É sempre importante lembrar que a TV universitária surgiu no Brasil já em 1968 com a ainda atuante TV Universitária de Recife, pertencente à Universidade Federal de Pernambuco. E em sinal aberto, como televisão educativa (TVE). Se hoje a TV universitária é associada aos canais a cabo, deve-se a relevância que ganhou após a Lei Federal 8.977, de 1995, que obrigou as operadoras a disponibilizarem, sem custo, ‘um canal universitário, reservado para o uso compartilhado entre as universidades localizadas no município ou municípios da área de prestação de serviços’.
A nova legislação despertou nas instituições de ensino superior (IES) o interesse de produção televisiva, acelerando o processo estagnado e criando rapidamente várias emissoras universitárias. Mas meio que abafou a história anterior, como se a televisão universitária começasse naquele momento, esquecendo-se de universidades que mantinham televisões de muito maior alcance potencial de público e com mais tempo de ar. Emissoras como a TV Universitária de Natal, da UFRN, a TV Viçosa, da UFV e cerca de uma dezena delas espalhadas por aí.
Infelizmente, essas emissoras foram vítimas de duas armadilhas, uma armada interna e outra externamente. No primeiro caso, as mantenedoras, embora com um potente veículo na mão, reproduziram nelas o mal que vitimou 10 das 10 universidades públicas do país: fecharam-se em si mesmas, pouco se entrosaram com as comunidades a que pertenciam, e se colocaram em um pedestal olímpico donde observavam a humanidade, estudavam à distância suas mazelas e, vez ou outra, concediam a benesse de sua sabedoria e generosidade na forma de um conhecimento científico aplicável para a turba. Nada mais anti-televisão.
Graças aos céus e aos homens, as universidades públicas evoluiram nos últimos anos (embora ainda existam bolsões de resistência), mas o estrago em suas televisões já estava feito. Historicamente, essas emissoras não ofereciam ao telespectador uma programação especificamente universitária, uma alternativa à televisão comercial a partir das bases da educação, da extensão comunitária e da pesquisa, dando voz e imagem a diversidade de atores e pontos de vista acadêmicos, científicos, humanistas, de pesquisa social. A vinculação das TVs às universidades referia-se a administração e a manutenção financeira, deixando suas equipes técnicas com enormes limitações de produção, sem política de atuação e sucateamento a passos largos.
Na outra armadilha, a nauseante prática político-partidária de lotear os canais de televisão educativa regionais entre os amigos do poder acabou com qualquer vestígio de simpatia com o telespectador e condenou-as à marginalidade, da onde não conseguem se safar. Se as universidades inicialmente começaram a se apropriar de tais canais, rapidamente foram rapinados pelos compadres dos currais eleitorais, deputados e ex-deputados, prefeitos e ex-prefeitos e todos aqueles que se dispuseram a usar uma concessão pública para benefício próprio e de seu grupo de larápios da democratização da comunicação. Portanto, nada de culpar as TVEs de seus próprios problemas com a velha retórica de que era chata e, por isso, não tinha público. Chata era – e continua sendo em muitos casos – porque feita para umbigos eleitorais sem qualquer preocupação com o desejo do telespectador por um bom programa de televisão. Chato como aquele parente que só fala de si mesmo, quer empurrar sua visão de mundo para todos ou falar de coisas que não nos interessa nem um pouco (tem até quem viva disso, vendendo produtos igualmente chatos). Mas, ao contrário da armadilha anterior, tal prática ainda continua após avançar igualmente pelas concessões comerciais e agora tentar dominar as emissoras que deveriam ser comunitárias.
Portanto, nada mais natural que as TVs universidades se refugiassem na esperança da Lei do Cabo, como uma espécie de nova oportunidade. Essa foi a boa notícia histórica. A partir da legislação, mais de uma centena de IES se aventurou na produção e permanece na atividade, mesmo com inúmeras dificuldades. A má notícia é que, se o espaço é garantido, o é para um público extremamente limitado (os assinantes de TV a cabo). Ou seja, mesmo querendo fugir da primeira armadilha, as TVs das universidades continuam fechadas em um gueto socio-econômico. E pelo andar da carruagem, a turma da segunda armadilha quer que continue assim.
TV Digital e a universidade
Também tem outras boas e más notícias para a TV universitária com o advento da TV Digital (outra história de mais de uma década que parece que saiu do forno ontem). A má é que cada vez fica mais claro que o modelo conquistado na lei do cabo soa como se não existisse, embora naturalmente deveria ser repetido e aprimorado nas legislações posteriores (ainda mais quando se leva em conta que a TV é regida por leis da ditadura). A lei do cabo criou os ‘canais básicos de utilização gratuita’ com o objetivo de democratizar a comunicação e a informação ofertando voz e imagem à atores sociais como as universidades e entidades comunitárias, sociais e educacionais. Seguia a legislação norte-americana, subtraída (como de costume) da melhor parte: a manutenção básica dos canais pelas operadoras do cabo. Sem problema: centenas de IES e organizações sociais se mobilizaram pelo país e ocuparam os canais. Com a discrepância de oferecer comida para os alimentados, já que o canal comunitário e o universitário (desta vez funcionando como extensão) iam justamente para a classe A, para quem menos eles gostariam e precisariam se comunicar. Mas, tudo bem, já era um bom começo. A experiência adquirida no cabo se somaria ao desejo de se (re)apropriar do direito de termos o sinal aberto. Com a TV Digital, e a possibilidade real de um canal aberto ser ocupado por até oito (isso mesmo, oito!) canais simultâneos, ia ter espaço para todos!
Mas a lógica nem sempre funciona na vida do Estado e os umbigos sedentos já deixaram bem claro que não há espaço para todos (… que não sejam amigos do rei, complemente-se).
(Essa é aquela parte do artigo que, juro, gostaria que chovesse contestações de que é uma visão equivocada. Sério, contestem, digam que estou errado para que eu possa nutrir a esperança de que os descaminhos da comunicação pública são apenas ilusões desse desinformado articulista).
Mas vamos a boa notícia. Com o debate sobre a TV Digital, o segmento de TV universitária, até pouco tempo uma espécie de primo pobre das emissoras não comerciais, se mostrou capaz de ter uma atuação política que fez e faz diferença no processo de discussão. Não é tópico desse texto esmiuçar as contribuições (mesmo porque foram coletivas com outros segmentos sociais), mas ratificar que tal presença concretizou um caminho iniciado desde a criação da Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU), em 2000. A associação se tornou reconhecida nesses seis anos como a entidade nacional, tanto para o segmento como para os órgãos públicos e governamentais (ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia, Comunicação, Cultura, ANATEL, Ministério Público Federal), entidades privadas (NET, Canal Futura, Sebrae), organizações sociais (Fórum Nacional de Democratização da Comunicação), demais associações de comunicação social televisiva brasileiras (ABERT, ABCCOM, ASTRAL, ABEPEC) e instituições internacionais (ONU, UNESCO, Associação de Televisão Educativa Ibero-americana (ATEI), Virtual Educa, Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas (Rede Clara)). Com todos esses, a ABTU foi chamada como a representante das IES produtoras de televisão. Da mesma maneira, estivemos presentes em todos os debates iniciais – e fundamentais – sobre o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), chegando a auxiliar na coordenação de um dos comitês com representantes de toda a sociedade civil (incluindo de peixinhos a tubarões) organizado pelo próprio Governo.
(Quem conhece a história da escolha recente do modelo de TV Digital no Brasil sabe que tais movimentos – legítimos, democráticos, progressivos – foram solenemente abandonados na reta final. Tudo bem, como diria São Paulo, vale é o bom combate.)
Desculpe-me se parece ufanismo. Mas a ABTU teve 156% de crescimento de afiliados desde sua fundação e acaba de colocar na prática uma rede de intercâmbio de televisão universitária (RITU) via internet em parceria com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e os ministérios de Ciências e Tecnologia e Educação. Se tratando de um segmento onde impera o conflito entre a enorme dedicação de poucos contra os inúmeros problemas institucionais de todos, onde o profissionalismo dos coordenadores se choca com o descaso e/ou desconhecimento das próprias IES, onde sua associação sequer teve sede fixa até este ano e os próprios dirigentes voluntários é que tocam o operacional, para mim não é pouca coisa o respeito que se conseguiu de seus pares, da sociedade civil e até dos seus não tão amigos. Isso em tão pouco tempo.
TV universitária é uma TV pública?
Sim, é. Mesmo porque é urgente uma mudança de paradigma. Precisamos privatizar a palavra ‘pública’. Parte significativa do setor estatal agarra-se a ela como uma bandeira. Confundem gestão com vocação. Uma coisa é ser sustentado com dinheiro público. Outra, que pode ser coincidente ou completamente diferente, é ter o interesse público como missão: sem fins lucrativos, que tenha mecanismos de participação e fiscalização social, volte-se para a promoção da educação, cultura e cidadania, para a melhoria da qualidade de vida da sua comunidade, para a democratização da informação e do conhecimento, que encare a necessidade da grande parcela da população – assim como as carências de apenas um – como se fosse de todos. Tendo isso, é público. Se você quiser gerir com dinheiro de impostos ou de empresas privadas, não muda o seu aspecto. Fazendo isso, qualquer emissora de televisão será pública, independente de ser gerida por uma instituição de ensino superior, uma fundação filantrópica ou até mesmo o Estado.
(As comerciais ficam de fora, certamente, pois sua missão é remunerar acionistas. Mesmo sendo elas concessionárias públicas, logicamente subordinadas ao belíssimo artigo 221 de nossa Constituição. Mas, como vimos, lógica não é exatamente uma característica estatal…)
As TVs universitárias, mesmo quando sufocadas pelas suas dificuldades institucionais, não se desvinculam de sua origem e estão sempre ligadas, pelo menos, a um dos três aspectos da universidade: ensino, pesquisa ou extensão. Que é o papel social que a sociedade outorgou para as suas IES. Sua opção pelas características de TV pública descritas acima é, portanto, orgânica. E não há qualquer indicativo de que queremos ser diferentes.
Mas admito que essas questões não são fáceis. Daí o nosso entusiasmo com o próximo I Fórum de TVs Públicas, capitaneado pelo Ministério da Cultura, do qual a ABTU, ABCCOM (das TVs comunitárias), ABEPEC (das educativas estatais) e ASTRAL (dos canais legislativos), tiveram papel relevante em sua preparação. A pretensão – inédita e abrangente – quer trazer para o cenário esse segmento abandonado à própria sorte desde o início, dando-lhe marco regulatório compatível com sua importância, defendendo o seu direito de espaço físico, social e político e planejando sua evolução dentro de uma política pública, de Estado e não de governo.
Também não é pouco. Mas a TV universitária, sua história, suas características e sua diversidade, já estão em campo e não mais perdem a posição de titular. Mas o jogo mal começou e do outro lado os tais umbigos eleitoreiros já acertam abaixo da medalhinha. Não importa. Estamos aqui mesmo é para o bom combate.
Falta de clareza
A discussão sobre a TV que o Governo Federal quer criar poderia ser mais clara se os conceitos de televisão pública e televisão estatais fossem claros. De qualquer maneira, os ocupantes do Palácio do Planalto não podem reclamar da desconfiança generalizada que se instalou na sociedade, desde o anúncio extemporâneo da idéia, feito pelo Ministro das Comunicações, Hélio Costa, quanto às intenções do Poder Executivo.
Há que se recordar que o assunto nasceu durante as eleições de outubro do ano passado, quando Lula e o PT se colocaram como vítimas de um intricado complô da mídia; as idéias foram fervilhando, se multiplicando, o debate sobre democratização da imprensa se instalou entre os petistas, aprofundaram-se nas análises e desdobramentos da parte do programa de governo referente à comunicação do então candidato à reeleição, até se materializar a TV do Executivo.
O que desejo enfocar neste artigo, no entanto, não são as intenções por detrás das vírgulas, e. sim, o que pode estar dando margem a que, por detrás de definições vagas, se possibilite, realmente, um instrumento e uma política de comunicação cujos fins, por não ficarem explicitados, podem ser o que o dono quiser.
Então, o que se impõe, nesse meu ponto de vista, é a definição clara do que seja televisão pública e televisão estatal. A princípio, mais uma vez o próprio governo alimenta as dúvidas, ao batizar essa sua idéia de TV do Executivo – se é do Executivo, é do Governo, é estatal; se do público fosse, deveria ser TV Pública.
