Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por que temer a reparação do sofrimentos?

A coluna ‘Painel de Controle’, do jornalista Luís Nassif, publicada em 18 de maio no jornal carioca O Dia, alinhou-se aos que são contrários à adoção de ações afirmativas voltadas para a comunidade negra (pretos + pardos) no Brasil. E, para variar, estabeleceu cota como sinônimo único de ação afirmativa. O que, Nassif e os demais ‘contra’ sabem, não é verdade.

O referido texto motivou resposta minha – adaptada em parte e reproduzida a seguir, tendo sido enviada ao colega jornalista, ao jornal (via seção de cartas) e outros formadores de opinião. Soube do teor da coluna via e-mail dois dias após (não tinha lido O Dia na data da publicação, embora leia este jornal com freqüência).

O problema não é ser contra ou a favor disso ou daquilo. O que acrescento agora tem a ver com um dos motivos principais da existência deste Observatório da Imprensa: manipulação dos fatos sem mostrar não apenas os dois lados, mas todos eles, o que significa aprofundar ao máximo possível no espaço do jornal o tema abordado. E, mesmo o colunista opinando, dar a real oportunidade ao leitor de formar a sua própria opinião. Para municiar este mesmo leitor não faltam inúmeros textos e estudos (acadêmicos ou não, técnicos ou não) para indicar ‘x’ leituras a quem lê o texto jornalístico (neste caso, a coluna em questão).

Com o respeito devido ao Sr. Luís Nassif, o autor reflete não apenas o ‘achismo’ costumeiro de quem incorpora como verdade o senso comum, que nada mais é do que a ‘verdade’ de um grupo dominante neste país. Este grupo, esteja à direita ou à esquerda, não admite os fracassos de suas inúmeras tentativas de fazer do Brasil um bom lugar para se viver em paz e harmonia e fartura espiritual e material, mesmo aqui e ali havendo as salutares discordâncias de opinião.

Pobreza recém-descoberta

Este grupo é contra qualquer política pública que repare os sofrimentos passados, desde o período colonial, pela comunidade negra (pretos + pardos, para usar o IBGE). Seja no Brasil como em qualquer parte deste continente americano. A verdade é esta.

O temor deste grupo é que, dando condições, possamos no futuro reeditar Palmares, indo muito mais além do que nosso histórico e famoso quilombo pôde ir. O medo dos componentes deste citado grupo (cuja expressão maior é o binômio homem + branco) é de serem flagrados com os vilões desta história, queiramos ou não, em comum.

Não posso esquecer de dizer ainda o seguinte: a existência de políticas públicas específicas para os negros não impede de serem promovidas outras para os demais grupos historicamente excluídos.

A solidariedade aos brancos pobres parte dos negros que com eles convivem, e não do grupo dominante, que ‘descobriu’ a pobreza branca e tenta colocá-la contra os negros, os povos indígenas (na falta de melhor denominação, pois cada um tem a sua própria cultura, assim como os negros que vieram da África representavam diversos povos e culturas, que aqui criaram outra nascida de mistura destas), os descendentes de japoneses, chineses etc.

Diálogo permanente

As políticas de cunho universalista podem acontecer, desde que não sejam usadas (como o são hoje) para manter as desigualdades (ver estudos do IBGE, do Ipea etc.).

Quanto ao mérito… bem, não dá para colocar em competição grupos desigualmente preparados, respondendo às mesmas perguntas feitas por um sistema de vestibular criticável bem antes de qualquer discussão, séria ou não, sobre ação afirmativa (cota é apenas uma parte disso).

A crise na universidade ou no ensino em geral é antiga, e o ingresso de negros, por exemplo, não fará o nível da academia cair. Ao contrário. Pois se caiu a causa é outra. Basta conviver ainda hoje na universidade, especialmente a pública, para se observar serem os mesmos problemas estruturais. Passei por isso lá na velha e querida Universidade Federal Fluminense (UFF) e bem sei do que falo.

Falei demais. Há horas em que o coração deve falar mais alto do que a razão. Não dá para não ficar indignado com achismos travestidos de objetividade, racionalidade ou ‘o raio que o parta’! Agora é assim. Falou o que quer vai ouvir o que tem de ouvir!

Apenas um lembrete: as culturas negras nunca deixaram de dialogar com as demais culturas. Quem teve a oportunidade de ver a recente exposição de Arte da África no Centro Cultural Banco do Brasil viu esta verdade. Axé!

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Jornalista, integrante da coordenação da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio) do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro