Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma globalização de baixo para cima

A comunicação é um processo social de produção e partilhamento de sentidos através da materialização de formas simbólicas. Ela não surgiu por ocasião do desenvolvimento dos meios de comunicação, a partir da criação da TV ou da internet – ela existe desde os primórdios da civilização. A modernidade, portanto, não inventou a comunicação, e sim complexificou um processo tido antes como natural.

Para traçar um paralelo entre desenvolvimento social e o padrão de transmissão de valores pela mídia é preciso primeiramente discorrer sobre o surgimento da sociedade de massa. Durante o século 19, a Europa e os EUA começaram a sofrer profundas transformações. A partir de então, surgiram estudos sociológicos sobre a sociedade moderna. As grandes massas populacionais começaram a se dirigir aos chamados espaços urbanos. Essas mudanças levaram ao aparecimento das associações, dos sindicatos e também à especialização de tarefas, da cultura e dos papéis sociais. O vazio deixado pelas instituições tradicionais, agora inoperantes – como a Igreja, a escola e a família – foi sendo substituído pelos meios de comunicação. Surgem, assim, os conceitos de homem-massa e de sociedade de massa.

Vive-se hoje na chamada era da globalização e, conseqüentemente, da informação. As distâncias se encurtaram, as relações políticas, econômicas e culturais foram facilitadas. A área da tecnologia da informação avança a cada dia, e a passos largos. Graças a essa rapidez da informação nos tornamos integrantes da chamada ‘aldeia global’.

O agenda-setting

Segundo Milton Santos, em seu livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, a globalização que existe hoje é uma fábula. Se a era é a da informação, difundida amplamente e através dos diversos meios de comunicação, a era deveria ser também a do conhecimento. É neste âmbito, portanto, que se insere a relação entre comunicação e poder e, por conseguinte, os valores transmitidos pela mídia para a sociedade. Os meios de comunicação, monopolizados por algumas empresas, vêem a informação como um produto, e não um direito do cidadão. Ainda de acordo com o autor, a informação que chega até nós é hegemônica e manipulada – ao invés de esclarecer, confunde.

Octavio Ianni apresenta, em seu livro Enigmas da Modernidade-mundo, uma metáfora interessantíssima, entre a análise de Maquiavel, que fala do Príncipe como a figura do líder, e o atual papel da mídia, que devido à sua crescente importância na vida política dos povos, dos indivíduos e das nações, pode ser chamada de ‘príncipe eletrônico’. A mídia faz as vezes do partido e da representação política, tal como Maquiavel interpretava o príncipe moderno. O espaço midiático confunde-se com o espaço da política e do poder.

Ianni partilha da opinião de Santos de que é a mídia que faz a cabeça, as mentes e o coração da opinião pública. O monopólio da informação por parte de algumas organizações, tanto em escala nacional como mundial, é uma tirania em termos de democracia. Democratizar não é somente pluralizar as organizações, é também registrar o tudo o que está acontecendo no mundo. De que forma estas informações chegam a nós? Através do rádio, da TV, dos jornais e da internet, que fazem um trabalho de seleção, priorizando algumas notícias em detrimento de outras, o que se convencionou chamar de agenda-setting.

Os integrados e os excluídos

O agenda-setting diz respeito à massificação dos temas midiáticos enquanto temas ou agenda do público, ou seja, estes se tornam conversa no dia-a-dia. Sua teoria reside na hipótese de que a influência não está na maneira como os meios de comunicação de massa fazem o público pensar, mas no que eles fazem o público pensar. Os mass media são, assim, formadores de opinião, através da ‘ordem do dia’, do agendamento dos assuntos que vão ser destaque na conversa cotidiana e de sua hierarquização. A complexidade que a indústria cultural adquiriu no mundo contemporâneo transformou-a numa fabricadora de notícias, de registros e de imagens que nunca são inocentes.

Os meios de comunicação de massa tornam-se, na sociedade capitalista, instrumentos de mistificação e de legitimação do capital. Seu poderio é, segundo Alessandra Aldé em seu livro A construção da política: democracia, cidadania e meios de comunicação de massa, comparável ao da escola e da religião, se levada em conta a capacidade de manipulação ideológica. Sob sua ótica, todos são aparelhos ideológicos do Estado, a fim de manter a ordem sem que o indivíduo perceba – são mediadores velados da ação coercitiva dos dominantes, o que denominou de ‘mercantilismo da comunicação’.

É preciso entender o papel atual da mídia, suas políticas e atores como uma mediação fundamental entre sociedade e esfera pública. A globalização é, pois, uma realidade inquestionável e a mídia participa decisivamente em tudo que diz respeito a ela. As barreiras de tempo e espaço não podem ser vistas hoje como eram antigamente, antes do surgimento das novas tecnologias. Esse novo mundo – o chamado ciberespaço – é capaz de transpô-las quase instantaneamente. No entanto, nem todos têm acesso a esse novo universo. Baumam afirma, em seu texto ‘A globalização: as conseqüências humanas’, que a globalização divide o mundo em dois grupos: o dos integrados e o dos excluídos. Os que pertencem ao primeiro grupo vivem o ‘tempo’, já que o espaço pode ser transposto, não importando a distância. Os pertencentes ao segundo grupo vivem num espaço resistente, e seu tempo é vazio – eles não têm acesso às benesses da globalização, criando assim um fosso ainda maior entre os possuídos e os despossuídos, entre os que possuem acesso à chamada era da informação e os que estão completamente segregados.

Agente libertador

A mídia é hoje o reflexo da perversidade da globalização. Ela leva à competitividade sem ética, que por sua vez gera a chamada ‘violência da informação’. A dominação cultural realizada através dos meios de comunicação de massa favorece, assim, a dominação econômica. Milton Santos e Ianni compartilham da idéia de que é preciso haver uma democratização da mídia, processo que seria possível por meio de uma outra globalização. Esta teria que ocorrer de ‘baixo pra cima’ – os países subdesenvolvidos seriam os agentes políticos dessa mudança, que teria como característica o pensamento livre, e não o discurso único. Para Ianni, a globalização que ocorre atualmente é ‘de cima pra baixo’, segundo os interesses das grandes corporações transacionais e a participação de alguns Estados poderosos.

Somente através de uma globalização mais humana, em que a ética exercesse papel fundamental, em que o consumo desse lugar à cidadania, seria possível cogitar uma real democratização dos meios de comunicação. Democratização essa que substituiria a divulgação de informações manipuladas, a competitividade que leva à ‘violência da informação’, pela informação que servisse à sociedade como um agente libertador, um agente transformador do cenário atual.

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Bacharel em Letras (UFRJ) e estudante de Jornalismo na Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