Pois que só há um instrumento legal, por sinal o maior deles, a Constituição, que fala em televisão pública, estatal e privada. Em seu artigo 223, a Carta Magna diz o seguinte: ‘Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas PRIVADO, PÚBLICO E ESTATAL.’
Ocorre que este artigo permanece até hoje sem regulamentação, sem que sejam definidos, exatamente, os campos de atuação de cada um dos sistemas, o que lhes confeririam as necessárias e esclarecedoras especificidades. Talvez por isso mesmo, o ministro Hélio Costa, que escancarou o debate – esse mérito é só dele – não se ateve à Constituição para justificar sua visão do projeto. Ele buscou amparo na legislação que rege a implantação da TV Digital no país.
O Decreto Nº 5.820, de 29 de junho de 2006, em seu artigo 13, diz que ‘A União poderá explorar o serviço de radiodifusão de sons e imagens em tecnologia digital, observadas as normas de operação compartilhada a serem fixadas pelo Ministério das Comunicações, dentre outros, para transmissão de I – Canal do Poder Executivo: para transmissão de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Executivo; II – Canal de Educação: para transmissão destinada ao desenvolvimento e aprimoramento, entre outros, do ensino à distância de alunos e capacitação de professores; III – Canal de Cultura: para transmissão destinada a produções culturais e programas regionais; e IV – Canal de Cidadania: para transmissão de programações das comunidades locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal.’
Daí, surgiu a expressão ‘TV do Executivo’ que, questionada, passou para ‘TV Pública’. Este artigo sugere a leitura atenta dos preceitos legais citados, o que parece ter sido negligenciado pelas autoridades do governo central que estão se pronunciando sobre o assunto. E cabe advertir as várias interpretações que toda lei nos possibilita, aqui possibilidades essas exarcebadas pela falta de clareza na definição dos objetos foco da legislação. Na verdade, a não regulamentação do artigo 223 da Constituição torna a leitura da legislação da TV Digital confusa.
Rumos do debate
Em recente debate na comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicações e Informática da Câmara dos Deputados, o ministro Hélio Costa, exatamente usando de filigranas legais, disse que, a princípio, todos os canais de televisão, em atividade ou não, são da União e assim o permanecem porque sua utilização é fruto de concessão de uso. A princípio ele está certo. Mas, o que se está discutindo não é a titularidade, mas a atividade a que se prestará cada canal.
Na verdade, o decreto 5.820 no seu artigo 13 diz que a União poderá explorar o serviço de radiodifusão digital nos termos que estabelece a seguir. Ora, se a exploração do serviço é da União, então a atividade será estatal, e não pública. Atente-se para o fato descrito no decreto de que, dos quatro canais reservados à União, somente no Canal de Cultura parece não ter atribuições oficiais. O Canal do Executivo é para transmitir o trabalho do governo; o de Educação capacitará professores. E até o da Cidadania – proclamado pelo ministro Hélio costa como pertencente à comunidade – terá que divulgar ‘atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal.’
Com este quadro, com essa legislação, não há como pensar outra coisa: a televisão que o governo planeja fazer, agora sob o comando do Ministro Franklin Martins – que tem a seu favor sua militância radical pela Democracia –, da recém criada Secretaria de Comunicação Social (que por juntar verba e verbo merece um debate à parte) é sim ESTATAL, e não PÚBLICA.
O perceber da falta de fronteira clara, no Brasil e no caso da radiodifusão, não é ideológico; não se pode culpar o PT e o governo Lula de se querer democratizar a comunicação com inspirações, no mínimo, pouco democráticas. Trata-se apenas de, fazendo o mesmo com as palavras, uma chicana administrativa – o governo de plantão interpreta a dúbia legislação de acordo com os seus interesses.
Assim, como essa discussão envolve a democracia, e observando os rumos para onde essa discussão está apontando, faz-se imperioso que ela saia do campo político e retome o foco legalista. Até pelo caráter permanente que terão as conclusões e as decisões advindas do atual debate.
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Jornalista e professor universitário, autor de Manual para uma TV Universitária (Autêntica, 2002), mestre em comunicação social e doutor em educação (UFMG), fundador e vice-presidente da Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU)