Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os problemas do jornalismo-espetáculo

Introdução

A proposta principal deste artigo é estabelecer uma linha de raciocínio que possibilite uma análise crítica sobre a relação que o jornalismo vem estabelecendo com o entretenimento. O estudo e a discussão desse fenômeno contemporâneo são de fundamental importância para a área, pois ajudarão a entender possíveis efeitos nocivos do espetáculo para a narrativa jornalística.

Em um primeiro momento, o trabalho se propõe a buscar construir conceitos e definições sobre o que é o jornalismo, qual sua função em uma sociedade democrática, que compromissos precisa estabelecer com a mesma e quais valores essa prática deve possuir. Isso servirá como referência para que possamos mais adiante estabelecer contrastes entre a teoria e a prática dessa profissão, extrair os principais problemas e analisar a maneira como eles afetam o futuro da atividade jornalística, uma vez que se pode considerar o jornalismo como uma área específica do conhecimento humano.

O espetáculo, assim como o jornalismo, também será analisado com base em revisão de literatura e diálogos com autores que discutem o que é entretenimento e sensacionalismo, quais as ações que exercem sobre a sociedade e de que maneira se relacionam com o jornalismo. Este estudo nos ajudará, portanto, a identificar e avaliar quais são as consequências dessa relação, ao mesmo tempo que possibilita uma defesa mais consistente da separação entre elas, para que cada uma dessas áreas siga seu próprio caminho.

O artigo procura oferecer ao leitor um entendimento mais preciso sobre a diferença entre informação e espetáculo, e poderá auxiliar o público a identificar quais os problemas e desvios que surgem quando as duas narrativas se encontram.

Sobre o jornalismo

A prática jornalística, como a conhecemos contemporaneamente, é resultado de uma série de fatores, princípios, ações e sujeitos que começaram a se esboçar no final da Idade Média e principalmente a partir das revoluções burguesas. Nos últimos cem anos, em linhas gerais, teóricos da área se dedicaram a realizar estudos e debates para entender os elementos que compõem a profissão, sistematizando suas teorias e questionando a conduta ética de seus profissionais. Contudo, é preciso estabelecer aqui um breve resgate histórico que nos guiará a um entendimento mais sólido sobre os pontos estudados.

O jornalismo, assim como outras áreas do conhecimento humano, surge do mais perene dos desejos humanos: a ubiquidade. ‘A busca da onipresença triunfante só tem um objetivo: a onisciência (PENA, 2007, p. 21)’. Tal dom daria ao homem o poder de superar um de seus maiores medos: o desconhecido. Embriagado pelo desejo de entender e dominar o ‘inexplicável’, o ser humano passa a acreditar que sua vida só será melhor administrada caso obtenha total controle sobre os fenômenos da natureza e domínio sobre os diversos saberes produzidos até então. Dessa forma, pode-se dizer que o jornalismo é como uma ponte que transporta aos membros de uma determinada comunidade as informações que os ajudarão a combater seus medos sobre os mais diversos fenômenos naturais, pois, ‘não basta produzir cientistas e filósofos ou incentivar navegadores, astronautas e outros viajantes. Também é preciso que eles façam os tais relatos e reportem informações a outros membros da comunidade (PENA, 2007, p.23)’. Porém, é preciso ressaltar que por mais que o jornalismo compartilhe dos mesmos objetivos da ciência, ou seja, dominar o desconhecido, ele não pode ser considerado uma ciência exata ou humana, uma vez que o jornalismo utiliza-se de uma linguagem coloquial e universal para relatar fatos de caráter singular e regional, além de dedicar a atenção exclusiva que um fato merece, enquanto que a ciência utiliza-se de uma linguagem específica para produzir saberes universais.

Durante o fim da Idade Média, até a consolidação do Renascimento, período conhecido por ser a Era dos descobrimentos, o conhecimento ainda estava destinado apenas àqueles que faziam parte das altas castas: os senhores feudais e os membros do clero. O domínio sobre os saberes produzidos até aquela época lhes dava o poder de governar o povo, que se submetia ao domínio em troca de proteção, material e espiritual. ‘Com o fim da Idade Média, as notícias surgiram na forma de música e relatos nas baladas cantadas pelos jograis ambulantes (KOVACH & ROSENSTIEL, 2004, p.37)’.

A imprensa chamada de moderna surgiu como resultado de uma estratégia da burguesia durante o século 18 para tirar o poder das mãos dos monarcas absolutistas. ‘Essa nova classe, a burguesia, iria combater as estruturas políticas da sociedade autocrática e o seu monopólio do poder político (…) (TRAQUINA, 2005, p.43)’. Os periódicos eram usados para influenciar a plebe a se revoltar contra o sistema ali imposto, ao mesmo tempo em que ajudavam a contestar as teorias da igreja.

Com a evolução dos primeiros jornais, os políticos ingleses começaram a falar sobre um novo fenômeno, por eles denominado de opinião pública. No inicio do século 18, os jornalistas passaram a formular a teoria da livre expressão e da imprensa livre (KOVACH, & ROSENSTIEL, 2004, p.37).

Segundo Nelson Traquina (2005, p.34), a terminologia criada por Jürgen Hebermas denominada de ‘espaço público’ emergiu com os cafés em cidades como Londres e Paris, num total de mais de 2000 cafés na capital inglesa no final do século 18. E, embora houvesse pessoas que, por exemplo, faziam negócios com a venda de jornais durante a revolução francesa no fim do século 18, ‘os jornais eram, sobretudo, armas na luta política, estreitamente identificados com causas políticas, como saúde, educação e trabalho (TRAQUINA, 2005, p.34)’. A burguesia, que até então sustentava o estilo de vida dos reis e rainhas, usou a imprensa para conquistar o apoio popular e fazer jorrar o sangue azul dos nobres ao decapitá-los em guilhotinas em praça pública.

Esse cenário histórico fez com que a imprensa passasse a ter funções importantes na sociedade, ‘ajudando a definir nossas comunidades, a criar uma linguagem e conhecimentos comuns com base na realidade. O jornalismo também nos ajuda a identificar os objetivos da comunidade, seus heróis e vilões (KOVACH & ROSENSTIEL, 2004, p.31)’. Porém, mais do que isso, a imprensa passou a ser de fundamental importância para a construção de uma sociedade democrática, atuando como um agente político que visa transformar quadros sociais por meio de debates ideológicos, trazendo à tona discussões envolvendo líderes políticos, intelectuais e os próprios jornalistas, para que, através da troca de conhecimento, pontos de vista e ideologias, se possa mudar a realidade de uma sociedade. O jornalismo tem também a responsabilidade de contribuir com a educação das massas e com a conscientização popular com relação a assuntos de interesse coletivo, além de representar os olhos do povo, ao atuar como mediador social e fiscalizar o Estado. Mais do que ser apenas uma batalha pela conquista das mentes e corações de seus leitores, telespectadores ou ouvintes, como afirma Clóvis Rossi (1980, p.7), o jornalismo é um instrumento democrático de conscientização e esclarecimento, fornecedor de informações e mediador de debates públicos, sendo o porta-voz dos desamparados. O jornalista precisa estar ciente de que sua função é, por meio do relato mais próximo possível da verdade, subsidiar a população, para que, a mesma, alcance sua independência intelectual. Entretanto, o jornalista, teólogo e escritor Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, identifica atualmente uma visão diferente sobre o jornalismo – ou sobre os descaminhos da profissão. Ao ser questionado sobre a importância do jornalismo na construção de uma sociedade mais justa e democrática, ele afirma: ‘O jornalismo é uma faca de dois `legumes´. Serve para fortalecer a desigualdade ou favorecer os que lutam por uma sociedade mais justa. Depende de como é encarado. O velho Marx já ensinava que numa sociedade dividida em classes, a ideologia que a domina tende a ser a da classe mais poderosa, que oprime as demais. E essa ideologia é disseminada, sobretudo pela mídia, a serviço dos donos do dinheiro) [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009].

Ao realizarmos uma breve análise sobre o jornalismo praticado atualmente, concluímos que as intenções que outrora nortearam a prática foram em grande medida esquecidas. O jornalismo ideal, ou seja, ‘aquele cujos deveres deveriam ser os de um instrumento de reforma da sociedade, aliás, o principal instrumento para obrigar o governo a efetuar as reformas sociais (TRAQUINA, 2005, p.49)’, deu majoritariamente lugar ao jornalismo de interesse econômico e ao jornalismo que dá voz apenas aos donos do capital.

As definições incorporadas pelo jornalismo durante os anos pós-revolução burguesa fizeram com que certos compromissos se tornassem fundamentais para que a prática cumprisse com seu papel na sociedade. O jornalista, por mais capacitado que possa ser, condenará suas horas de trabalho ao fracasso, caso não tenha uma conduta ética sólida, transparente e se não for capaz de buscar a máxima aproximação possível da verdade. E aí, pode-se afirmar que o conceito de verdade passa a ser o principal compromisso do jornalista, pois ele engloba uma série de outros princípios básicos que compõem o acordo implícito com o público. Esses princípios, segundo Fraser Bond (BOND, p.4), podem ser listados da seguinte forma: a imprensa deve ser Independente; Imparcial; Exata; Honesta; Responsável e Decente.

A noção de que os jornalistas não devem encontrar obstáculos na hora de cavar a informação e contá-la com veracidade – mesmo à custa de outros interesses financeiros do dono do jornal – é um pré-requisito para dar as notícias não só com exatidão, mas também de forma convincente. É dessa maneira que nós, cidadãos, acreditamos numa empresa jornalística (KOVACH & ROSENSTIEL, 2004, p.83).

Uma vez que leitor e jornalista estabelecem uma relação baseada no ideal da verdade e no equilíbrio, uma corrente de confiança é criada e o trabalho do profissional passa a ser sinônimo de credibilidade. Porém, é preciso ser cauteloso, pois, para Frei Betto, (a conquista dessa confiança pode ser uma artimanha da mídia para reforçar a desigualdade social e não respeitar os direitos humanos) [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009] Um exemplo claro dessa afirmação de Frei Betto é a maneira como a imprensa noticia as manifestações do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Certos veículos utilizam-se de sua credibilidade para marginalizar o grupo, que luta por um direito humano fundamental: o direito à terra. A imprensa, ao invés de se unir à causa, pressionando o governo quanto à questão da reforma agrária, marginaliza os manifestantes, fazendo com que a população repudie seus protestos. Isso nos leva a outro compromisso fundamental: o compromisso com os cidadãos.

É fato que hoje o Estado perdeu sua credibilidade, uma vez que a falta de ética dos políticos, somada aos diversos casos de corrupção diariamente divulgados pela mídia, faz com que a população recorra aos grandes jornais na esperança de encontrar um fio condutor para suas vidas. É possível, a partir dessa premissa, compreender as razões pelas quais o jornalismo, por ter sido um ‘tipo de ator político que visava alterar quadros sociais a partir do debate ideológico e de visões de mundo, além do engajamento, da intenção de educar as massas, de formar cidadãos conscientes e responsáveis (MARCONDES, 1993, p.63)’, ainda sustenta o posto de agente político fiscalizador e, por isso, ainda detém – em parte – índices de confiabilidade significativos. Isso não significa, todavia, que a imprensa passou a substituir a esfera pública. Estado e imprensa ocupam espaços distintos, contudo, muitas vezes é graças à imprensa que o Estado resolve agir. Sendo assim, é necessário que a exigência de o jornalista servir aos seus leitores antes de servir ao seu patrão esteja muito bem enraizada no cotidiano do profissional. ‘Devemos nosso emprego a quem nos lê e não a quem nos informa ou mesmo nos paga o salário (NOBLAT, 2006, p.61)’. Dessa maneira, o profissional conquistará a admiração e a confiança do leitor, além, é claro, de estar consolidando sua carreira como um profissional sério, honesto e, acima de tudo, ético. ‘O bom caráter não é facilmente adquirido ou mantido sem um esforço diário. Nenhuma atividade está sujeita a tal multiplicidade de contatos com o povo (BOND, 1959, p.5)’. Ademais, cabe as empresas proporcionar aos seus profissionais condições para que eles possam exercer suas tarefas corretamente.

As empresas esforçam-se em contratar jornalistas íntegros, querem funcionários que não falsifiquem declarações alheias, que não cometam plágios, que não digam que gastaram no táxi a verba que na realidade consumiram tomando cerveja antes de voltar para a redação. As empresas têm razão em sua preferência: do caráter dos seus profissionais depende diretamente a qualidade técnica dos produtos jornalísticos que serão postos à venda. Mas elas precisam devolver essa mesma dedicação e transparência ao público (BUCCI, 2000, p.32).

Tal transparência será capaz, por exemplo, de esclarecer o leitor sobre os critérios e parâmetros usados pelo veículo para definir o que é e o que não é um fato jornalístico. Isso nos remete à análise da notícia. Análise que será fundamental para que, posteriormente, possamos entender como o fato, transformado em notícia, é tratado como espetáculo.

Voltaire, em seu livro Conselhos a um jornalista, fazia um alerta a todos aqueles que pretendiam um dia trabalhar na área. Ele dizia:

‘A publicação periódica na qual pretendes trabalhar pode certamente ter êxito, apesar de já haver muitas dessa espécie. Perguntas como se deve agir para que tal jornal agrade nosso século e a posteridade. Responderei com duas palavras: Sê imparcial. Tens ciência e gosto; se, além disso, fores justo, predigo-te um sucesso duradouro (VOLTAIRE, 2006, p.3).’

Voltaire fez essa observação no século 18 e fica claro que ela continua pertinente, apesar dos séculos que se passaram. A maioria das pessoas vê a imparcialidade como uma virtude que se esforçam por alcançar. O jornalismo vê a imparcialidade como um ideal. ‘Os melhores redatores e os melhores jornais procuram evitar a parcialidade deliberada e intencional (BOND, 1959, p.5)’. Hoje parece utopia querer exigir imparcialidade dos jornalistas. Segundo Frei Betto, ‘em uma sociedade desigual há que escolher necessariamente um dos lados, o dos poderosos ou o dos marginalizados e excluídos’ [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. Entretanto, ao escolher um dos lados, o jornalista, ou o veículo que o emprega, estará caminhando na contramão dos princípios éticos que norteiam a profissão. Ora, se o jornalista tem como função auxiliar o leitor na busca pela sua independência intelectual, é inviável, e totalmente inaceitável, que o profissional, ao relatar o fato, o faça baseando-se tão somente em informações que deem relevância apenas a um dos lados envolvidos no acontecimento. Manuel Carlos Chaparro ilustra explicitamente em seu livro A pragmática do jornalismo como a revista Veja e os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo deixaram-se contaminar pela parcialidade. Ele enumera três perguntas que o guiaram na realização das pesquisas, são elas:

1 – Como se manifestam, se escondem ou se simulam os propósitos que motivam e as intenções que controlam as mensagens jornalísticas, na imprensa diária brasileira?

2 – Que interesses estão conectados a tais propósitos e que princípios éticos inspiram as intenções ordenadas da ação jornalística?

3 – Que influência a explicitação ou não explicitação das intenções exerce na vontade do leitor, no que se refere à decisão de ler ou não ler, aceitar ou rejeitar a mensagem?

Através da captação de evidências durante os anos de 1991 e 1992, por meio de leituras que analisavam e sistematizavam as matérias produzidas pelos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, Chaparro procurou mostrar o quão grave eram as condutas irresponsáveis dos jornalistas. As trapalhadas jornalísticas de repórteres apressados ou despreparados (…) colocou à disposição de mais de um milhão de leitores, com o aval do rótulo ‘ciência’, informações falsas, imprecisas, incompletas; os interesses ocultos de misteriosas instâncias de poder econômico ou político que influenciam a desinformação do leitor – como no caso da reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 1989, cujo título, ‘A Sabesp mente sobre o rodízio’, elaborado pelo diretor de redação, Augusto Nunes, nada mais é, segundo Chaparro, que um reflexo da insatisfação do jornalista para com os rodízios de água realizados pela Sabesp, que afetavam diretamente o bairro onde o jornalista morava. De acordo com Chaparro, a jornalista Tânia Belickas, autora da reportagem, ‘revelou que, de fato, a matéria havia sido pautada por exigência de Augusto Nunes’ e que, por ter faltado água em sua casa, ‘ligou na parte da manhã para a redação e mandou fazer a matéria’. Chaparro revela como os interesses privados muitas vezes ‘(…) destroem ou distorcem o trabalho dos repórteres, deturpando o sentido dos textos com títulos tendenciosos e elaborados (…) por causa de interesses ideológicos ou pontos de vista próprios (CHAPARRO, 1994, p.98)’.

A partir das contribuições de Chaparro, quais são os elementos que devem compor o valor da notícia? Como podemos defini-la? Que elementos devem guiar o jornalista durante a construção de uma matéria?

Um conceito muito discutido pelos teóricos e desmistificado por muitos profissionais da área é o conceito da objetividade jornalística. Para Frei Betto, (não existe plena e neutra objetividade) [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. Objetividade é uma palavra que é destinatária da informação. De onde vem o objeto.

Diz-se que tem objetividade o discurso em que se expressam as características próprias do objeto e não as do autor do relato. (…) E apesar de haver algumas notícias objetivas, como por exemplo, a de que o presidente da República entrou em reunião com quatro de seus ministros no Palácio do Planalto há dez minutos, não basta para informar o leitor, pois são informações acompanhadas de um vazio informativo (BUCCI, 2000, p.92).

Tais tipos de notícias objetivas só podem ser aplicados em notas como as que são dadas nas rádios. Para Roberto Nonato, jornalista e âncora da rádio CBN, (a objetividade é um elemento importante para construção do texto. Mas isso também depende de quem escreve. Alguns se valem da objetividade e encantam determinado leitor, outros têm um texto diferente e que agrada outro tipo de leitor. Para ele, os textos mais objetivos têm que ser para rádio. Na TV e no impresso o mais interessante seria um texto objetivo, mas que seja também diferente, que provoque reflexão em quem está lendo) [entrevista concedida ao autor em 25 de agosto de 2009].

Já para Ciro Marcondes Filho (1993, p.131), o jornalismo não é nem neutro nem objetivo e essas categorias fazem parte de uma ‘mitologia que foi desenvolvida no Iluminismo, de que fatos poderiam ser apresentados de forma mais ou menos livres das intervenções e dos interesses humanos’. Sendo assim, podemos concluir que a ‘melhor objetividade é então uma justa, transparente e equilibrada apresentação da intersubjetividade (BUCCI, 2000, p.93)’, que, no entender de Bucci, é o diálogo entre o relato subjetivo do jornalista sobre as experiências subjetivas do indivíduo inserido no fato a ser noticiado. Isso significa que a prática jornalística, ao contrário das ciências exatas e naturais, onde sujeito e objeto são identificados quase que de imediato, baseia-se nos relatos subjetivos de um sujeito sobre os atos subjetivos de outro. ‘Não há nenhum distanciamento cultural entre o homem que é repórter, o homem que é notícia e o homem que é destinatário da informação (BUCCI, 2000, p.92)’. Essa objetividade, segundo Bucci, é uma busca do jornalista por um campo intersubjetivo crítico entre os agentes que estão envolvidos no acontecimento.

Como se observa, definir a notícia e seus principais elementos não é uma tarefa fácil. Pode-se dizer que a definição é como um vírus que sofre mutações dependendo do ambiente em que está. Mesmo existindo alguns parâmetros e referências universais, como, por exemplo, o interesse público, ineditismo, importância dos envolvidos e quantidade de pessoas envolvidas, acessibilidade à fonte, política editorial, exclusividade ou efeitos excepcionais, os valores que determinam a importância da notícia podem sofrer alterações, dependendo da cultura ou do contexto vivido por uma determinada comunidade. Dessa forma, como podemos realizar uma prática jornalística que englobe fatores que garantirão ao leitor uma informação clara e objetiva? Um princípio básico que deve ser seguido por todo e qualquer profissional da imprensa no momento em que inicia o processo de construção da notícia, além do compromisso com a verdade, honestidade, ética e imparcialidade, é o de agir de forma independente. Todavia, segundo Frei Betto, (esse ‘agir independente’ depende da linha editorial do veículo em que o profissional trabalha, pois, se ele discorda dela, perde o emprego) [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. Para Betto, (o ideal seria trabalhar num veículo condizente com os princípios éticos do profissional, o que é fácil para quem não preza a ética, e difícil para quem não tem condições de criar o próprio veículo) [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. Se antes o jornal moderno era publicado para informar, interpretar e servir à comunidade, o leitor e o anunciante, hoje, por outro lado, notamos que os jornais passaram a ser publicados para influenciar a opinião pública e atrair ‘clientes’ e anunciantes, agradando-os com matérias que os favorecem.

Notamos, portanto, que a publicação de um jornal tornou-se um negócio que visa, sobretudo, o lucro. Seu crescimento passa a depender dos anúncios que publica e não mais dos leitores que os leem. O que acontece é que em um país como o Brasil, onde o número de leitores é insatisfatório, um jornal necessita de outras fontes de renda para sobreviver. Assim, surge a dúvida: como uma empresa jornalística que, para sobreviver, depende do dinheiro dos anunciantes, pode realizar um jornalismo independente? A resposta é: eles não são independentes. Para ser independente ela precisa apoiar-se em bases econômicas próprias, obtendo seus lucros sem ser subvencionada. ‘Não pode servir ao público que a apóia, se estiver ligada a alguém que a manobra (BOND, 1959, p.3)’. ‘Dessa maneira, a viabilização da autonomia editorial requer medidas que vão além das declarações de princípios. Retórica não basta (BUCCI, 2000, p.60)’. Se a imprensa prega um discurso que garante à sociedade o pleno desenvolvimento de sua função social, ou seja, informar, é inadmissível que os interesses dos anunciantes se sobressaiam ao compromisso firmado entre veículo e leitor. É, portanto, baseado nessa perspectiva que Eugênio Bucci afirma que a melhor solução inventada até hoje é uma solução elementar:

‘Pôr cada lado para o seu lado, (…) repartir a empresa em duas `metades´: uma editorial (igreja) e a outra comercial (Estado). São dois lados autônomos, separados entre si, de modo que o repórter não precisa conversar com quem vende páginas de publicidade. A vida de um e a de outro caminham paralelamente’ (BUCCI, 2000, p.61).

‘As chamadas `grandes redações´ tornaram-se escravas dos intelectuais da persuasão, da sedução e da falsificação: os publicitários (MARCONDES, 1993, p.68)’. Na tentativa de promover a ideologia capitalista, esses profissionais, junto de seus clientes, determinam, no caso do jornalismo impresso, o espaço e o número de páginas que irão usar para divulgar suas campanhas, que muitas vezes vão de encontro com os fatos a serem publicados. ‘Os profissionais da propaganda são os administradores da cultura, (…) fazem hoje o que a burguesia fazia no passado com a política, o jornalismo, a cultura e o saber (MARCONDES, 1993 p.68)’. A influência desses fatores externos faz com que o veículo de comunicação mude suas prioridades, prejudicando o conteúdo produzido pelos jornalistas.

Hoje as empresas de comunicação estão a serviço do grande capital, visam acumular cada vez mais dinheiro, formar seus conglomerados e monopolizar o fluxo de informação. Os argumentos dos donos desses megaconglomerados de mídia são financeiros e tecnológicos.

Não podem sobreviver em um mundo globalizado sem promover fusões empresariais e convergências de difusão e conteúdo. Atuar em uma única mídia significa a falência (…), além disso, a unificação de conteúdos permite um barateamento dos custos e, consequentemente, maior competitividade (PENA, 2007, p. 99).

Esse conceito de competitividade mercadológica foi incentivado com a expansão do neoliberalismo – modelo econômico idealizado por Friedrich August Von Hayek e Milton Friedman, um dos membros da escola de Chicago, que defendia a presença mínima do Estado no gerenciamento econômico e social das sociedades capitalistas, tese que ganhou força a partir do final da década de 1970, inicialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. No Brasil, as corporações midiáticas, além de implementarem as premissas ditadas pelo sistema neoliberal como filosofia institucional, adotaram o modelo norte-americano de gerenciamento de conteúdo que, segundo Felipe Pena, se baseia na não-intervenção editorial. Após a II Guerra Mundial, a televisão seguiu duas linhas de formação: a britânica e a americana.

A primeira surgiu sob o controle político e editorial do Estado, enquanto que a segunda cresceu às custas dos investimentos privados e partiu de uma lógica liberal. (…) Uma tinha instâncias públicas de controle sobre seu conteúdo, a outra se baseou em um conceito de liberdade (PENA, 2007, p.97).

Isso significa que o modelo neoliberal oferece às empresas jornalísticas uma independência editorial. Em outras palavras, uma autonomia no gerenciamento dos conteúdos e um crescimento empresarial baseado no fluxo de anúncios publicitários. Essa estratégia unificou os meios jornalísticos. Rádio, televisão, jornal impresso e a Internet agora são regidos pela mesma empresa que transformou os jornalistas em produtores de conteúdos genéricos. O tema causa discórdia no meio jornalístico. Para Frei Betto, ‘todo conglomerado fere o princípio democrático, pois reduz o número de vozes, e tende a impor seus interesses como forma de notícia e formação da opinião pública’ [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. Roberto Nonato, por outro lado, avalia que ‘o avanço dos conglomerados não é uma ameaça à liberdade de imprensa ou à democracia. Para ele, sempre haverá espaço para jornalistas independentes. Não imagina um cenário dominado por apenas um tipo de opinião’ [entrevista concedida ao autor em 25 de agosto de 2009]. Por mais que o debate divida opiniões, uma coisa é certa: a ‘regionalização’ tão prezada por Fraser Bond está, aos poucos, tornando-se um tema de pouca importância para os noticiários, dando lugar a um sutil, porém impiedoso, jogo de palavras onde a finalidade é manipular o leitor, telespectador ou ouvinte e assegurar sua fonte de renda.

O jornalismo, portanto, define-se, em suma, idealmente pensando, como uma prática narrativa que visa estreitar a relação entre a população e seus administradores públicos, garantindo assim o pleno exercício da democracia entre todos aqueles que compõem uma comunidade. Cumprir com essa tarefa, como já se viu, não é fácil – o percurso é marcado por uma série de armadilhas. Chegar a essa definição, que certamente não esgota o debate, mas pretende com ele contribuir, foi a preocupação dessas primeiras páginas, onde são desenvolvidos alguns conceitos que ilustram a importância da prática jornalística em uma sociedade livre e democrática e os riscos que se corre quando influências políticas e econômicas interferem na metodologia adotada pelas redações no que diz respeito à elaboração das matérias. No decorrer das próximas páginas, serão abordados o entretenimento e o sensacionalismo, analisando-os e sistematizando-os, a fim de poder estudá-los no momento em que se relacionam com a prática jornalística.

Sobre o espetáculo

O conceito de sociedade do espetáculo, como explica Cláudio Novaes Pinto Coelho (2006, p.14), não é uma tentativa de se substituir o conceito de sociedade capitalista (…), assim como não significa a existência de uma sociedade dominada pelos meios de comunicação. Para ele, a sociedade do espetáculo é apenas uma fase específica da sociedade capitalista. A análise desse fenômeno visa, sobretudo, entender como o espetáculo está vinculado a uma interpretação materialista da vida social.

Guy Debord, em seu livro A Sociedade do Espetáculo, utiliza-se do prefácio de A Essência do Cristianismo, do filósofo alemão Ludwig Andreas Feuerbach, para apresentar ao leitor um esboço de um dos principais conceitos relacionados à pragmática do espetáculo. Ele dizia:

‘E sem dúvida o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado’ (DEBORD, 1997, p.8).

O trecho de A Essência do Cristianismo citado por Debord nada mais é que a contemplação de um fenômeno que, já naquela época, 1841, ano do lançamento da obra de Feuerbach, unificava a sociedade em uma falsa consciência.

Hoje, essa unificação se faz possível por meio de imagens que se desligaram de cada aspecto da vida e que se fundem num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. ‘A realidade considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto pseudomundo à parte, objeto de exclusiva contemplação. A especialização das imagens do mundo encontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si próprio (DEBORD, 1997, p.8)’.

A relação estabelecida pelos veículos de comunicação entre dinheiro, consumo e imagem fez com que as sociedades, através de produções culturais amplamente diluídas, negassem a realidade e se prendessem a sonhos fomentados por aparências. O espetáculo nada mais é que a afirmação dessa aparência. Ou seja, ‘a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível (DEBORD, 1997, p11)’. De acordo com Olgária Matos, em entrevista concedida a repórter Ana Paula Souza, da revista CartaCapital de 2 de março de 2007, ‘quando a imaginação desvanece e os sonhos passam a ser construídos pelas imagens que a mídia fornece, o homem se esvazia, sem se dar conta disso’. ‘A insignificância do homem torna-se hoje ainda mais flagrante pela sua redução a mero suporte de discurso de consumo (MARCONDES, 1993, p.53)’. Nessa sociedade do consumo, a lógica do espetáculo não permite reconhecer o próprio espetáculo produzido. Daí a estratégia de domínio social desenvolvida pela indústria do entretenimento.

A redução do pensamento crítico-reflexivo, ou simplesmente a unificação social em uma falsa consciência, torna-se possível, no entender de Debord, por meio da utilização do espetáculo como instrumento ‘midiatizador’ de imagens que pautam nossas relações interpessoais através de conceitos desligados da realidade.

O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não – vivo, (…) apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e, (…) enquanto parte da sociedade, é expressamente o setor que concentra todo o olhar e toda a consciência (DEBORD, 1997, p.9).

Ele domina o ser humano por meio de suas experiências que, moldadas a partir de espetáculos culturais e midiáticos, o transformam em um ser submisso às diretrizes consumistas. ‘O espetáculo que inverte o real é efetivamente produzido’ (DEBORD, 1997, p.10).

Compreendido contemporaneamente, o espetáculo é resultado, segundo Neal Glaber, da Revolução do Entretenimento, ‘que se desencadeou durante o período otimista e festivo da belle époque, nos Estados Unidos (FREIRE Filho, 2003 p.3)’ [trabalho apresentado por João Freire Filho no Núcleo de Teorias da Comunicação, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte, MG, 2 a 6 de setembro de 2003]. Nesse momento, o espetáculo passa a ser um complemento à realidade da sociedade em todas as suas formas particulares, ‘informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante (DEBORD, 1997, p.10)’. Isso ocorre pelo fato de haver uma desilusão social para com as filosofias, programas políticos, utopias, crenças e esperanças racionais na ciência e no progresso. É dessa descrença social que ‘surge um macrodiscurso. único, universal, poliglota, que engloba todos os desejos, aspirações, expectativas e esperanças: os discursos uníssonos e no mundo inteiro igual ao consumo (FILHO, 1993, p.52)’. Trata-se de uma dominação econômica sobre a vida social que, no entender de Debord, levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. ‘A ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o ‘ter’ efetivo deve tirar o seu prestígio imediato (DEBORD, 1997, p.13)’. ‘Esse mundo, inteiramente dominado pela economia, é, portanto, um mundo espetacularizado (COELHO, 2006, p16)’. Nesse sentido, o espetáculo é, no entender de Debord, o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental. O consumo, a valorização da imagem e a ostentação desenfreada minimizaram o desejo humano pelas atividades intelectuais e decretou uma nova era: a era do simulacro, conceito trabalhado por Jean Baudrillard no livro Simulacro e simulação.

Fica claro, portanto, que o espetáculo é um fenômeno que trabalha essencialmente com os sentidos da sociedade, com seus sonhos e emoções, seus desejos e projeções irreais de uma realidade ideal, reduz o pensamento reflexivo dos indivíduos e os aliena através de produções midiáticas irrelevantes, que os motivam, segundo Debord, a um comportamento hipnótico e a reconstruir materialmente uma ilusão religiosa. Para ele à medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. ‘O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono (DEBORD, 1997, p.11)’. De acordo com Coelho, essa alienação é simultaneamente material e intelectual, pois ‘se as relações mercantis são as únicas formas de relação social possível, a alienação presente no processo de produção estende-se a toda a vida social (COELHO, 2006, p. 16)’. É dentro dessa perspectiva que a ligação entre jornalismo e espetáculo é estabelecida. Todavia, para se entender como as duas práticas se relacionam, é preciso analisar antes quais foram os fatores que fizeram com que o jornalismo sentisse a necessidade de se relacionar com o espetáculo, pois a questão não se trata mais do quão potente e esmagadora é a velocidade com que a indústria cultural produz os seus produtos de ficção para que os mesmos, diluídos através de um tripé composto por estratégias de planejamento, divulgação e distribuição, possam competir com a real dramaticidade da vida. A reflexão a ser levada em consideração é que não se trata mais apenas de olhar pelo buraco da fechadura, mas de estar do outro lado da porta. Não se trata apenas de ver o filme, mas de ser o próprio filme. A vida é o veículo. (…) Na encenação do real, o veículo vida gera novos episódios diariamente, fazendo com que as aplicações que a mídia descobre para esses episódios ultrapassem a própria realidade (PENA, 2007, p.88).

A prática do sensacionalismo, apesar de pautar com mais frequência as rodas de debates a partir da segunda metade do século XX, parece ter se enraizado na imprensa desde seus primórdios. As análises sobre a origem da imprensa na França e nos Estados Unidos mostram que o sensacionalismo já estava presente. ‘Os occasionels – folhetins impressos em caracteres góticos sobre um papel de baixa qualidade, com ilustrações – eram procurados por publicarem assuntos criminais e desastres (PATIAS in COELHO & CASTRO, 2006, p.81)’.

O jornalismo, como instrumento de divulgação de notícias engajadas em grandes lutas políticas, começa a abandonar suas características ideológicas no inicio do século 19, graças ao estabelecimento do Estado burguês de direito e a legalização de uma esfera pública na Inglaterra, França e EUA (ARBEX Jr, 2005, p.58).

A industrialização, o desenvolvimento tecnológico e a aceleração do processo de cartelização da imprensa fizeram com que jornais locais se tornassem dependentes dos grandes veículos que circulavam nos principais centros urbanos, além, é claro, de alavancar o número de anúncios que, com o passar dos anos, transformaram-se na principal fonte de renda da maioria dos periódicos. De lá pra cá, o conceito de ‘missão’ jornalística de formação de opinião publica foi deixado de lado, sendo substituído, segundo Fábio Marques (MARQUES in COELHO & CASTRO, 2006, p.33), pela preocupação da empresa jornalística em atingir melhores resultados econômicos. O jornalismo passou a trabalhar em dois mercados distintos: um dos anunciantes e o outro dos leitores. No entanto, tais empresas de comunicação, administradas a partir de diretrizes neoliberais, são norteadas por uma estrutura empresarial dependente quase que inteiramente do fluxo de anúncios que circulam dentro dos veículos. ‘Isso faz com que certos empresários da comunicação deixem-se levar pela análise de um polo de seleção que consideram mais determinantes: o gosto do consumidor (MEDINA, 1988, p.20)’. Significa que a seleção dos fatos a serem noticiados passa a ser regulada pelos interesses do ‘leitor-cliente’, e não mais levando em consideração as demandas de cidadania. Há uma inversão dos aspectos que determinam os critérios de noticiabilidade. O jornalismo passa a privilegiar assuntos que englobam temas pessoais de interesse do público e não mais temas de grande relevância social, ‘como disputas entre forças políticas opostas, que estão presentes na sociedade (MARQUES in COELHO & CASTRO, 2006, p.33)’. Isso ocorre pelo fato da mídia estar sujeita a uma concorrência cada vez mais feroz.

As pressões comerciais se intensificam. Muitos quadros dirigentes da mídia vêm doravante do universo empresarial e não mais do mundo jornalístico. Eles são menos sensíveis à veracidade da informação. Aos olhos deles, o news business, o mercado da informação, é antes de tudo um meio de gerar lucros (RAMONET, 2007, p.7).

Preocupados cada vez mais com o sucesso mercadológico, os veículos de comunicação passam por reestruturações constantes. ‘Essas empresas apresentam objetivos comerciais bem definidos, com metas a serem alcançadas: aumentar a margem de lucro, maior participação de mercado etc. (MARQUES in COELHO & CASTRO, 2006, p.33)’.

Inserida dentro da lógica do capitalismo industrial, a notícia torna-se, portanto, um produto, e como qualquer produto, está à venda para ser consumida com direito a apelos estéticos, emocionais e sensacionais. A informação, em um enquadramento geral, ‘torna-se um produto de comunicação de massa, comunicação de massa como indústria cultural e indústria cultural como fenômeno da sociedade urbana e industrializada (MEDINA, 1988, p.16)’. ‘A atividade jornalística da grande imprensa, nessa sociedade capitalista moderna, pertence à esfera da indústria cultural (MARQUES in Coelho & Castro, 2006, p.33)’. Essa necessidade lucrativa é o que força a mídia, na maioria dos casos, ‘a tentar atrair o público por meio de reportagens indecentes, (…) e, para não ver o índice de sua audiência cair, a mídia continua dando cobertura a esses tipos de casos (RAMONET, 2007, p.7)’. Essa transformação ideológica pela qual o jornalismo passou se deu graças às novas formas de consumo – e, ‘em especial, ao modelo de centros comerciais que reproduzem assepticamente o mundo lá de fora –, significa o primeiro passo para o adestramento a uma nova cultura (FILHO, 1993, p.51)’.

Há, portanto, dentro desse modelo administrativo implementado nas redações, uma escala, já relativamente bem estabelecida, que determina os fatores objetivos do interesse do público que modificam o grau de importância dos fatos. Nesse campo de análise é possível relacionar os interesses previsíveis que um bom editor deve considerar, como proeminência, grau de importância das pessoas envolvidas nos fatos; importância das consequências; raridade, conflito ou luta que o fato pressupõe e utilidade imediata do serviço informativo, com fatores que determinam os principais interesses do público, ‘como entretenimento que proporciona, emoções, superação, dinheiro ou propriedade, sexo, interesse local e importância social (MEDINA, 1988, p.21)’. Esse fenômeno, à medida que, sorrateiramente, se transforma em um ponto de referência a ser tomado como base para que se possa moldar as estruturas econômicas e administrativas das empresas de comunicação, passa a controlar os componentes de angulação difusos nas mensagens jornalísticas. Nos nossos jornais, majoritariamente, embora esse ainda seja um campo permeado por fraturas e conflitos, pode-se observar o crescente ritmo das mensagens anguladas pelo nível-massa. ‘Nota-se, na formulação dos textos, nos apelos visuais e linguísticos, na seleção das fotos, a preocupação em corresponder a ‘um gosto médio’ ou, em outros termos, em embalar a informação com ingredientes certos de consumo (MEDINA, 1988, p.75)’. Além do controle exercido sobre os aspectos que compõem o conteúdo de um veículo midiático, a angulação-massa se faz presente também nas aparências externas – ‘formas de diagramação atraentes, valorização de certos ângulos e cortes fotográficos, apelos linguísticos como títulos e narração dos fatos (MEDINA, 1988, p.75)’. Dentro desse processo de produção da notícia há, também, uma preocupação por parte dos veículos de comunicação em destacar aspectos de um acontecimento que atraiam a atenção da sociedade. Algo que gere sensações, impacto, ou que desperte a curiosidade do indivíduo.

Ao contrário do jornalismo sério, o sensacionalista se presta a informar mais para satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas sádicas e espetaculares, expondo pessoas ao ridículo. O jornalismo sensacionalista extrai do fato, da notícia, a sua carga emotiva e apelativa e a enaltece. Quase fabrica uma nova notícia, que passa a se vender por si mesma (PATIAS in COELHO & CASTRO, 2006, p.81).

No entanto, o jornalista da Folha de S.Paulo e professor da Universidade UniSant.anna Eduardo Geraque afirma que ‘muitas vezes os superiores – editores e chefes de redação – querem um jornal vibrante e um bom produto para os consumidores. O lucro, a circulação e os anunciantes vêm a reboque disso, em grande parte dos casos’ [entrevista concedida ao autor em 7 de dezembro de 2009]. Para ele não há nenhum problema quando as chefias das grandes redações utilizam-se de métodos que tornam o veículo mais atrativo. O importante para Geraque é que ‘o jornalista tenha o compromisso com a sua profissão, e faça seu trabalho com foco na comunicação social de fato’ [entrevista concedida ao autor em 7 de dezembro de 2009]. Já para Frei Betto, ‘no jornalismo deve haver espaço para o entretenimento. O problema reside quando este se torna preponderante no veículo, como acontece na TV aberta, na qual a divulgação do entretenimento se sobrepõe enormemente à de programas de conteúdo cultural. Cultura é tudo que aprofunda nossa ciência e nosso espírito; entretenimento toca apenas aos sentidos’ [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. A prática do sensacionalismo, no entender de Eduardo Geraque, também é mais complicada na televisão. Para ele, no jornal e no rádio, isso ainda está mais separado. De acordo com Geraque, ‘jornalismo é informação de interesse público que, por sinal, pode ser leve e atraente para os olhos e ouvidos, espetáculo é diversão, é não ter senso crítico diante de um fato. É procurar esconder os aspectos negativos do evento que está sendo levado ao público’ [entrevista concedida ao autor em 7 de dezembro de 2009].

A concentração de críticas à televisão como principal veículo de comunicação a explorar os elementos da prática do espetáculo baseia-se no fato dela ser um meio que utiliza demasiadamente a imagem como linguagem não-verbal, ou seja, uma movimentação das mãos, expressão facial, um olhar etc.

Houve uma época em que o cinema era o grande meio de entretenimento de massas. (…) Os tempos atuais marcaram a rápida ascensão da TV, especialmente nos anos 1970. (…) Isso porque ela introduziu uma nova maneira de se ver o mundo, um novo movimento mais rápido, mais ágil, mais trabalhado nos detalhes. (…) A TV instaura o hábito de recepção em ritmo de excitação, de ansiedade, de constantes apelos para segurar a audiência (FILHO, 1993, p.36).

Para uma grande parcela da população brasileira, a televisão é o único veículo de comunicação que elas utilizam para se apropriarem dos assuntos que as interessam, e é fato ‘que o discurso televisivo obrigou todos os veículos a submeterem-se a seu ritmo (FILHO, 1993, p.37)’. A televisão, por se tratar de um veículo popularesco, utiliza-se de uma lógica sensacionalista/espetacular para prender a sua audiência, um festival de imagens onde se fundem publicidade e informação, uma lógica que acaba englobando o jornalismo.

Expandido pelos meios de comunicação de massa em meados do século 20, o espaço público atualmente foi retransformado pela indústria do entretenimento, que já não opera mais no interior dos meios de comunicação, mas os instrumentaliza de fora para dentro (BUCCI, 2003, p.190).

