão total do repórter no processo de captação; jornalistas eram autores e personagens da matéria; ênfase em detalhes reveladores, não em estatísticas ou dados enciclopédicos; descrição do cotidiano; frases sensitivas; valorização dos detalhes físicos e das atitudes da pessoa; estímulo ao debate; repórteres reconheciam e assumiam, em primeira pessoa, as dificuldades de compreensão da às vezes indecifrável, mas sempre fascinante personalidade humana.

Narrador interessado

Vale lembrar que essa época áurea do jornalismo brasileiro foi decepada pelo Ato Institucional número 5 (AI-5), entre outros fatores.

Hoje, os problemas são outros no que diz respeito à produção de boas reportagens. Boas aponta os principais: o texto enriquecido com recursos literários perdeu a importância que teve no jornalismo tradicional; houve uma redução brutal dos quadros de jornalistas nas redações; os orçamentos para produção de matérias especiais estão praticamente fora das previsões das empresas; e, claro, falta de tempo para investigar, de espaço para aprofundar e de mentores para incentivar.

Mas o repórter não pode desistir de fazer um bom texto, apesar das dificuldades que eventualmente enfrente no dia-a-dia da profissão. Ter sensibilidade para enxergar os personagens que rendam boas histórias faz parte da atividade do jornalista, que não pode deixar de ser um narrador interessante e interessado dos fatos do cotidiano.

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Jornalista, doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professora da Faesa, Vitória