Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Um diálogo entre quatro mestres

Professora de Jornalismo há dez anos, todos os dias me faço a mesma pergunta: neste universo complexo das comunicações, e de constantes mudanças tecnológicas, que profissionais devo formar? Responsável pelo laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, olho para os jovens alunos e me repito a pergunta. Não há angústia.

No dia 12 de novembro tive a oportunidade de compartilhar a dúvida com dois mestres. Os professores Nilson Lage e Carlos Chaparro estiveram em Brasília no XII Seminário de Comunicação Banco do Brasil, que nesta edição discutiu ‘O futuro da Comunicação’.

Doutor em Lingüística e mestre em Comunicação, jornalista desde 1957, Lage atuou em jornais e assessorias de imprensa. Aposentou-se recentemente – mas não se afastou – da docência na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Também lecionou na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bibliografia obrigatória sobre técnicas da produção jornalística, participou como palestrante na abertura do seminário, com o tema ‘Os novos desafios da Comunicação’.

Alguma teoria e muito ceticismo

Jornalista desde 1956,e formado em jornalismo desde 1982, Chaparro tornou-se professor da Universidade de São Paulo em 1984. Está aposentado como livre docente desde 2001. Português que chegou ao Brasil em 1961, escreveu livros sobre jornalismo – de aquém e de além mar – e é co-autor do livro-reportagem Padre Romano, profeta da libertação operária. Quatro vezes premiado com o Esso, trabalhou em jornais e em assessorias de imprensa. Atuou como mediador nos três dias de encontro, realizado no prédio de arquitetura sofisticada do Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília.

A pergunta foi feita ao final da palestra de Lage, uma aula importante, um mapa fundamental para localizar as discussões dos dois dias que se seguiram no seminário. Foi dirigida também a Chaparro, o mediador. Numa primeira leitura das respostas apresentadas, a sensação é a de que defendiam conceitos opostos, caminhos completamente diferentes, para garantir a boa formação para os profissionais.

Professor Lage:

‘É preciso formar jornalistas, e não analistas do mundo. Eles precisam dominar as técnicas, ter habilidade. Ter grande informação sobre a realidade – e o que está por trás dela – para se adaptar às mudanças. Há uma visão de que o jornalista é antropólogo, é sociólogo. Não é. A crítica profissional é diferente. Também é preciso conhecer bastante de discurso. As palavras têm vida, são instrumentos de um código. Cursos devem ter um conteúdo crítico. Devem ter o entendimento da retórica. Mas é essencial que se dominem as técnicas, táticas. Com alguma teoria e muito ceticismo. Não suporto jornalista militante.’

Diferença ficou na ênfase

Professor Chaparro:

‘As artes do ofício são fáceis de aprender. A grande dificuldade que tive não foi com as técnicas, mas com a capacidade de lidar com os conteúdos. A complicação da notícia está nas causas e nos efeitos. O jornalista precisa de formação multidisciplinar, intelectual. Deveria olhar o mundo na complexidade da profissão. Há jornalistas construindo espaços próprios, como blogs. Nada se faz que não seja para ser notícia. O jornalista deve ser um sujeito capaz de entender o mundo e explicá-lo. É difícil entender o ofício em tempos de informação em tempo real. O jornalista praticamente não tem o que fazer, grava o que a fonte diz e põe no ar. São tempos novos. Há necessidade de jornais e jornalistas entenderem que a função é elucidar, não apenas informar. As artes do ofício exigem capacidade em lidar com este mundo em que os embates são discursivos. Espaço e linguagem, dos quais se exige confiabilidade. Ética é essencial na formação profissional.’

Embora tenha iniciado a resposta firmando discordância sobre a importância das técnicas, o professor Chaparro nos lembra que jornalismo é ofício. Ainda que afirmasse a necessidade essencial da técnica, o professor Lage cobrou conteúdo crítico. Em ambos, a certeza da importância da palavra, da retórica, do discurso. Tanto para o dizer, quanto para o compreender o mundo e as relações entre os seres – e coisas – no mundo. Nas duas respostas, o reconhecimento do papel da técnica. A diferença ficou na ênfase.

Veio à minha memória a primeira resposta que recebi a esta pergunta fundadora. Veio em forma de um artigo, solicitado pelos alunos do jornal Campus ao professor Luiz Martins, doutor em Sociologia e mestre em Comunicação.

Complexo e fascinante

Jornalista e professor, pesquisador na área de jornalismo e sociedade, Martins, que durante anos respondeu por esta cadeira em nossa Faculdade de Comunicação, mandou um artigo curto, que poderia ser resumido à decomposição da palavra laboratório, feita com maestria:

Ora e labora. Reflete e trabalha.

Mesmo a técnica deve ser vista com olhar crítico, pensada, repensada, minuciosamente examinada, modificada, readequada. Tem que ser tão profundamente entendida e absorvida de modo a que o exercício seja da crítica, da compreensão da palavra, dos gestos, dos manifestos e do que não se mostra. As respostas se me apresentaram como diálogos. Corri ao livrinho de capa surrada – Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire (Paz e Terra, 1999) – e encontrei uma complementação. Justamente no trecho intitulado: Ensinar exige disponibilidade para o diálogo. Neste trecho do livro, Freire defende que no ensinar deve estar presente a disponibilidade à vida, alerta para a importância do diálogo.

O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História.

E encontrei em Freire, reconhecido no mundo pelo trabalho na área da Pedagogia, a orientação aos professores – de ensino fundamental, mesmo – para lidar com a comunicação. Creio que deve ser lida com duplo apuro por profissionais e aspirantes à profissão de jornalismo:

Não temo parecer ingênuo ao insistir não ser possível pensar sequer em televisão sem ter em mente a questão da consciência crítica. É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação, processo impossível de ser neutro. Na verdade, toda comunicação é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém nem sempre claramente referido. Daí, também, o papel apurado que joga a ideologia na comunicação, ocultando verdades, mas também a própria ideologização no processo comunicativo. Seria uma santa ingenuidade esperar de uma emissora de televisão do grupo do poder dominante que, noticiando uma greve de metalúrgicos, dissesse que seu comentário se funda nos interesses patronais. Pelo contrário, seu discurso se esforçaria para convencer que sua análise da greve leva em consideração os interesses da nação.

Ora e labora, aprende as técnicas, apreende o mundo. Complexo. Fascinante.

******

Jornalista, professora de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasília, DF