O jornalismo, ao aderir um modelo administrativo que se alinha às tendências estabelecidas pela indústria cultural, passa a utilizar as estratégias da indústria do entretenimento para crescer economicamente.

A partir do momento que o jornalismo se desprende de seus compromissos e valores, e passa a dar espaço a produções sensacionalistas, apenas e tão somente para alavancar as suas vendas e/ou manter sua audiência, ele perde a sua função social primeira, isto é, estreitar a relação entre a população e seus administradores públicos, garantindo assim o pleno exercício da democracia entre todos aqueles que compõem uma comunidade. Ao aderir a linguagem sensacionalista, composta, no caso da TV, por exemplo, pela narração de imagens do palco dos acontecimentos, a narração do presente, helicópteros equipados com câmeras filmando o acontecimento do alto, o uso da legenda na parte inferior da tela, permitindo o telespectador situar-se no fato que está sendo apresentado, qualquer que seja o momento em que sintonize o programa (PATIAS in COELHO & CASTRO, 2006, p.96), o veículo de comunicação passa a banalizar a informação, tudo acaba se equivalendo, informações sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos, por exemplo, passam a dividir espaço com as curiosidades sobre os famosos que desfilarão no carnaval 2010. Basta analisar a maneira como os sites informativos, por exemplo, enaltecem as ditas celebridades, lhes endeusando ao invés de estarem fornecendo informações relevantes (ou significativas) ao público, como a atual situação do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ou a antecipada corrida presidencial entre o governador de São Paulo, José Serra, e a ministra da casa civil, Dilma Rousseff. Enquanto a mídia classifica como notícia o ‘show’ que a socialite americana Paris Hilton deu ao pisar em solo brasileiro, a política, em Brasília, segue seu curso natural. ‘A `espetacularização´ das notícias subverte a ordem de importância e veracidade dos fatos. ‘Nessa lógica, as informações que causam impactos e estão sendo veiculadas no momento têm preferência’ (PATIAS in COELHO & CASTRO, 2006, p.97)’.

Ao buscar a informação desesperadamente, a fim de manter os pontos pela audiência, os jornalistas acabam se esquecendo de regras básicas do bom jornalismo, como ouvir todas as partes envolvidas, conferir as informações antes de divulgá-las, e, principalmente, não condenar previamente suspeitos ou acusados, procedimento comum no gênero sensacionalista (PATIAS in COELHO & CASTRO, 2006, p.97).

Afinal, quem não se lembra do caso Isabella Nardoni, onde a mídia taxou, poucas horas após o crime ter sido cometido, o pai e a madrasta da garota como culpados pela morte da menina, fazendo com que a sociedade incorporasse o discurso divulgado pela imprensa e passasse a condenar, antes mesmo que o julgamento fosse marcado, o casal Nardoni como criminosos. Ao se alinhar a essas tendências, o jornalismo faz com que a informação sempre se torne simplificável, redutível, capaz de converter-se em espetáculo de massa e decompor-se num certo número de segmentos-emoções. Isto se baseia na idéia, hoje tão na moda, de que existiria uma ‘inteligência emocional’. A existência desta ‘inteligência emocional’ justificaria que, não importa qual informação, ela sempre pode ser condensada e esquematizada. Mesmo a despeito da análise real, pretensamente fator de tédio (RAMONET, 2007, p.10).

Outro problema decorrente desse relacionamento é o empobrecimento intelectual por parte da sociedade. ‘A tendência, hoje, é fazer as produções culturais mais para serem consumidas pelo imaginário, pela emoção do que pela razão (PATIAS in COELHO & CASTRO, 2006, p.104)’. Isso significa reduzir os estímulos ao pensamento crítico e reflexivo da sociedade, significa utilizar enunciados espetaculares repetidas vezes para prender a atenção do indivíduo e não para informá-lo ou gerar-lhe conhecimento. O objetivo é segurar o telespectador/leitor/ouvinte pelas suas sensações, seus medos e desejos, suas fantasias e ansiedades. Isso aumenta a área de influência do jornalista – partindo do ponto de vista manipulador, o jornalismo como ‘diluidor’ de produções geradas pela indústria do entretenimento – ao mesmo tempo em que a diminui, haja vista que as informações transmitidas não estabelecem relações com o senso crítico do público. Analisando o jornalismo sensacionalista no contexto da indústria cultural e da sociedade do espetáculo, observamos várias características que reforçam e legitimam a lógica do sistema capitalista vigente, em que, conforme preconiza Debord, as relações sociais são cada vez mais mediadas por imagens e espetáculos.

Considerações finais

A relação entre a prática jornalística e a prática do entretenimento se estabelece, portanto, a partir de um eixo fundamental: o consumo. Em suma, é dentro das diretrizes mercadológicas estabelecidas pelo capitalismo que a sociedade, alienada e, por isso, espetacularizada, absorve passivamente os mais diversos discursos ideológicos, haja vista que, como consequência desse processo de alienação, ‘as pessoas passam a assimilar parâmetros cognitivos que não lhes dão condições de transcender o funcionamento dessa sociedade, para mudá-la em pensamento e em ação (MARQUES in COELHO & CASTRO, 2006, p.42)’. Além disso, uma vez que a informação passa a ser trabalhada a partir de uma perspectiva que a relaciona com a velocidade com que é disseminada e renovada entre a sociedade, os jornalistas acabam por acentuar a competição entre os veículos de comunicação de massa, fazendo com que a quantidade de informações produzidas acabe gerando efeitos colaterais no que diz respeito à capacidade de absorção e reflexão por parte do leitor/telespectador/ouvinte sobre um fato noticiado. Ora, se a notícia, produzida industrialmente, torna-se um produto que se alinha aos moldes estabelecidos pela indústria cultural, os critérios de noticiabilidade que outrora determinavam o seu grau de importância passam a ceder espaço à análises que avaliam seu nível de ‘novidade’.

Para a atividade jornalística, velocidade é cada vez mais importante. A notícia é, por sua própria natureza, uma mercadoria altamente perecível, torna-se antiga no instante de sua divulgação (ARBEX, 2005, p.88).

Isso porque ‘a hegemonia do grande capital corporativo em geral tem sérias e profundas implicações sobre a seleção, distribuição e interpretação das notícias (ARBEX Jr, 2005, p.100)’. Dessa forma, podemos identificar mais um problema resultante da relação entre jornalismo, consumo e espetáculo. No momento em que os veículos ignoram o caráter relevante que um fato possui e passam a trabalhar, durante o processo de construção de uma notícia, com aspectos do curioso, do interessante e do sensacionalista, eles não só estão incapacitando a sociedade de desenvolver qualquer tipo de análise reflexiva sobre o assunto abordado, como também estão diluindo as informações a um nível em que tudo se torna equivalente. O fim da fronteira entre informação e entretenimento, segundo Arbex Jr. (2005, p.51), fez com que as notícias, no caso do telejornal, fossem apresentadas por belas mulheres, ou por ‘âncoras’ que muitas vezes não sabem do que se trata a notícia. O telespectador é bombardeado com uma série de flashes de imagens que compõem uma matéria onde se mistura informação de grande relevância social com entretenimento. A partir desse momento, a sociedade passa a não ter condições de distinguir o que é de fato informação e o que é apenas um mar de imagens que não acrescentam nada de significativo em suas vidas. Para Olgária Matos, não se trata de condenar a cultura de massa porque ela é de massa. Preocupante é que todas as produções culturais passem a ser impregnadas pelos valores da mídia e da indústria do entretenimento e só exista isso como horizonte cultural. À medida que tais práticas se tornam comuns dentro do meio jornalístico, a imprensa, ao invés de contribuir para o desenvolvimento de uma consciência social crítica, estará fomentando a alienação coletiva.

Afirmar que o jornalismo ético, ou seja, aquele determinado em cumprir com suas obrigações frente aos compromissos assumidos implicitamente com a sociedade, deixou-se levar pelas tendências capitalistas/consumistas não por opção, mas sim, por necessidade, faz parte hoje do discurso da maioria dos empresários da comunicação. No entanto, o fato é que, ao abandonar seus ideais sociais, os grandes veículos de comunicação preferem, na maioria das vezes, utilizar um jargão jornalístico formado por uma conceituação funcional ou operacional, desvalorizando o pensamento conceitual não funcional ou crítico, isto é, aquele que consegue perceber os elementos que compõem um objeto ou um fato e suas contradições, que são muito comuns nas sociedades capitalistas (MARQUES in COELHO & CASTRO, 2006, p.44).

Isso nos remete a análises que visam encontrar métodos que driblem essa tendência sensacionalista imposta pela indústria do entretenimento. No entender do jornalista Eduardo Geraque ‘o jornalismo deve ser crítico, apartidário, plural e, claro, bem feito. De uma forma que prenda o público ou, pelo menos, que o faça pensar’ [entrevista concedida ao autor em 7 de dezembro de 2009]. Isto é, para um veículo de comunicação conseguir se manter economicamente em uma sociedade dominada pela lógica da indústria do entretenimento, ele precisa, no entender de Geraque, se prender cada vez mais às razões que o fizeram outrora adquirir o papel de ator social, cujos diálogos estabelecidos, falados ou escritos, possibilitavam a interação entre os indivíduos e suas organizações públicas. Para Eduardo Geraque ‘os principais jornais do país – Folha, O Globo e Estado – ainda tentam, com certo sucesso, criar debates públicos. Muitas rádios, como a CBN e a Bandeirantes, no caso de São Paulo, também fazem um trabalho de interesse coletivo’ [entrevista concedida ao autor em 7 de dezembro de 2009]. A questão para ele não é ser ou não popular. A questão é deixar o espetáculo e o sensacionalismo de lado e fazer um jornalismo interessante, com uma visão realmente sistêmica do mundo em que vivemos.

Mas, afinal, o que efetivamente pode ser feito para melhorar a imprensa brasileira? No entender de Bucci (2003, p.203), a resposta para essa pergunta está na educação para a cidadania. ‘É preciso formar os jornalistas, é preciso envolver o público no debate, e é preciso investir na construção de uma mentalidade social que prestigie e cobre excelência da imprensa’. Para Bucci, todo esse processo começa pela formação dos jornalistas na universidade. É preciso deixar claro aos estudantes que o jornalismo é, acima de tudo, ético e não apenas uma técnica fria. ‘Trata-se de uma relação de credibilidade pela qual os profissionais são autorizados a informar o cidadão de forma equilibrada, voltada para a verdade dos fatos (BUCCI, 2003, p.203)’. Para Frei Betto, o método para se driblar tais tendências está ligado a princípios básicos: ‘o jornalista precisa ser fiel aos fatos, jamais aceitar vantagens ou subornos dos donos do poder e dar na mídia voz aos que não têm voz’ [entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2009]. Cumprindo com esses três pontos, a prática jornalística estará, segundo Frei Betto, próxima à excelência. Além disso, se é verdade que o capitalismo, bem como suas ramificações – indústria cultural e do entretenimento e sociedade do consumo e do espetáculo – ‘está hegemônico no mundo, é no interior dele que devemos lutar (PENA, 2006, p.92)’. A retórica utópica a que me refiro, considerada por muitos como anacrônica, não seria um possível caminho a ser levado em consideração na luta pela descontaminação do jornalismo? ‘Em outras palavras, antes de completar a maratona de um mundo sem classes sociais, damos um pequeno passo para amenizar as injustiças (…) afinal, não importa que a meta seja utópica. A luz está na caminhada (PENA, 2006, p.92)’. Explico: A queda do muro de Berlim, em 1989, não só decretou o fim da Guerra Fria – e consequentemente o fim da URSS – como também instaurou entre as sociedades a ideia de que o capitalismo global é indestrutível e veio para ficar. Não se discute mais sobre o futuro (capitalismo, socialismo, comunismo, fascismo, etc.), apenas se aceita silenciosamente a atual realidade mundial. Dessa forma, de acordo com o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, em palestra realizada na Universidade de Buenos Aires, é mais fácil acreditar que a humanidade se desintegrará, por causa de algum vírus ou catástrofe, do que imaginar uma possível mudança radial dentro do sistema capitalista. Sendo assim, a análise desse paradoxo nos faz crer que há uma necessidade de se reinventar o conceito de utopia dentro da realidade capitalista, no sentido de que há uma situação que não pode ser mais pensada e que não existe um caminho que nos leve a solução de alguns problemas que atualmente nos afligem. Tal perspectiva, deixada de lado pela maioria dos jornalistas, é um dos principais vieses a ser levado em consideração pelos profissionais da imprensa na luta pelo resgate da narrativa jornalística pura, pois, essa reestruturação do conceito da utopia, que outrora agia como uma espécie de combustível no meio jornalístico, se pensada como um possível caminho a ser seguido no processo de ‘dedetização do jornalismo’, poderá auxiliar os profissionais da imprensa na formulação de indagações mais profundas e/ou complexas, gerando assim novos desdobramentos para a análise das questões que envolvem a prática, como: como os conceitos explorados pela indústria do entretenimento se relacionam com as teorias marxistas? Ou, de que maneira a reinvenção do conceito de utopia pode contribuir no processo de formação dos estudantes de jornalismo? O conformismo que se instaurou sobre as mentes dos ditos ‘focas’, anexado à atual situação em que o jornalismo e o mundo se encontram, ou seja, um mundo e uma prática jornalística dominados pelas diretrizes mercadológicas do capitalismo global, engessam todo e qualquer tipo de pensamento que projete alguma ação significativa e transformadora que melhore a imprensa e, com isso, a sociedade. Não me refiro, contudo, ao conceito socialista utópico, pois esse sim nós sabemos ser impossível. Defendo apenas a necessidade de os jornalistas se apegarem a um ideal – coletivo e qualitativo – que norteie o exercício diário do caráter de cada um. Ademais, minhas expectativas em relação a esse trabalho caminham no sentido de que ele possa servir, ao menos, como contribuição para o ‘questionamento do ‘pensamento único’ (COELHO, 2006, p.11)’, mesmo sabendo que tentar estabelecer uma reflexão sobre uma possível retomada do pensamento marxista, com o intuito de relacioná-lo ao desenvolvimento qualitativo da prática do jornalismo, é algo que hoje não é bem aceito.

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Graduando em Jornalismo pela Universidade Anhembi Morumbi e orientando do professor Francisco José Bicudo Pereira Filho