Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O pioneirismo do Observatório

O estudo do programa Observatório da Imprensa, veiculado há oito anos pela TV Educativa do Rio de Janeiro, se desenvolveu com o intuito de constatar a existência de um fórum público de discussão, onde jornalistas e cidadãos podem debater e questionar, de forma democrática e crítica, os acertos e desacertos da imprensa brasileira.

O Observatório da Imprensa (OI) surge inicialmente na internet a partir de abril de 1996, entrando no ar no dia 5 de maio do mesmo ano. O OI é uma iniciativa do Projor (Instituto para Desenvolvimento do Jornalismo) e um projeto originário do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A pesquisa se justifica na medida em que uma imprensa que se propõe a avaliar a qualidade das informações que produz pode contribuir significativamente na construção de um regime verdadeiramente democrático. Se, no ideário tradicional da filosofia liberal-democrática, o princípio de uma imprensa livre e independente é condição fundamental para as liberdades de expressão e de pensamento, um fórum que se apresenta para questionar o nível de compromisso dos jornalistas com esse princípio pressupõe um estágio avançado da cultura democrática. Dito de outra forma, a proposta de um debate entre jornalistas e cidadãos em um fórum televisivo, único meio de tornar hoje públicas questões de interesse de toda sociedade, permite-nos refletir sobre o rumo da nossa democracia.

A fim de contextualizar historicamente o surgimento do programa, esta pesquisa estudou o papel vivenciado pela imprensa durante o regime autoritário, o efeito das novas tecnologias de comunicação na imprensa, além de analisar a estrutura básica do programa na configuração de um fórum de debates democrático. Além disso, com base no conceito de ‘campo jornalístico’, tal como formulado por Pierre Bourdieu, se discutiu a imprensa como um poder autônomo que desperta sua influência para com outros campos igualmente poderosos.

Autoritarismo e os novos rumos

A imprensa brasileira nem sempre desfrutou de amplas liberdades para exercer o seu trabalho e muito menos refletir e questionar seu papel na sociedade. Na década de 60, o país sofreu profundas transformações, quando o direito de expressão e informação foram gradativamente cerceados por governos autoritários. Mas, se ao mesmo tempo a sociedade sofria dura repressão, a imprensa resolveu se rebelar com a criação da imprensa alternativa, também conhecida como ‘imprensa nanica’. Ela contestou e denunciou o regime militar através de jornais como O Sol, dirigido pelo poeta e artista gráfico Reynaldo Jardim, e O Pasquim, que foi o primeiro e mais influente jornal de oposição à ditadura militar no Brasil.

É interessante observar que as pesquisas e os estudos sobre o jornalismo brasileiro estão crescendo de forma gradual. A crítica à mídia chegou como atividade sistemática ao Brasil em 1975, quando Alberto Dines produzia a coluna ‘Jornal dos Jornais’ na Folha de S. Paulo.[Essa coluna durou até a crise de 1977, mas teve uma influência marcante, de forma que, em 1989, doze anos depois do seu fim, quando a Folha cria o ombusdsman, sua coluna dominical aparece e se mantém até hoje com a mesma apresentação e com a mesma localização no primeiro caderno do jornal.] Contudo, para que a proposta do OI seja válida, ela oferece aos telespectadores um fórum de debates que, ao mesmo tempo, exerce a função de um veículo jornalístico e observador da imprensa, na medida em que informa a sociedade sobre os assuntos de maior relevância que estão sendo abordados pela imprensa em âmbito nacional e internacional, e faz a análise da cobertura da imprensa brasileira. Além disso, o programa busca elevar o padrão de exigência do público quanto à qualidade das notícias que são veiculadas pela mídia brasileira. Porém, para que isso aconteça, é necessário que o OI tenha a capacidade de dialogar com a sociedade e torná-la sensível às mensagens transmitidas, fazendo com que os cidadãos entendam as questões discutidas no programa e participem do debate, ajudando na construção de um veículo de comunicação democrática.

Mas afirmar que o jornalismo obteve sua liberdade com o fim da ditadura seria uma análise simplista. Tem-se que conferir o processo da evolução do estudo do jornalismo, que passou a ter fonte bibliográfica mais consistente, quando os jornais, aos poucos, deixaram de ser vistos apenas como uma fonte ideológica e passou a existir a preocupação de se compreender o processo de produção das notícias. Além disso, ao se analisar a predominância dos valores do mercado e do lucro, faz-se perceber uma nova forma de censura dos jornalistas, a auto-censura, que acontece a partir da adaptação às normas empresariais que buscam atender seus próprios interesses.

Essa nova característica do jornalismo não contribui para o esclarecimento da população ou para com os ideais de uma sociedade democrática. O campo jornalístico, por possuir a capacidade de modificar a estrutura da sociedade, deve operar com responsabilidade – e não como um espelho de valores e idéias de uma classe dominante. Nesse caso, o programa Observatório da Imprensa cumpre com o compromisso de esclarecer que os veículos de comunicação também estão inseridos em um sistema capitalista, ou seja, a imprensa também responde aos interesses do mercado e do lucro, e que os jornalistas, por sua vez, devem prestar contas às empresas para as quais trabalham. Entender que as empresas jornalísticas têm seus interesses, que não são necessariamente coincidentes com os interesses da sociedade, é uma das questões fundamentais para um Observatório da Imprensa. O seu objetivo é mostrar os bastidores da notícia e os reais motivos da veiculação ou omissão de acontecimentos que são de interesse da população.

É a partir de características como essas que o Observatório entende que o poder de escolha da veiculação de notícias não pode ser conferido às empresas jornalísticas, mas aos próprios leitores, ouvintes e telespectadores, investidos no papel de fiscais da imprensa, auxiliando no processo de democratização do país. Esse comprometimento da sociedade, proposto pelo OI através de um debate democrático, ou seja, contemplando não apenas a opinião de jornalistas quanto à avaliação do seu trabalho, mas abrindo uma oportunidade para que a própria sociedade se insira na discussão sobre as questões que envolvem seu cotidiano, só pode ser praticado com uma mudança no processo jornalístico. Para isso, é preciso que exista liberdade de expressão e transparência em suas atividades, além de uma mudança no comportamento da própria população, que deve romper com a passividade para, então, tornar-se elemento ativo na construção de uma imprensa democrática. Porém, para que o OI se proponha como elemento facilitador da democracia é necessário que ele esteja aberto a uma estrutura plural, que possa discutir diferentes pontos de vista da política e da cultura da sociedade.

Estrutura geral do Observatório

Para realizarmos considerações sobre a ‘eficácia’ do OI, é necessário observar as características básicas do programa. O programa possui em média 55 minutos, divididos no total de quatro blocos. O primeiro deles destina 5 minutos para a apresentação de uma matéria com a temática do programa e tem a intenção de atualizar o telespectador para que ele possa estar preparado para o debate. O restante dos blocos é voltado para debate, quando o público poderá participar enviando perguntas através do telefone, e-mail, fax ou pela home page do OI na urna eletrônica. [Home page é a página inicial de um site, também chamado de sítio. Compreende a apresentação de um site e de todo o seu conteúdo.Wikipedia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/] Para a realização do debate, são convidadas personalidades relacionadas ao tema que será discutido no programa.

Neste estudo foram selecionados três programas: ‘Mídia e ética no poder’, ‘Mídia e escândalos’, e ‘Liberdade de imprensa’. O principal critério adotado para a escolha dos programas foi o de que o tema deveria tocar em princípios fundamentais e permanentes para o exercício jornalístico, como são os compromissos com a ética, a objetividade, a verdade, a liberdade de expressão e o direito à informação.

Breve descrição dos programas

Entre outros assuntos, esses programas tratam da omissão dos jornalistas influenciados por valores empresariais, o posicionamento da Associação Nacional de Jornais, a cobertura da mídia em escândalos como a CPI dos Correios, a condenação de jornalistas, contrariando os princípios de liberdade e expressão, e o nepotismo exercido no governo, conforme breve descrição a seguir.

A onda de denúncias no período da chamada CPI dos Correios, que abalou a credibilidade do governo Lula, produziu uma série de matérias abordando o tema. O caso virou capa de jornais e revistas de tiragem nacional e o interesse do público comprovou a aceitação das matérias. A condenação do jornalista Jorge Kajuru e a apreensão do livro do jornalista Fernando Morais, intitulado Na toca dos Leões, colocou em xeque a liberdade de expressão e opinião como direito resguardado pela Constituição. O posicionamento da Associação Nacional de Jornais-ANJ a favor de Fernando Morais e sua omissão quanto à condenação de Kajuru, processado pela organização Jaime Câmara, desperta, no mínimo, a curiosidade para tal atitude, até porque ambos estavam sendo acusados pelo mesmo crime: calúnia e difamação. Outras questões abordadas foram as denúncias sobre nepotismo envolvendo o mais alto escalão do governo e que causaram indignação por parte da população, e o uso indevido de dinheiro público pelo Ministério da Assistência Social e Ministério dos Esportes.

O campo jornalístico e sua importância

Antes de realizar as considerações a respeito deste estudo, é preciso fazer uma breve fundamentação teórica do campo jornalístico, destacando a sua importância para a sociedade e tendo como foco a influência da televisão. O conceito de campo jornalístico será utilizado a partir da descrição da sua importância no sistema social, que advém dos instrumentos de produção e de difusão de informação em larga escala, o que lhe propicia delimitar o acesso ao espaço público e a existência e notoriedade pública. A partir dessas características, Bourdieu entende que ‘o campo jornalístico possibilita impor à sociedade os seus princípios de visão do mundo, a sua problemática e o seu ponto de vista’. (BOURDIEU, 1997, p.57)

Dessa forma se compreende que as decisões profissionais do jornalista em noticiar ou não determinados fatos são articuladas a partir de suas concepções e critérios de noticiabilidade, exercendo na sociedade uma imposição de suas idéias, as quais nem sempre atendem aos interesses da população. Portanto, constata-se a importância do campo jornalístico na medida em que se compreenda sua influência decisiva sobre outros campos, como o científico, o social, o político e o cultural, que serão discutidos e analisados pela classe jornalística e assistidos pela sociedade.

A influência e o poder do campo jornalístico são elementos que permeiam todos os debates do OI, por se compreender que neles que se transmitem as informações a serem discutidas e analisadas pela sociedade, e por ser nesse mesmo campo que o programa discute a influência dos acontecimentos fornecidos pelos veículos de comunicação, analisando a cobertura da mídia brasileira. Além disso, entender o campo jornalístico é necessário para que se discuta a atividade jornalística, que pode ser designada pela concorrência, pelo mercado e pelos índices de audiência. Esses interesses podem constituir uma auto-censura dos próprios jornalistas, que buscam satisfazer não só as regras empresariais, mas devem atender também às necessidades de seu público.

Para caracterizarmos os efeitos da televisão e a sua importância, é preciso compreender que grandes corporações têm o papel de elaborar e desempenhar discursos e interpretações que tendem a reforçar a ideologia do mercado dominante. ‘Esses discursos são responsáveis pelo controle cultural e ideológico na população. Essa característica tende a homogeneizar, conformar e despolitizar a população.’ (BOURDIEU, 1997, p.63).

O processo de sedimentação de valores acaba constituindo uma determinada percepção de regras na sociedade. Ela é parte constitutiva para a formação do imaginário coletivo, sendo a mídia uma das responsáveis. De acordo com José Arbex, ‘o imaginário composto pela mídia é formado por diversos símbolos e signos de referências culturais, sociais, políticas e artísticas que trabalham para a construção da memória coletiva’. (ARBEX, 2004, p.10).

Considerações finais

Com base na análise do OI, podemos afirmar que, até certa medida, o programa constitui-se em um espaço capaz de promover um consumo crítico de notícias produzidas. Não chega a ser um fórum aberto e democrático, como professa, em função de limitações inerentes a um veículo televisivo, mas demonstra preocupação em explorar um amplo leque de questões relacionadas com uma notícia ao abrir espaço para que a maioria dos atores envolvida participe dos debates. A oportunidade de participação de um número ilimitado e plural de cidadãos nos debates do OI, embora não seja possível realizá-lo em sua plenitude, também contribui para revestir o programa de um verniz democrático.

Sobre os programas estudados, percebe-se que no programa ‘Mídia e ética no poder’ o mesmo deixou de atingir seu objetivo principal, que seria analisar o desempenho da imprensa envolvendo o ministro Agnelo Soares e Benedita da Silva, uma vez que se discute a conduta política e o posicionamento da ética, esquecendo a importância da imprensa para a revelação dos fatos e a própria proposta do programa de ser um observatório da imprensa. Nos outros dois programas o OI consegue atingir o seu objetivo, ou seja, discutir e analisar o desempenho da imprensa.

Quanto a participação da população através da home page, temos de destacar que a internet ainda não é disponibilizada para toda a sociedade e, portanto, uma grande parcela fica excluída desse tipo de participação, sendo a TV o instrumento de maior acesso ao público. Sobre o formato do programa, se percebe que o tempo destinado para o debate é insuficiente para a exposição de uma reflexão aprofundada, uma vez que é oferecida uma média de 2 minutos para que cada participante possa responder às perguntas levantadas pelo mediador.

Além disso, é preciso observar que a qualidade das idéias apresentadas pelos participantes durante o debate irá variar de acordo com a objetividade e a capacidade de síntese dos mesmos, assim como da capacidade do mediador em tentar extrair dos convidados respostas consistentes às questões de maior relevância para o público. Vale ressaltar que nem sempre o debate segue um percurso linear de aprofundamento, pois, como dito anteriormente, no programa ‘Mídia e ética no poder’ discutiu-se muito mais o papel do governo do que o tipo de cobertura realizado pela imprensa.

Embora se constatem as limitações mencionadas anteriormente, não podemos afirmar que a legitimidade do OI fique comprometida, pois é visível que se busca construir um espaço crítico em relação à produção noticiosa da mídia. Contudo, é possível notar que o Observatório da Imprensa procura exercer um espaço inovador de discussão com os cidadãos, de esclarecimento da sociedade, criando bases para um consumo crítico de tudo que a imprensa produz, assim como contribuir para o aperfeiçoamento das práticas jornalísticas.

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Jornalista, Fortaleza, CE; monografia apresentada como trabalho de conclusão de de curso na Faculdade Integrada do Ceará