Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Televisão sem complexo

Doze anos depois de instituída, com o acesso gratuito a canais de TV a cabo que foi facultado às universidades pela Lei 8977, de janeiro de 1995, a televisão universitária brasileira está chegando a uma encruzilhada. O início de transmissões comerciais da TV Digital, anunciado para dezembro deste ano, e a reestruturação da televisão pública, que decorrerá do I Fórum Brasileiro de TV Pública, agendado pelo governo federal para março próximo, são circunstâncias que prometem impactar profundamente o ambiente audiovisual, abrindo um amplo leque de novas possibilidades, mas também ameaçando a posição dos atores menos eficientes nesse mercado. A TV universitária terá de escolher se avança para o profissionalismo e a consolidação, ou se permanece na indefinição de rumos, assistindo ao progressivo estreitamento de seus espaços e definhando aos poucos.


Não será uma opção fácil. A maioria das produtoras e canais universitários existentes ainda padece daquela ‘Síndrome do Vira-Lata’ diagnosticada há décadas por Nélson Rodrigues, quando identificou o complexo de inferioridade dos brasileiros, que os incapacitava para as grandes conquistas, como a Copa do Mundo. Os futebolistas já superaram a tal síndrome e nos sagraram pentacampeões, mas a TV universitária segue cultivando uma auto-imagem de irrelevância diante das ‘grandes’ emissoras e nutrindo-se dela para justificar a falta de projeto, de ousadia e de ambição de crescer. É como se, por ser apêndice de uma instituição cuja finalidade principal não é a comunicação social, fosse natural que a TV universitária viva sempre na precariedade, trabalhe com orçamento insuficiente para as necessidades, e realize apenas uma ínfima parte do que poderia fazer pela universidade e pela sociedade. Acostumou-se a ser modesta essa televisão, e é difícil fazê-la compreender que o céu é o limite, como percebeu a TV comercial há mais de 50 anos.


Chega ser cômica a contradição que se estabelece, quando o forte criticismo da universidade para qualquer tema da televisão defronta-se com a sua insegurança de apropriar-se, ela mesma, dessa tecnologia que adora demonizar. Os estudos apontando o poder tentacular de uma Rede Globo, por exemplo, com seu suposto papel nocivo à democracia e à cultura do país, poderiam formar uma pilha de altura equivalente à antena da emissora, na Avenida Paulista. No entanto, sempre que a TV universitária demonstra alguma insuficiência, é com a Globo que o meio acadêmico a compara, para desqualificá-la. Da mesma forma, é comum professores desdenharem das entrevistas que concedem a canais universitários, mas não se vê a mesma indiferença quando quem os convida a falar é o ‘Jornal Nacional’. O grande satã das ondas hertzianas converte-se em guru da boa produção televisiva diante dos canais universitários, sempre vistos como coisa menor, aos quais não tocarão jamais as bênçãos do Ibope.


Até certo ponto, é natural que seja assim. A universidade tem dificuldades em compreender a televisão na exata medida de sua influência sobre a cultura, a política e os costumes. Tende a superdimensioná-la, seja para o mal (a máquina de fazer doidos, a máquina de chupar cérebros), seja para o bem (a mídia eficientíssima, o canal de comunicação onipotente). E como não consegue apreendê-la na inteireza de suas ambigüidades, poderes e limitações, hesita diante dela, quando ela se oferece ao uso. Abriga-se numa ótica comparativa (como fazer TV tão bem como a Globo?), que, além de descabida, é redutiva e imobilista. O resultado é o descaso com os canais universitários que estão à sua disposição, transmitindo diariamente em mais de 50 centros urbanos grandes ou médios do país, para muitos milhares de brasileiros do outro lado da tela.


Palavra inteligente


Este é, então, um fato insofismável: a televisão universitária vem crescendo apesar da universidade, às vezes contra o desejo de parte dela. Os núcleos de produção existentes e os canais que eles mantém nasceram da iniciativa de setores acadêmicos (nos cursos de jornalismo ou RTV, nas assessorias de comunicação e nas pró-reitorias de extensão, em geral), mas ainda não foram bem metabolizados no organismo universitário. Ainda não foram ‘assumidos’ pela comunidade acadêmica, não se transformaram em objeto de interesse ou desejo de todos os cursos, do conjunto do professorado, dos estudantes, dos servidores. Sobrevivem enquistados, lutando por verbas, clamando por apoio, expostos permanentemente aos cortes de pessoal e orçamento, ao menor sinal de crise financeira nas instituições que os abrigam.


E, no entanto, muita gente os assiste. Cidadãos comuns, cansados da mesmice e da banalidade da televisão de entretenimento, interessados em ilustrar-se, sintonizam os canais universitários em busca da palavra inteligente, do comentário sensato, da análise sólida, da informação boa. A imprensa busca neles fontes de informação e novas caras para o telejornalismo. A publicidade tenta usá-los para comunicar-se mais facilmente com o mundo universitário e só não avança nessa direção porque há complicadores legais (são canais públicos, sem finalidade de lucro), mas sobretudo porque não estão profissionalmente estruturados para relacionar-se com agências e anunciantes (não fazem pesquisa de audiência, divulgam mal a sua programação, não têm política definida para captação de patrocínio/apoio cultural, etc).


Os canais universitários, enfim, já são úteis para muita gente e cumprem boa parte de sua missão, mostrando à sociedade muito do que a universidade faz e pensa. Imagine-se, então, o que já estariam fazendo, se merecessem o decidido apoio da comunidade universitária, se fossem amados e impulsionados por ela. E imagine-se o que poderão fazer, no cenário da televisão digital – que vem aí com ampliação do número de emissoras disponíveis, multiprogramação das emissoras em vários canais, serviços interativos de informação, entretenimento e educação, e talvez com um bloco de canais públicos robustecido, integrado, bem financiado e mais apoiado pelo Estado. Como se comportará a televisão universitária nesse cenário?


A resposta depende, em parte, dela mesma, mas na maior parte, da comunidade universitária. Ambas precisam conceituar com mais precisão o papel de uma TV operada pela universidade, para que ela serve, a que necessidades atende. Com certeza, esse papel está muito além do mero espaço laboratorial para capacitação de estudantes, ou da ferramenta de comunicação institucional para uso de reitorias. Essas são duas aplicações legítimas da TV universitária, mas não devem ser dominantes, muito menos exclusivas.


Televisão múltipla e plural


Assim como uma universidade, por modesta que seja, encerra um mundo de diversidades, a televisão universitária também pode ser múltipla e plural, oferecendo informação, educação e entretenimento compatíveis com o rigor que se espera de uma instituição de ensino superior. Pode veicular um jornalismo diferenciado, que estabeleça novos padrões, ao menos na cobertura de educação. Pode dinamizar o esporte universitário, o teatro e a música (de onde surgiram mesmo a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o CPC, Chico Buarque, Caetano, Gil?). Pode divulgar uma infinidade de serviços gratuitos ou de baixo custo para a população: médicos, psicológicos, odontológicos, jurídicos, etc. Pode permitir experimentos de professores e estudantes, e fazer a permanente análise crítica do próprio sistema televisivo, falando ao mesmo tempo para o público interno e o público geral.


Essa é a televisão universitária do futuro, que surgirá se a atual fizer a opção correta na encruzilhada em que se encontra. Se optar, como dito acima, pelo caminho do profissionalismo e de sua consolidação como empreendimento sério de comunicação educacional, superando a condição de mero apêndice laboratorial para os cursos de mídia ou de simples veículo de propaganda – comercial para universidades, pessoal para dirigentes. Porque o outro caminho, o do continuísmo, o da indefinição permanente, não a levará a nada, exceto aos trancos e barrancos, a marcar passo ou a voltar atrás. É descaminho, não opção de avanço.


Se a TV universitária não explorar as possibilidades que já tem diante de si, e que terá muito mais com a televisão digital, algum outro setor da TV ocupará os seus espaços, inexoravelmente. A demanda por educação no Brasil só aumentará, na razão do crescimento que o país experimentar. Aumentarão as exigências para as instituições de ensino atuais e surgirão novas instituições, ampliando o contingente universitário e suas necessidades de formação e de atualização pós-formatura. Aumentará a necessidade de bom ensino básico, médio e profissionalizante. Aumentará, mais e mais, a obrigação de capacitar docentes, servidores e técnicos da educação. Alguém atenderá toda essa demanda, se a TV universitária não perceber que esse papel é seu.


Programação cultural


A outrora chamada televisão educativa, por exemplo, é forte candidata. Sozinha na área da TV educacional entre 1967, quando foi criada na radiodifusão pelo Decreto-Lei 236, e 1995, quando surge a TV universitária na cabodifusão, ela foi progressivamente abandonando os seus compromissos com a educação formal e extinguindo os telecursos de sua grade de programação, para converter-se em televisão cultural, educativa em sentido muito amplo, apenas complementar à escolarização. Avançou tanto nesse rumo que passou a recusar a própria identidade de televisão educativa, preferindo nomear-se como televisão pública, em contraste com a televisão comercial privada.


Não agiu dessa forma por algum impulso maléfico de dirigentes, de trair os seus propósitos e princípios. Abandonou a teleducação porque a tecnologia televisiva, no estágio de desenvolvimento em que se encontrava, permitia apenas a comunicação unidirecional do professor no estúdio para os alunos nas tele-salas, muitas das quais sequer contavam com monitores. Não permitia que os alunos fizessem perguntas e tirassem suas dúvidas. Inexistindo a interatividade entre educandos e educadores, tornou-se impossível um efetivo processo de ensino-aprendizagem, de avaliação de desempenho, de educação em sua plenitude. Assim, a mudança para uma programação cultural, sem responsabilidades educativas formais, tornou-se inevitável.


No entanto, aí está a televisão digital, introduzindo a possibilidade de interação entre telespectador e emissora, teoricamente em grau equivalente à que existe entre alunos e mestres na educação à distância via internet. Não no começo, mas com o tempo, a TV digital dará um grande salto na comunicação interativa. O público poderá perguntar, opinar, solicitar, até mesmo enviar seus próprios vídeos, trocando a postura passiva por uma audiência estimulantemente ativa. A bidirecionalidade no fluxo de comunicação enterrará a unidirecionalidade empobrecedora. E quando houver diálogo através da TV, em vez do monólogo atual, haverá um vasto campo para a teleducação.


Some-se essa funcionalidade à da multiprogramação, isto é, a possibilidade de que uma emissora transmita várias programações simultâneas, por canais diferentes. É o que já fazem atualmente, na TV por assinatura, emissoras como Telecine, SporTV, Premiére, Discovery, HBO, Cinemax e outras – não por acaso, utilizando da tecnologia digital já aplicada nas redes de cabo ou nas transmissões via satélite, que otimiza enormemente a capacidade de tráfego desses sistemas e favorece a multiplicidade de canais. A digitalização da TV aberta terrestre permitirá as mesmas funcionalidades e, de olho nelas, emissoras educativas, como a TV Cultura de São Paulo, já anunciam a disposição de dedicar um canal exclusivamente para a teleducação. Permitirá a TV universitária que os primeiros telecursos de nível superior sejam oferecidos pelas suas primas ricas? Ou cuidará ela mesma de ser senhora e rainha no terreno educacional que é seu por definição?


Aprofundar a segmentação


Por outro lado, o surgimento de outros canais não-comerciais de finalidade pública, como os legislativos (TV Senado, TV Câmara, TVs de Assembléias e Câmaras Municipais), os institucionais (NBR, TV Justiça, TV Brasil) e os comunitários (já presentes em cerca de 80 cidades brasileiras), redefiniu o campo público da televisão e introduziu nele um conceito de segmentação que ainda foi pouco explorado. Se esses canais competirem entre si e com os educativos e universitários, veiculando programações genéricas semelhantes para complementar o pouco que fazem de específico, a autofagia vai destruí-los. O avanço para o campo público está no aprofundamento da segmentação, com cada canal fazendo o melhor do que lhe é próprio. Ninguém mais habilitado, portanto, para tratar melhor dos conteúdos universitários do que a TV universitária.


Identidade, segmentação, profissionalismo, qualidade, poder de sedução. Estes são os desafios que a televisão universitária tem de enfrentar. Que a inteligência sobre a qual a universidade se funda seja capaz de entender que ela não pode enfrentá-los sozinha. A TV universitária só será uma grande televisão educativo-cultural do Brasil se for, antes, o que ainda não é: a televisão preferida da própria universidade.

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É jornalista, professor e diretor de televisão, presidente da ABTU-Associação Brasileira de Televisão Universitária e supervisor-geral do projeto de TV da Universidade São Marco