Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre Nova York, professores e escolas públicas

O Haiti é aqui/ O Haiti não é aqui/ E na TV se você vir um deputado em pânico mal/ Dissimulado/ Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer,/ Plano de educação que pareça fácil/ Que pareça fácil e rápido/ E vá representar uma ameaça de democratização/ Do ensino de primeiro grau. (Caetano Veloso)

O jornal Folha de S.Paulo (4/2) publicou coluna escrita pelo jornalista Gilberto Dimenstein, na qual este trata dos problemas das escolas públicas brasileiras tomando como referência experiências em desenvolvimento na América do Norte, mais precisamente em Nova York. Considero importante sua preocupação com as escolas públicas brasileiras, mas não posso deixar de manifestar minha discordância com algumas idéias defendidas pelo jornalista.

Apresenta ele experiências nova-iorquinas que certamente deve ter estudado e que diz serem de sucesso, as quais, confesso, não conheço e a leitura da coluna não permite conhecer em detalhes. Dentre essas experiências de qualidade e sucesso, o jornalista destaca a que abre as escolas para qualquer profissional, formado ou não, que queira assumir o lugar de um professor – profissional do magistério, portanto – pelo salário inicial equivalente a R$ 7.500,00 mensais.

Uma vez contratado, o novo profissional passa por uma ‘preparação’ de três semanas (!!!) e, após assumir uma sala de aula, caso queira, poderá fazer gratuitamente um curso de especialização destinado a titulá-lo para que possa ser professor definitivamente.

Gestão empresarial

Entusiasmado com a proposta, o jornalista exalta o fato de profissionais liberais e executivos, de grandes empresas, alguns já aposentados, assumirem as salas de aulas no lugar dos professores e, a partir daí, os resultados serem melhores. Gilberto Dimenstein, segundo suas próprias palavras, considera que esses profissionais liberais e executivos representam ‘um material humano que dificilmente poderia ser mais bem qualificado e motivado’. Ou seja, para o jornalista esses que se prontificaram a ocupar o lugar de um professor são mais bem qualificados que os professores para ensinar aos alunos!

O convite feito na matéria é para examinarmos essas propostas com o propósito de aprender com as medidas implementadas pelo prefeito de Nova York. Para minimizar a comparação entre a cidade dos EUA e as do Brasil, diz o jornalista que o orçamento de Nova York é de 35 bilhões, sem contar recursos de outras fontes, como fundações privadas e o governo estadual. Diz ainda que, por lá, a prefeitura está construindo pequenas escolas, por avaliar que podem acolher melhor os alunos, os quais passam a se sentir reconhecidos e estimulados.

Nessas escolas, segundo a matéria, a equipe docente conta com recursos para formação continuada, atividades extracurriculares e inovações pedagógicas, entre outras. O diretor tem mais autonomia, mas pode ser demitido caso não alcance as metas estabelecidas pela prefeitura. Escreve o jornalista que o prefeito da cidade apostou que encontraria mais soluções na sua rica vivência de gestão empresarial do que nos escritos acadêmicos.

Importância minimizada

Sem dúvida, algumas experiências de sucesso e o conhecimento produzido a partir delas devem ser estudados e, sendo possível, adotados onde fizerem sentido para responder a desafios semelhantes aos que lhes deram origem. Entretanto, como bem sabemos, as escolas, as realidades, os problemas, as soluções e as condições contextuais merecem uma análise profunda do que se apresenta como propostas, e não a defesa simplória do que seria bom sob quaisquer circunstâncias.

Concordo com algumas posições defendidas pelo jornalista em relação aos problemas graves existentes na educação brasileira, como o elevado número de faltas, o corporativismo sindical, a ausência de avaliação de desempenho pautada em indicadores que de fato avaliem o sistema de ensino e o profissional, entre outros.

No entanto, não faz o menor sentido que as iniciativas para a suposta solução desses problemas estejam assentadas no inaceitável equivoco de desqualificar os profissionais da educação, responsabilizando-os, única e exclusivamente, pelo fracasso escolar, um problema de grave dimensão social e de múltiplas causas.

De tempos em tempos, assistimos ao surgimento de propostas milagrosas para elevar a qualidade das escolas públicas e das aprendizagens dos alunos. Da compra de ‘pacotes educacionais’, produção de livros didáticos e manuais para os professores ‘ao gosto do cliente’, até os programas televisivos que dispensam a presença de professores, são inúmeras as soluções que empresas, editoras e outras instituições oferecem aos prefeitos e secretários de Educação, para resolver os problemas do ensino. Por trás dessas propostas, de forma mascarada, o que se propõe é minimizar a importância do professor no processo de ensino e de aprendizagem.

Dificuldades e obstáculos

Ao se comprarem ‘pacotes educacionais’ ou livros didáticos pré-formatados, para a cidade ou região, com o respectivo caderno do professor e atividades pré-estabelecidas (o que não difere muito dos pacotes), o que se está comprando, na verdade, é um receituário a ser aplicado pelo docente, que deve seguir à risca o que alguém produziu em algum lugar. A partir da experiência de Nova York, Gilberto Dimenstein nada mais fez do que escancarar o que outros propõem de forma envergonhada: se não podemos tirar o professor da escola, vamos reduzir a sua importância em sala de aula!

As críticas que podemos fazer aos educadores, que cabem ao conjunto do funcionalismo público, não podem, em hipótese alguma, se transformar na sua condenação como culpados pela crise da escola pública.

Se nesse processo existem culpados e vítimas, podemos dizer que, muito mais do que culpados, os professores são principalmente vítimas de:

** uma ação deliberada das elites, que sucateiam os serviços sociais destinados aos setores populares da sociedade, ao mesmo tempo em que privatizam o Estado naquilo que lhes interessa e engordam seus patrimônios;

** – relações paternalistas e assistencialistas que marcam a nossa cultura político-partidária, à direita ou à esquerda, que desorganizam e não educam os setores populares para que tenham uma ação afirmativa de direitos e de controle social sobre o Estado e os serviços públicos;

** uma formação inicial de professores incompatível com a complexidade e as necessidades das escolas públicas e de seus alunos, que colocam jovens supostamente habilitados ao exercício da profissão diante de uma enorme responsabilidade com a formação e a vida escolar de centenas de crianças e adolescentes, mas na realidade despreparados para ensinar a todos com qualidade – um tipo de formação que, muitas vezes, se ocupa em preparar futuros professores para o exercício do discurso pedagógico de vanguarda, e não para uma atuação profissional competente;

** uma cultura escolar e profissional que tem como representação simbólica de aluno uma criança branca, de classe média, do meio urbano e católica, tratando, portanto, como ‘estranhos’ a grande maioria dos alunos que freqüentam as nossas escolas e que não correspondem a essa representação, e desvalorizando, assim, os conhecimentos sociais e culturais que trazem de suas vivências;

** gestores despreparados e, para piorar, às vezes sem nenhum compromisso com a qualidade da educação, incapazes de avaliar com seriedade as políticas e programas em desenvolvimento ou as que são necessárias para construir um processo que possa coerir os educadores e a comunidade em torno de ações para alcançar os resultados que interessam à população;

** inexistência de políticas de valorização dos profissionais da educação, em contradição com as exigências e responsabilidades depositadas sobre eles, que recebem um dos mais baixos salários pagos entre os países da América do Sul (quanto mais, se comparados aos de Nova York!). Segundo o INEP/MEC (2003), o salário médio de um professor do ensino fundamental é de R$ 462,00 e um professor do ensino médio recebe quase a metade do que ganha um policial civil e um quarto do que ganha um delegado de polícia. As diferenças salariais regionais são brutais: um professor da educação infantil do sudeste ganha em média R$ 522 e no nordeste o salário é de apenas R$ 232,00. Diante dessa situação, grande parte dos professores acaba por assumir dupla ou tripla jornada de trabalho, o que significa ausência de tempo para um envolvimento efetivo com o trabalho pedagógico, essencial para a qualidade do ensino, como planejar o ensino a partir das necessidades de aprendizagem dos alunos, trabalhar coletivamente com os seus pares, discutir o projeto pedagógico da escola, entre outros;

** condições institucionais desfavoráveis para professores e alunos, uma vez que se constata que 45% das escolas não possuem bibliotecas, 80% não possuem laboratórios, além do número excessivo de alunos em salas de aula, em alguns casos superando 40 por turma.

Desigualdade e discriminação

Podemos acrescentar muitos outros problemas que acabam por interferir na qualidade da escola pública, pois, como bem lembra o professor César Coll, em nenhum outro período histórico os grupos sociais depositaram tantas expectativas e responsabilidades em um só tipo de prática educativa ou exigiram tanto da educação escolar como hoje. Se isso ocorre, não vemos, pelo menos no Brasil, a sociedade oferecer aos educadores as condições e os recursos necessários para que possam cumprir adequadamente com sua função social.

Além do que, por abrigar em seu interior e no seu cotidiano contradições sociais presentes na sociedade, as escolas – e os professores – são chamados a dar respostas para os dilemas e problemas sociais que fazem parte da vida de seus alunos, como o desemprego, a gravidez precoce, o consumo de drogas, a violência, enfim, tudo o que marca o processo de exclusão social de grande parte das crianças, adolescentes e jovens que freqüentam as salas de aula. E os governantes de nosso país, portanto também a sociedade, estão permitindo que cada vez mais se cobre dos educadores e das escolas que se responsabilizem isoladamente por problemas que são estruturais do nosso país.

Sobre essa questão é preciso lembrar o que diz a professora Magda Soares:

‘A democratização da educação não depende só nem sobretudo dela, educação, porque é impossível a democratização da educação numa sociedade como a nossa, dividida em classes de forma tão gritante, tão revoltante, com diferenças tão grandes de condições sociais e econômicas. Enquanto as desigualdades e as discriminações não se resolverem, a educação pouco pode fazer. O problema fundamental são as condições sociais do país.’

As soluções são outras

Se nossos professores ‘não são os sujeitos brilhantes de Nova York’, apesar de tudo o que a elite fez, em mais de cinco séculos, para inviabilizar a escola pública de qualidade para os mais pobres e excluídos, ainda assim, quem quiser vai descobrir em quase todo o país professores e professoras que teimam em acreditar e fazer acontecer uma escola que garanta uma aprendizagem de qualidade a todos os alunos e alunas.

São homens e mulheres que demonstram cotidianamente, em suas salas de aula, que a tão sonhada escola pública de qualidade é possível, principalmente quando se oferecerem aos educadores os recursos, o tempo e as condições institucionais que favorecem o protagonismo na construção dessa escola de qualidade para todos, o que significa dizer que também os educadores devem estar à frente da discussão sobre a política educacional necessária para o país, mesmo que assim não queiram os gestores ou os sindicalistas – aqueles que acreditam que conquistar uns 10% ou 15% a mais de reajuste salarial ao ano significa oferecer aos professores a valorização profissional que merecem.

Não conheço suficientemente os professores norte-americanos, suas expectativas, seus desejos, frustrações profissionais, compromissos e lutas…mas, do que pude conhecer dos professores brasileiros, posso assegurar que por aqui as soluções são bem outras, diferentes daquelas que o jornalista apresenta em seu artigo. Ousaria afirmar que me parece que por lá também!

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Educador, Salvador, BA