Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Teoria da notícia, duas categorias de valor

No âmbito da pesquisa ‘O jornalismo como teoria democrática’, que estamos desenvolvendo com bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), temos elaborado uma hipótese de trabalho acerca do valor como categoria central no processo de produção da notícia, mas formulando a possibilidade de que o valor-notícia seja bipartido e dialético e, portanto, bipolar. Para tanto, valemo-nos da teoria da enunciação, para inferir que a construção da notícia implicaria não apenas uma orientação enunciativa do tipo denunciação, mas, conseqüentemente, uma orientação enunciativa paralela – e lógica – da anunciação.

A notícia enquanto síntese dialética seria aquela capaz de apresentar para o leitor o fato composto por face e contraface (diatopia) e uma dedução lógica a ser elaborada pelo enunciador ou inferida pelo enunciatário, abrindo-se a possibilidade de construção de um terceiro elemento constitutivo da notícia. A notícia teria, assim, uma estrutura triádica, resultante de dois pólos em confronto e de um terceiro pólo-síntese.

O ponto de partida, portanto, é a formulação hegeliana do vir-a-ser como uma dinâmica dialética, segundo a qual a história se desencadearia por uma sucessão lógica de embates entre teses e antíteses, produtivos, no entanto, em matéria do surgimento das sínteses, ou seja, a superação das contradições.

‘Fatos, nada mais que os fatos’

Partindo da teoria do acontecimento, de Adriano Duarte Rodrigues, da qual podemos estabelecer o teorema de que ‘o fato, quanto mais improvável, mais midiático’, e da teoria da singularidade da notícia, de Adelmo Genro Filho, da qual podemos concluir que ‘o fato, quanto mais singular, mais noticiável’, estamos projetando a teoria diatópica da notícia, tomando de empréstimo o conceito de hermenêutica diatópica, de Boaventura de Sousa Santos.

Em SANTOS, o conceito de hermenêutica diatópica é criado com o foco nas diferentes concepções de direitos humanos, de acordo com diferentes culturas, ou seja, ‘entre universos de sentidos diferentes’, que ele denomina de ‘constelações de topoi fortes’. Hermenêutica diatópica seria, então, um procedimento baseado na idéia de que os topoi são incompletudes. O objetivo de tal hermenêutica seria, não atingir a completude – por ser inatingível –, mas ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua por meio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa ‘cultura’ e outro, noutra.

Neste procedimento é que residiria o caráter diatópico e do qual inferimos igualmente um caráter diatópico para a narrativa do fato jornalístico, pois, a notícia que contém apenas denúncia – como é próprio da notícia do jornalismo investigativo – traz, de forma implícita, a demanda de uma ‘resposta’, que seria ‘o outro lado a ser ouvido’, mas que, em geral, ou ‘não foi encontrado’; ou ‘nada quis declarar’; ou declarou algo apenas para que se cumprisse ‘a lei dos dois lados’. Mesmo quando a narrativa do fato jornalístico apresenta com equidade os dois lados, a síntese, o terceiro lado, não se apresenta como dedução, a não ser que a narrativa se transforme mais em análise autoral. Os próceres na definição dos procedimentos jornalísticos já deixavam bem claro que a sua missão era apresentar ‘fatos, nada mais do que os fatos’, e não, a opinião.

Os ‘lados interpretativos’

Tudo isso para entender que a bipolaridade da notícia enquanto valor implicaria a dedução de que o jornalismo também se biparte, havendo, portanto, um jornalismo de denunciação e um jornalismo de anunciação, porém existindo a possibilidade de que possam coexistir na medida em que o processo de apuração, redação e edição cuide para que as duas funções estejam reunidas ou pelo menos se registre uma tentativa de integralização ontológica dos fatos (jornalísticos), sob pena de a notícia se produzir manca em termos de uma síntese dialética, do tipo: Denunciação x Anunciação => Síntese, D x A = S, onde D é a contraface de A, mas, se houver a possibilidade de S, ter-se-á a produção da notícia integral ou triádica. A síntese, no entanto, o terceiro valor da tríade, teria diferentes maneiras de manifestação:

** a narrativa do fato (ou dos fatos) jornalístico apresenta não apenas o fato, mas os ‘dois lados’ interpretativos do mesmo (afirmação e negação) e ainda uma conclusão própria, a síntese deduzida pelo próprio narrador;

** a narrativa do fato apresenta a visão dos ‘dois lados’ interpretativos do fato e ainda uma opinião de um tertius, ficando a síntese a ser formulada a cargo de um terceiro ponto de vista, registrado pelo narrador;

Restituição da ‘fala roubada’

** a narrativa do fato apresenta a visão dos ‘dois lados’ interpretativos do fato, ficando implícito que o terceiro lado dedutivo ficará a cargo do enunciatário (leitor, ouvinte, telespectador etc.);

** a narrativa do fato apresenta a visão dos ‘dois lados’ interpretativos do fato, ficando implícito que a organização (empresa / redação) tem uma visão própria sobre o fato, expressa no contexto na matéria ou em editorial;

** a narrativa do fato apresenta os ‘dois lados’ interpretativos do fato, mas realçando explicitamente a preferência por um deles;

** a narrativa do fato apresenta os ‘dois lados’ interpretativos do fato, mas deixando marcas (conotadores) de preferência por um deles;

** a narrativa não apresenta nenhum dos outros ‘dois lados’ interpretativos do fato, limitando-se a enunciá-lo, em sua natureza fenomênica, tal e qual aconteceu, sem nenhum dado de interpretação e/ou análise.

Igualmente, buscaremos apoio no raciocínio efetuado por Roland Barthes quando das suas formulações sobre ideologia, quando considera a ideologia como um roubo da fala que é depois restituída com um acréscimo interessado de fala, dando-se a ‘restituição da fala roubada’, mas uma restituição que trai o destinatário da mensagem, já que se trata de uma restituição que é apresentada com um acréscimo, um agregado ideológico.

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Bibliografia

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980.

GADAMER, Hans-Georg. A Razão na Época da Ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987.

HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987.

HEGEL, Jorge Guilherme Frederico. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

RODRIGUES, Adriano Duarte Rodrigues. ‘O acontecimento’. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: teorias, questões e estórias. Lisboa, Vega, 1993.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro, Graal, 1989.

___________. ‘Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos’. In: Projeto DHN et: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura_dh.htm

SILVA, Luiz Martins da. ‘Jornalismo, espaço público e esfera pública, hoje’. In: Revista Comunicação e Espaço Público – ISSN 15-186946, Ano IX, no. 1 e 2, 2006, Edição Especial. Brasília, DF, Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília, 2006, pp. 36-47.

___________. Jornalismo público, o social como valor-notícia. Brasília, DF, Casa das Musas, 2005.

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Jornalista, mestre em Comunicação, doutor em Sociologia, professor da Faculdade de Comunicação da UnB, pesquisador do CNPq, autor de livros e trabalhos no âmbito da linha de pesquisa ‘Jornalismo e sociedade’, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB