Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Perspectiva dialógica entre arte e educação


Introdução


Arte e educação são estruturas que compõem textos grandiosos e imprescindíveis em todas as sociedades humanas e que, por isso, traçam patrimônios históricos organizados através de bens culturais que auxiliam-nos a compreender o sistema simbólico ao qual estamos inseridos e integrados. Apontam ambas para setores da sociedade que se consagram tanto à expansão quanto à expressão dos sentimentos humanos, no entanto, o equivocado entendimento que desenvolvemos acerca de noções gerais das práticas educacionais, inspira-nos a estabelecer duelos permanentes e constantes entre as representações artísticas (dança, teatro, música, artes plásticas, arquitetura etc.) e a educação; consideramos tais estruturas quais se fossem compartimentos fechados e estanques impossibilitados de engendrar diálogos e, com isso, fortalecerem-se ante as necessidades do homem. Assim, procedemos ingenuamente em nossas propostas de aliança entre os aspectos da arte e da educação de modo a subjugar as representações artísticas a supremacia do conhecimento linear e dual que caracteriza a pedagogia iluminista.


Um exemplo bastante significativo dessa situação é o sistema de avaliação a que a Arte deve ser submetida dentro das quatro paredes da escola. A avaliação quantitativa exigida por nosso sistema escolar, mesmo que auxiliada por avaliações processuais, não nos permite explorar aquilo que significa uma das grandes riquezas no mundo da produção artística: o debate entre críticos, a impossibilidade de consenso, a subjetividade implícita não exclusiva, a variedade de respostas e julgamentos frente a um mesmo trabalho artístico de acordo com conceitos, gostos, expectativas, visões de mundo (MARQUES, 1998: 53).


Todavia, notamos que é possível sim pensar estas esferas – mesmo no âmbito das escolas de base – como a constituição de processos híbridos [termo proveniente do vocábulo grego hybris, cuja etimologia faz alusão a ultraje, anômalo ou irregular. Aqui, propomos como hibridação o conjunto de relações que viabilizam a geração de novas estruturas], complexos e enlaçados de contínuas e recíprocas influências simbólicas; gerando aí, um intercâmbio entre as dimensões sociais, fundindo-as e fomentando a partir desta fusão pontos de interseções que influenciam sistemas lógicos de pensamento, (re)formando-os. Neste ínterim, já não possuímos um entendimento dual e sim um novo conceito para expressão arte-educação.


Não estaríamos mais, portanto, colocando o professor ‘contra’ o artista e vice-versa, mas compreendendo mais profundamente o papel, a função e a atuação do artista docente.


Como aquele que…




‘Não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem também como função e busca explícita a educação em seu sentido mais amplo. Ou seja, abre-se a possibilidade de que processos de criação artística possam ser revistos e repensados como processos também explicitamente educacionais’ (MARQUES, 1998: 112).


Essa reforma é o nicho onde se encontra a criatividade em arte-educação e, em nosso caso específico, em vídeodança-educação e é a partir dela que nos propomos a investigar o processo de intervenção do pesquisador ao conjunto de jovens integrantes do Núcleo de Artes Nise da Silveira; empenhamo-nos, a seguir, portanto, não em fortalecer fronteiras entre campos e organiza-los de maneira a distingui-los, mas, sobretudo, em buscar possibilidades de uma circulação mais viva e eficiente favorecendo a construção de limites cada vez mais dúcteis e permeáveis em arte-educação.


Animação cultural


Observamos em nosso texto introdutório a necessidade que se faz urgente de organizarmos espaços de relacionamentos possíveis entre arte e educação, propondo, desse modo, encontros não prescindíveis ao desenvolvimento do olhar humano para as funções e realizações do artista-docente. Por isso, ante a ansiedade de apresentarmos (em descrições ou análises ou interpretações) a construção da performance videocoreográfica ou a pesquisa realizada pelos jovens-estudantes do Núcleo de Artes Nise da Silveira, optamos, neste momento, em examinar e justificar os arcabouços utilizados em nossa proposta de intervenção.


A partir desta necessidade, percebemos a afinidade estabelecida entre nosso conteúdo pedagógico e os fundamentos e conceitos presentes nos Estudos Culturais desenvolvidos na Inglaterra por Richard Hoggart (Uses of Literacy – 1957); Raymond Williams (Culture and Society – 1958) e E. P. Thompson (The Making of the English Working Class – 1963), e daí norteando-nos por esta proposta pedagógica procuramos aplicar em nossos procedimentos metodológicos planejamentos não arbitrários e estabelecer processos de produção coletiva entre docente-propositor e estudantes-atuantes de modo a estruturar diálogos estéticos, políticos, afetivos, mas, de maneira geral, éticos.


Reconhecendo que, como nos propõe Williams, a cultura é o estabelecimento de experiências vividas dos agrupamentos humanos, buscamos não estabelecer diferenças qualitativas entre as pretensões compositivas do pesquisador e as variadas formas de estruturação cênica apresentadas pelos jovens-artistas. Desenhamos, pois, em nossas atividades de montagem da performance videocoreográfica Marê um quadro articulador de saberes que – despertando interesse no processo de ensino-aprendizagem, favorecendo a socialização entre os integrantes do projeto, oportunizando a formação de um pensamento crítico, uma postura presencial e ativa ante as problemáticas que envolvem todo processo de construção – amplia a perspectiva de uma educação emancipatória que relaciona as experiências cotidianas e as materializa na prática do trabalho coletivo.


Aí alcançamos um ideal de arte-educação que induz-nos a concepção de bens e a prática criativa, isto é, um ideal que promova a experiência como ferramenta indispensável ao processo de fruição plena da Arte em Educação, adquirindo a responsabilidade de ‘transgredir’ o atual estado das coisas à medida que sabemos viver em uma sociedade que produz grande proporção de patrimônios simbólicos para as massas, criticada por favorecer a construção de unanimidades e estimular o consumo acrítico; acusada de fomentar a homogeneidade que gera, por consequência, a automação em funções meramente conservadoras, de não oportunizar espaços que sirvam de estímulos a formação de seres reflexivos; censurada por encorajar uma visão e postura passiva cuja base é o desestímulo ao esforço pessoal, por não produzir ideais libertários e conscientes o que favorece a manutenção de preconceitos, mitos, estereótipos etc.


Passamos a buscar, pois, uma pedagogia, uma proposta de intervenção não limitada à reprodução de técnicas e atividades e sim aberta a estratégias tanto de reagrupamento de saberes e práticas quanto de valoração e reconhecimento do patrimônio individual. Afinal:




‘(…) a educação ou a ação cultural para a libertação, em lugar de ser aquela alienante transferência de conhecimento, é o autêntico ato de conhecer, em que os educandos – também educadores – como consciências ‘intencionadas’ ao mundo ou como corpos conscientes, se inserem com os educadores – educandos, também – na busca de novos conhecimentos, como consequência do ato de reconhecer o conhecimento existente’ (FREIRE, 1984: 99).


Desse modo, a pesquisa proposta – como representação textual de nossas experimentações didáticas – não se reduz a apresentação e descrição de processos, mas, se amplia com vistas a relaciona-los e integrá-los a ação humana. Instauramos, aí, mais do que uma continuidade sustentável entre arte e educação, estabelecemos uma interpenetração que preserva, dinamiza e garante validade e consistência a ambas as esferas em processo de hibridação e aponta-nos a indigência de melhor compreendermos este estado dialógico em nossas realizações e propostas pedagógicas.


Esta necessidade de entendimento pautado em determinado suporte teórico para nossas abordagens práticas (em parte satisfeita nos princípios dos Estudos Culturais, a partir da possibilidade de integração, ativação e participação entre sujeitos) é amplamente solucionada na perspectiva de Animação Cultural que nos propõe um novo tratamento à expressão arte-educação, aproximando-nos de uma tecnologia educacional baseada ‘na idéia radical de mediação (que nunca deve significar imposição), que busca contribuir para permitir compreensões mais aprofundadas acerca dos sentidos e significados culturais que concedem concretude a nossa existência cotidiana’ [MELO, 2006:08] e auxiliando-nos a perceber o valor de nossos encontros artístico-educacionais para a promoção de um entendimento mais tolerante da alteridade.


O mito: perspectivas de produção


Convidados pelo Grupo de Pesquisa em Cinema e Dança/ PECDAN para idealizar e ministrar oficinas para jovens artistas do Núcleo de Artes Nise da Silveira de modo a apresentar os resultados da pesquisa, em formato de performance videocoreográfica, no I Fórum de Dança e Vídeo da UFRJ (patrocinado pelo Banco do Brasil e realizado em outubro de 2008) buscamos em o primeiro momento de nossas práticas pedagógicas criar um espaço de discussão e pesquisa entre os agentes colaboradores da obra em processo, aproximando-os, desse modo, ao eixo norteador e inspirador da composição videocoreográfica denominada Marê: o mito de Oxumarê, que segundo Zacharias (1998: 168):




‘… é representado por uma serpente, se torna arco-íris. Alguns mitos cantam que ele tem a função de levar a água da terra para o palácio de Xangô, que fica no céu, e que esta água retorna em forma de chuva. É filho de Nana Buruku e irmão de Obaluaê, sendo que outras lendas narram a condição de curador de Oxumarê, curando, inclusive, o problema visual de Olorum – o Deus Supremo.’


A partir daí, empenhamo-nos em ressignificar os elementos simbólicos desta figura mitológica da religião dos Orixás reconstruindo possibilidades de criação de formas corporais percebendo através de um estado de vertigem circular e construções sinuosas, à medida que:




‘… o que mais se nota neste Orixá é a sua qualidade de eterno movimento. Produtor da força que põe em movimento todas as coisas, representa a continuidade e permanência do mundo. Enrolando-se em volta do mundo impede-o de se desagregar. Muitas vezes sua representação mostra-o como uma serpente enrolada em si mesma e mordendo a própria cauda [ZACHARIAS, 1998: 168].


No entanto, se a mitologia ancestral afro-brasileira orienta-nos a uma concepção artística aprofundada através do reconhecimento de valores e procedimentos culturais, também não deixa de avizinhar-nos de uma prática educacional que fomente uma compreensão mais perene da diversidade de lógicas culturais presente em nosso Universo. Assim, o mito inspira-nos uma compreensão dilatada do funcionamento prático da arte-educação possibilitando em sua estrutura lógica a visibilidade tanto de mecanismos da condensação do inconsciente (à guisa de metáforas, quais processos de aglutinação/ associação de elementos) quanto dos mecanismos de deslocamento (organizados como metonímia, a partir da substituição e deslocamento de estruturas).


Desse modo, o mito funciona como fundamento das linguagens artísticas em educação religando-nos a natureza de expressões marginalizadas pela sociedade, ajustando-nos para o contato com as diferenças e viabilizando a diversidade e o diálogo no âmbito escolar; o mito, nos induz a empreender ‘a construção de um olhar mais alargado sobre educação, como processo de humanização que inclua e incorpore processos educativos não escolares’ (Gomes, 2002: 01).


Por isso, acreditamos que o contato experimental dos jovens-artistas com a mitologia afro-brasileira consiste no que tange a redimensionalização de princípios culturais em arte-educação. Aproximando um conjunto de bens simbólicos às ações e realizações dos educandos, fomentamos questionamentos acerca da ordem social estabelecida e acabamos contribuindo, através da recuperação de patrimônios e imaginários em processos de degradação, para construção de uma sociedade mais equilibrada e justa.


Conquanto, grande parte dos mitos sejam colocados em algum lugar do passado, como arranjos seminais de cosmologias diversas, eles ‘se constroem e se renovam a cada dia no imaginário contemporâneo’ [BARBOSA, 2001: 121] e é a partir desta dinâmica presente nos mitos que nos propomos a desenvolver as atividades de Animação Cultural direcionando conteúdos pelos caminhos de uma ‘alfabetização’ plena no plano cultural, oportunizando aos indivíduos a (re)construção e (re)significação de novos mitos.


Considerações (por agora) finais


Buscamos auxiliar – através da análise de nossos processos artísticos e(m) nossos procedimentos educacionais – na formulação de concepções, estruturas e possibilidades de trabalhos possíveis em arte-educação destituindo do processo didático a relação passiva, ante a apropriação do saber, por parte dos estudantes, e propondo novas possibilidades de socialização através da Animação Cultural. A utilização da imagem do mito, da sala de aula e da cena nos convoca não a explicar e descrever os processos de criação e montagem em Arte-Educação, tendo em vista que nos tempos hodiernos isto já não se faz necessário, mas sim a colaborar na elaboração de novos contextos, expandindo ideais que possam contribuir para transformar o status quo, a ordem das coisas, em espaço verdadeiramente democrático, integrando o processo artístico-educacional à vida social, humanizando o indivíduo e apreendendo-o como agente ativo e participativo e não somente como paciente da sociedade.


Por isso, à guisa de conclusão, podemos depreender que a investigação proposta não se esgota aqui, sabemos, mormente, que a ruptura com os valores e formas tradicionais de ensino e aprendizagem não consiste, definitivamente, em tarefa fácil, porém, torna-se indispensável neste momento refletirmos a respeito de nossas pretensões e papéis no mundo a fim de nos fortalecermos para o primeiro grande passo: o reconhecimento de nossos conteúdos equivocados e ferramentas retrógradas e enferrujadas.


Deste modo, a pesquisa nos pede aprofundamento e continuidade para que as nossas sementes não pereçam ante o solo árido do tradicionalismo, para que persistamos em busca da conciliação das linguagens artísticas e realizações sócio-educacionais na elaboração de um novo homem, para que continuemos buscando aprender uns com os outros, cientes de que a Vida exige mais compreensão do que conhecimento de cada um de nós, realizando ações efetivas e afetivas nos círculos do saber e, por fim, para que prossigamos confiantes de que ao cuidarmos da arte em educação, Ela cuidará de nós.

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte/UFF